EXTRAS EPISÓDIO 26
O CORPO
O corpo encontrado no matagal em 11 de abril de 1992 é questão central em todo o caso Evandro. Ele é tão importante que foi causa da absolvição de Celina e Beatriz Abagge no júri de 1998 realizado em São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba. Isso fica claro nas respostas dos jurados às perguntas feitas ao final do julgamento.
Uma delas era a seguinte: “No dia 07 de Abril de 1992, por volta das 19h30 horas, no interior de uma serraria, situada na localidade de Mirim, no município e comarca de Guaratuba, foram feitos em EVANDRO RAMOS CAETANO os ferimentos descritos no laudo cadavérico de folhas 214 a 229 dos autos?”.
Dos sete jurados, três votaram “sim” e quatro “não”. Existe todo um debate sobre a interpretação da pergunta, que pode dar a entender tanto que as Abagge eram inocentes quanto que Evandro sequer teria sido a vítima do crime.
Segundo matérias da época, no entanto, é possível afirmar que a tese de que o corpo não era de Evandro foi a grande responsável pela absolvição das rés. Esse resultado motivou o Ministério Público a recorrer, alegando que o júri foi contra as provas dos autos. A Justiça acatou o pedido e o julgamento de 1998 foi anulado.
Beatriz Abagge foi então julgada novamente em 2011, quando acabou condenada a mais de 27 anos de prisão. Na ocasião, Celina não foi a julgamento, pois já tinha mais de 70 anos de idade e, por isso, o crime já havia prescrito. No fim, a decisão de 1998 não afetou o andamento dos outros processos, já que os demais acusados também passaram por tribunais do júri.
No geral, há duas grandes narrativas sobre o corpo encontrado: a da acusação e a da defesa.
O QUE DIZ A ACUSAÇÃO
Para a acusação, o corpo era de Evandro e a confirmação foi possível por meio de quatro estágios. Em ordem cronológica:
• o primeiro reconhecimento foi feito pelo pai de Evandro, Ademir Caetano, no Instituto Médico-Legal (IML) de Paranaguá, cidade próxima a Guaratuba, em 11 de abril, quando o corpo foi encontrado;
• o segundo reconhecimento ocorreu no dia seguinte, 12 de abril, no IML de Curitiba, para onde o cadáver foi levado em seguida. Na capital, o exame de necropsia confirmou que as características do corpo eram condizentes com as de Evandro Ramos Caetano, que estava desaparecido há cinco dias. O laudo foi realizado pelos médicos Carlos Roberto Ballin e Francisco Moraes Silva;
• como o estado de decomposição era bastante avançado e dificultava o reconhecimento, um exame de arcada dentária foi conduzido pela doutora Beatriz Sottile França. Ela confirmou a identidade do cadáver de acordo com as informações que lhe foram repassadas pela dentista de Evandro, Adaíra Kessin Elias. Esse foi o terceiro procedimento para identificação;
• por fim, após as prisões dos sete acusados em julho de 1992, o delegado Luiz Carlos de Oliveira assumiu o caso do desaparecimento de Leandro Bossi. O investigador passou a fazer questionamentos sobre o corpo encontrado, pois tinha dúvidas de que o cadáver pudesse ser, na verdade, de Leandro. Por conta disso, a polícia pediu um exame de DNA, que teve resultado definitivo em março de 1993. O procedimento apontou que o corpo era de Evandro. Para a Justiça, essa já era a quarta confirmação.
O QUE DIZ A DEFESA
Os advogados dos acusados questionavam cada uma dessas quatro etapas de identificação. Eles alegavam que todas foram feitas de forma apressada ou com procedimentos incorretos.
As discussões giram em torno de quatro documentos principais. São eles:
• o Laudo de Exame e Levantamento de Local de Achado de Cadáver, produzido por um perito que viu o corpo no matagal e outro que analisou a área após a sua retirada;
• o Laudo de Exame de Necropsia, feito no IML de Curitiba;
• o Laudo de Exame Odontológico de Identificação, também realizado na capital. Ele faz parte do laudo de Exame de Necropsia (download no link acima);
• e, por último, o conjunto de laudos de exame de DNA.
Além disso, a defesa contesta a identificação realizada por Ademir, pai de Evandro. Os advogados alegam que Diógenes Caetano dos Santos Filho, principal acusador das Abagge, induziu Ademir a reconhecê-lo.
Em entrevista concedida em 1995 ao programa Jogo Limpo, da extinta TV Independência, o advogado de defesa Antonio Augusto Figueiredo Basto cita um depoimento que considerava importante. O relato, de 10 de dezembro de 1992, era do médico Cesar Joarez Faria Branco, legista do IML de Paranaguá.
Na ocasião, Branco disse que o cadáver não seria de uma criança de seis ou sete anos de idade, mas sim de um adolescente ou um “pouco mais novo”, e que um “tio muito falante” teria insistido para que Ademir identificasse o corpo. A defesa nunca afirma categoricamente, mas sempre dá a entender que esse “tio” seria Diógenes.
DOWNLOAD Depoimento Dr Cesar Joarez Faria Branco
Por outro lado, o pai de Evandro nega que tenha sofrido qualquer interferência no momento do reconhecimento. Em 2011, o programa Tribuna da Massa, do SBT, gravou uma declaração dele sobre o assunto. Na entrevista, Ademir confirma que identificou o corpo com absoluta certeza por conta de uma marca que ele teria nas costas.
Apesar de tudo isso, a defesa insistia ainda em outra questão: o tempo que o corpo demorou para ser transportado. Após a descoberta, o cadáver foi encaminhado para o IML de Paranaguá – cidade que fica a cerca de uma hora e meia de distância de Guaratuba. De lá, ele seguiu para Curitiba, uma viagem que tem essa mesma duração.
LINHA DO TEMPO DA DEFESA
Sobre a demora do transporte do corpo e as supostas inconsistências sobre as roupas encontradas com ele, o advogado de defesa Magnus Kaminski criou uma linha do tempo. Ela está presente em um documento redigido por ele em 9 de março de 1993. Acompanhe-a abaixo:
• Dia 11 de Abril de 1992, 10h30: o corpo é encontrado;
• 13h30: o Instituto de Criminalística vai até o matagal, tira fotos e relata o processo em laudo. O corpo, que vestia uma cueca Zorba e um calção, é então liberado para ser levado ao IML de Paranaguá;
• 17h40: o corpo chega ao IML de Paranaguá, transportado por uma empresa funerária chamada Medianeira, sem o acompanhamento de autoridades. Há relatos de que o cadáver estava nu nesse momento, ao passo que funcionários do Instituto negavam terem mexido nele;
• 20h30: o corpo é retirado do IML de Paranaguá com destino à Curitiba, também pela Funerária Medianeira, mais uma vez sem a participação de autoridades. Esse trajeto leva cerca de uma hora e meia;
• No entanto, o corpo só é registrado no IML da capital às 7h35 do dia 12 de Abril de 1992, o que resulta em um período de 11 horas de trânsito entre as duas cidades.
No documento, Kaminski ainda dizia que tentou encontrar o motorista da Funerária Medianeira para que ele explicasse a confusão, mas não obteve êxito na busca. O rapaz, de nome César Samuel Ruppel, havia falecido subitamente em Guaratuba no dia 23 de outubro de 1992.
TRANSPORTE DO CORPO
A mãe do motorista, Hilda Ruppel, prestou declaração em cartório no dia 17 de Novembro de 1993, para contar o que o filho havia lhe relatado na ocasião em que transportou o corpo. Na época, ela morava em Curitiba, enquanto César trabalhava em Guaratuba.
De acordo com ela, o filho levou o cadáver para o IML da capital ainda na noite do dia 11 de abril de 1992. O corpo, no entanto, só foi registrado oficialmente na manhã do dia seguinte. Portanto, segundo ela, não houve uma demora de nove ou onze horas de translado, mas sim negligência no registro.
Outra informação compartilhada por Hilda era de que César teria viajado acompanhado do pai de Evandro. Além disso, após deixar o corpo no IML de Curitiba, o motorista foi comunicado que o cadáver não seria liberado tão cedo e, por isso, recebeu ordens para voltar para Guaratuba e só buscá-lo no dia seguinte. Ele confirmou para a mãe que foi exatamente isso que fez. Na manhã do dia 12, ele visitou Hilda e relatou tudo o que havia ocorrido. O corpo ficou mais alguns dias em Curitiba, até ser liberado para o enterro em Guaratuba.
MORTE SÚBITA DO MOTORISTA
César Samuel Ruppel faleceu aos 27 anos de idade. A certidão de óbito lista três causas da morte: embolia cerebral, hipertensão arterial e obesidade – já que ele pesava 120 kg. Essa morte súbita levou Kaminski a acreditar que o motorista poderia ter sido envenenado.
Ao que tudo indica, o pedido do advogado de defesa para que a morte fosse investigada não foi atendido, e a explicação de que César faleceu de causas naturais foi aceita pelo Estado.
No júri de 1998, o médico Luis Sérgio dos Santos Marques, que aprovou o atestado de óbito do motorista, disse que não havia sinais de que César tivesse sido envenenado.
NEGLIGÊNCIA E PARANOIA
As discussões levantadas sobre o corpo podem ser entendidas como uma mistura de negligência e paranoia.
De um lado, para a acusação, apesar dos problemas nas primeiras etapas do reconhecimento, nos demais exames a identidade de Evandro seria confirmada sem sombra de dúvidas. Já para a defesa, os procedimentos que levaram a esse resultado poderiam ser fruto da incompetência das autoridades ou até mesmo de uma armação contra as Abagge.