Enciclopédia do caso Evandro

EXTRAS EPISÓDIO 27

 

DOCUMENTOS SOBRE ANÁLISE DO CADÁVER

DOWNLOAD LAUDO LEVANTAMENTO DE CADÁVER*

DOWNLOAD LAUDO NECROPSIA*

DOWNLOAD LAUDOS DNA EVANDRO

DOWNLOAD LAUDO ARLINDO BLUME – “TRABALHO PERICIAL”*

*As fotos do cadáver foram subtraídas das versões dos documentos disponíveis para download.

 

O TAMANHO DO CORPO

Uma afirmação sempre surge quando o assunto é o corpo encontrado em Guaratuba no dia 11 de abril de 1992: de que o cadáver na verdade seria maior do que Evandro e não condizia com o de uma criança de seis anos de idade. Quem acreditava nesta tese sempre mencionava como evidência fotos do garoto ainda vivo, usando a mesma bermuda que o corpo trajava. Nas imagens, a peça de roupa ia até o joelho, enquanto que no cadáver ela alcançava apenas a metade da coxa.

 

Foto de Evandro anexada aos autos

 

Outra foto de Evandro anexada aos autos

 

Outra foto de Evandro anexada aos autos. Ao que tudo indica, essa é a foto que sempre é referida quando mencionam o tamanho da bermuda. Assim como nas outras fotos, não há dados da data dela

 

Essa conclusão, no entanto, precisa ser examinada com cuidado. Para isso, segue abaixo a descrição detalhada de como o corpo foi encontrado (atenção: leitura não recomendada para pessoas sensíveis. Se esse for o seu caso, pule o próximo parágrafo):

Quando se olha com atenção para as fotos do cadáver no matagal, a impressão que se tem é de que o corpo está completamente oco, sem a barriga. Além disso, as costelas do lado direito foram totalmente retiradas, sobrando apenas alguns pedaços do lado esquerdo. Dessa forma, o elástico da bermuda, que em teoria deveria estar na barriga, na verdade quase toca a espinha dorsal. Isso significa que parte da roupa foi puxada para dentro do corpo, o que fez com que a bermuda ficasse mais próxima da virilha. Além disso, pode ser que a roupa estivesse amassada, ou ainda que a posição das pernas fosse capaz de influenciar na impressão de que a bermuda era menor.

 

CONFLITO ENTRE PERITOS

O médico Francisco Moraes e Silva, que auxiliou no laudo de necropsia, dizia que a altura do corpo correspondia com a de um menino de seis anos. Quem discordava dele era o perito Arthur Conrado Drischel, que ajudou a elaborar o laudo de levantamento do corpo.

Drischel alegava que, se o cadáver tinha de fato 1,19 m de altura, como o Instituto Médico-Legal (IML) de Paranaguá havia informado, ele seria muito avantajado para um garoto da idade de Evandro. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), no entanto, uma criança de seis anos teria mais ou menos entre 1,16 m e 1,21 m. Quando desapareceu, Evandro tinha seis anos e sete meses de idade – ou seja, segundo a OMS, o tamanho do cadáver se encaixaria no perfil dele.

Tabela da OMS sobre altura de meninos entre 5 a 19 anos em z-score. Neste cálculo, quanto mais perto de 0, mais próximo do normal.

 

A defesa se apoiou nas alegações do perito Drischel para criar a tese de que o cadáver não era de Evandro. Mas, ao longo do caminho, ela se deparou com outros problemas: o perito não participou do exame de necropsia, apenas do laudo de levantamento de local do corpo. E ele sequer chegou a ver o cadáver no matagal, somente teve contato com a vítima no IML de Curitiba, acompanhando parte do procedimento.

Para piorar a situação, Drischel não poderia auxiliar no exame de necropsia nem se quisesse, pois não era médico de formação – sua titulação era em Farmácia. Além disso, ele era diácono da Igreja Católica, fator que a defesa tentou usar a seu favor, talvez apelando para a sensibilidade dos jurados.

 

ALGODÃO NO CADÁVER

Entre as várias teses que aparecem sobre o corpo, uma delas dá conta de que ele teria sido retirado de um necrotério e colocado no matagal, com o intuito de culpar as Abagge pelo crime. Segundo essa hipótese, Evandro ainda estaria vivo e o responsável por jogar o cadáver no mato saberia o paradeiro do menino, já que teria feito questão de colocar as roupas dele no corpo.

Uma das evidências seria a suposta presença de algodão nos ouvidos, na boca e nariz do cadáver. Essa foi uma das questões abordadas por Drischel em conversa com a jornalista Vania Mara Welte na época. Aqui vale lembrar que o perito viu o corpo pela primeira vez no IML de Curitiba quase 24 horas depois de ter sido encontrado, e mais de 12 horas após ter deixado o IML de Paranaguá.

Nas fotos tiradas pelo perito Antonio Carlos Lipinski no matagal, porém, não é possível notar a presença de algodão em nenhuma parte do corpo.

Anexada aos autos do processo, há ainda uma fita com a gravação do exame de necropsia, realizado no dia 12 de abril de 1992, no IML de Curitiba. Em certo instante, é possível ver o algodão dentro da boca, assim como o momento em que um dos peritos começa a tirá-lo. O corpo está nu sob a mesa e não há nenhum material estranho na região do ventre ou dos ouvidos, pelo menos na hora em que o vídeo foi gravado. Portanto, tudo indica que o algodão foi inserido na boca do cadáver no IML de Paranaguá, depois de ter sido encontrado.

É o que afirmava a perita responsável pelo exame de arcada dentária no corpo, Beatriz Sotille França, em depoimento durante o júri de 2004. Na ocasião, ela disse que o algodão foi colocado no cadáver pelo IML de Paranaguá, para a preservação dos dentes.

É neste ponto que a defesa foca: existe algodão no corpo, mas de onde ele veio? Por que devemos acreditar no relato de Beatriz França? Por que esse procedimento não consta nos autos?

Se o processo de transporte do corpo tivesse sido melhor registrado e descrito com mais detalhes, boa parte dessas discussões deixariam de existir. A defesa optou por preencher essas lacunas e conseguiu, assim, a absolvição das Abagge em 1998.

 

LESÕES CAUSADAS POR AÇÃO HUMANA?

Os conflitos entre o médico Moraes e Silva e o perito Drischel não param por aí. A equipe de Drischel acreditava que algumas lesões específicas do corpo tinham sido causadas por ação humana. Já para Silva, elas eram resultado da atuação de sacabocados, animais que se alimentam de carne morta.

De acordo com o perito, por conta dessas divergências, as duas equipes teriam se reunido no gabinete do diretor da Polícia Civil, José Maria Correia, para discutir qual seria a explicação mais precisa.

No fim, a análise de Drischel teria convencido a todos que as lesões foram de fato provocadas por ação humana, o que teria sido posteriormente registrado no laudo.

O próprio diretor da Polícia Civil confirmou as informações de Drischel, que haviam sido negadas por Silva, em depoimento para o júri de 1998. Segundo matéria do jornal Hora H de 22 de abril daquele ano, de Vania Mara Welte, Correia declarou que era necessário “harmonizar as posições de legistas e peritos para oferecer melhores subsídios aos delegados que trabalhavam nas investigações”.

De acordo com ele, ao fim da reunião, até mesmo o médico Moraes e Silva se convenceu dos cortes por instrumentos cortantes, ao observar as costelas do cadáver.

Foi provavelmente a partir desse relato que a palavra de Drischel passou a ser levada mais a sério no julgamento. Enquanto isso, o depoimento de Silva caiu em descrédito, o que foi importante para que os jurados acreditassem que o corpo não era de Evandro, com base na suposta diferença de altura.

 

MEDIÇÃO DA ALTURA

Segundo especialistas, quando um cadáver é encontrado, não é recomendável medi-lo com uma régua – seja de 30 cm ou mais. Isso porque o corpo deitado pode apresentar diferenças de medição e se já tiver passado alguns dias, é possível que sofra mudanças de estatura, por causa da rigidez ou amolecimento posterior.

O ideal é a medição óssea: os peritos medem um fêmur, por exemplo, e a partir dele, se tem uma noção muito próxima do tamanho exato da pessoa. Esse foi o procedimento realizado no IML de Curitiba em 12 de abril de 1992, como consta no laudo de necropsia.

O documento aponta que se trata de um cadáver de um indivíduo do sexo masculino com 1,19 m de altura, aparentando idade entre seis e sete anos. Esses dados correspondem com as características de Evandro.

 

DEMORA NOS LAUDOS

Outra questão curiosa do caso Evandro referente ao período anterior às prisões é a demora para a conclusão dos laudos técnicos – tanto o exame de levantamento de local de corpo quanto o de necropsia e arcada dentária.

Durante os trabalhos do Grupo Tigre, entre abril e julho de 1992, os policiais encarregados não tiveram acesso aos documentos sobre o estado do corpo, o que dificultou a investigação. Todos os pedidos realizados nesses três meses para a obtenção dos laudos não foram atendidos.

Por isso, quando Drischel relata em depoimento que policiais militares à paisana o visitaram em uma noite para pedir o laudo que havia elaborado, tudo parece muito suspeito. A declaração do perito foi feita no júri de 1998. Na época, ele contou que, poucos dias antes das prisões, PMs que poderiam ser oficiais do Grupo Águia o procuraram para obter uma cópia do laudo de exame de levantamento de cadáver.

Seguindo essa narrativa, os policiais militares tiveram acesso a um documento que ainda não tinha chegado aos delegados responsáveis pelo caso. Todos os laudos elaborados só foram de fato anexados ao processo após as prisões dos sete acusados.

Para a defesa, esse era mais um indício de sérias irregularidades. Afinal, normalmente documentos desse tipo são enviados aos responsáveis pelo inquérito – que, na ocasião, eram os delegados do Grupo Tigre. Por que motivo, então, o laudo de necropsia foi enviado ao promotor, justamente aquele que tomou depoimento de Diógenes Caetano dos Santos Filho, o principal acusador das Abagge?

O Ministério Público afirmou que isso aconteceu devido a circunstâncias extraordinárias, já que havia a suspeita de que o Grupo Tigre estava sendo enganado pela família Abagge. Além disso, o órgão alegava que, diante da necessidade de se acionar o Grupo Águia, todo o material coletado deveria estar disponível aos PMs para que o crime fosse solucionado.

Isso explicaria não só o motivo pelo qual o laudo de necropsia foi enviado ao promotor, mas também a suposta visita dos PMs à casa de Drischel.

 

A TESE DA DEFESA

Todos esses detalhes eram fundamentais para a tese da defesa de que as confissões tinham sido obtidas sob tortura. Nesta linha de raciocínio, a sequência de eventos seria a seguinte:

– No dia 29 de maio de 1992, Diógenes faz denúncia ao promotor Celso Carneiro do Amaral, em Curitiba;

– em 12 de junho de 1992, o Ministério Público solicita auxílio à Polícia Militar para averiguar as informações repassadas por Diógenes;

  em 19 de junho de 1992, Davina, a tia de Evandro, presta depoimento ao promotor Alcides Bittencourt Neto, de Paranaguá. Ela narra a busca pelo garoto desaparecido, que realizou na companhia de Osvaldo Marcineiro e de “Cheiro” (que, segundo ela, seria Davi dos Santos Soares). Na ocasião, eles teriam passado perto do local onde o corpo seria posteriormente encontrado;

– no dia 20 de junho de 1992, baseado no depoimento de Davina, o Ministério Público pede a prisão temporária de Osvaldo e Davi;

– em 30 de Junho de 1992, a juíza Anésia Edith Kowalski concede os mandados de prisão temporária.

Neste mesmo dia, o laudo de necropsia foi enviado ao promotor Celso Carneiro do Amaral, o mesmo que tomou o depoimento de Diógenes em maio. Já o exame de levantamento do cadáver chegou às mãos do delegado Gilberto Pereira da Silva, em Guaratuba. Nenhum desses documentos jamais foram apresentados aos investigadores do Grupo Tigre.

Essa sequência de eventos serve para fundamentar as mais importantes teses da defesa sobre as confissões: de que elas teriam sido feitas sob tortura, a partir de informações que os agentes do Grupo Águia liam nos laudos técnicos sobre o corpo.

 

TERMOS TÉCNICOS

Há ao menos um termo nos laudos que chama a atenção por ser mais técnico, e que corroboraria com o relato de Drischel sobre a visita dos policiais antes das prisões. No documento assinado por ele e Lipinski, há 12 fotos do cadáver no local onde foi encontrado, acompanhadas de legendas.

A primeira fotografia mostra o corpo de cima, vestindo o calção todo sujo – provavelmente de sangue -, de braços e pernas abertas, com o rosto virado para a direita. A legenda diz que é possível notar a “parte da camada dérmica da face, parte frontal do tórax e abdômen e respectivas vísceras”.

O termo “parte frontal do tórax” aparece algumas vezes nos depoimentos formais prestados por Vicente de Paula Ferreira e Davi dos Santos Soares na madrugada de 2 para 3 de julho de 1992, no quartel de Matinhos.

DOWNLOAD Depoimentos 2 e 3 de julho de 1992

Por um lado, a defesa argumentava que os termos seriam técnicos demais para serem utilizados em uma confissão de crime, ainda mais por pessoas de baixa instrução. Por outro, não é difícil de imaginar que isso poderia ter sido obra do escrivão ou do delegado que ditava o depoimento. Vicente, por exemplo, poderia ter apontado para o próprio peito enquanto descrevia como teria feito os cortes na criança, e o delegado então teria ditado “na parte frontal do tórax”. Cabia a cada jurado presente no júri de 1998 tirar a própria conclusão.