Enciclopédia do caso Evandro

EXTRAS EPISÓDIO 28

 

DOCUMENTOS SOBRE ANÁLISE DO CADÁVER

DOWNLOAD LAUDO LEVANTAMENTO DE CADÁVER*

DOWNLOAD LAUDO NECROPSIA*

DOWNLOAD LAUDOS DNA EVANDRO

DOWNLOAD LAUDO ARLINDO BLUME – “TRABALHO PERICIAL”*

*As fotos do cadáver foram subtraídas das versões dos documentos disponíveis para download.

 

 

RECAPITULANDO: CONTRADIÇÕES ENTRE PERITOS

A perícia do corpo encontrado no matagal em Guaratuba no dia 11 de abril de 1992 é marcada por contradições entre peritos. A princípio, os principais conflitos aconteceram entre o médico Francisco Moraes e Silva, responsável pelo laudo de necropsia, e Arthur Conrado Drischel, que ajudou a elaborar a análise de levantamento do cadáver.

Em depoimento nos júris de 1998 e 2004, Silva é assertivo ao dizer que as lesões no cadáver foram provocadas por ação humana. No entanto, como já mencionado no episódio 27 do podcast, Drischel relatava que havia discordâncias nesse ponto. Segundo o perito, Silva acreditava que os machucados tinham sido feitos por animais, enquanto ele próprio defendia a tese de que os danos foram causados por instrumentos cortantes.

Do outro lado, o médico negou essa contradição, mas o então delegado geral da Polícia Civil, José Maria Correia, confirmou a existência do problema e mencionou até mesmo uma reunião sobre o tema realizada entre os envolvidos.

De qualquer forma, em depoimento, tanto Silva quanto Drischel concordavam que as principais lesões haviam ocorrido por ação humana com o uso de instrumentos cortantes.

Enquanto isso, quem sempre defendeu a tese dos animais foi o perito Arlindo Blume, que produziu um documento chamado “Trabalho Pericial”, em setembro de 1993, com o objetivo de questionar o processo de identificação e análise do cadáver realizado pelo Instituto Médico-Legal (IML). Esse relatório foi bastante criticado por Silva.

 

TRABALHO PERICIAL DE ARLINDO BLUME

Para analisar o documento elaborado por Arlindo Blume, o perito criminal Gabriel Gaspar foi consultado nesse episódio. Ele é pós-graduado em Perícia e Investigação Criminal e trabalha como instrutor dessa área no curso do Exército.

De acordo com Gaspar, há pelo menos um ponto bastante importante no trabalho de Blume: a menção de larvas no cadáver. “Isso foi algo que me causou surpresa, porque só tem nele. No laudo de necropsia, é normal não ter, porque o corpo pode chegar no IMIL sem elas. Mas no relatório que é feito sobre o local de levantamento, tem que ter. Isso é relevante até para determinar o tempo de morte. O relatório de Blume diz que o cadáver tinha larvas abundantes em cima”, comenta.

Segundo o perito, se havia apenas ovos de larvas, isso significa que o corpo foi colocado no matagal há menos de 24 horas. Antes disso, ele teria sido preservado em um local fechado, que impediu a ação de moscas.

Nas fotos do local onde o cadáver foi encontrado, é possível ver algumas larvas, especialmente na cabeça. Não se sabe, no entanto, o motivo pelo qual elas não são mencionadas nos laudos.

O trabalho de Blume tinha como principal meta desacreditar tudo o que havia sido feito pelos peritos anteriores. Ele defendia que todas as lesões na vítima haviam sido causadas por animais que se alimentam de carne morta. “Isso não é impossível, mas me parece um exagero, é forçar muito a barra. As aves terem comido os tecidos moles do rosto, por exemplo, é plausível. Mas partir daí para animais que teriam provocado as lesões na barriga, eu já acho difícil. É bem claro, nesse caso, que se trata de um ferimento causado por um instrumento cortante”, diz Gaspar.

Para ele, também é bastante visível que a amputação das mãos foi causada por ação humana, já que os membros foram removidos de forma simétrica. “Às vezes o laudo de Blume se apega a alguns detalhes que não necessariamente invalidam o que foi apresentado posteriormente. O que ele tem razão é que os laudos do local de cadáver e necropsia realmente são vagos”, afirma.

 

CORTE NO PESCOÇO E ASFIXIA

Um detalhe das confissões dos acusados não condizia com o estado em que o cadáver foi encontrado: o corte no pescoço. Em diferentes ocasiões, alguns dos suspeitos admitiram que teriam cortado o pescoço de Evandro durante o suposto ritual. Hoje sabemos que as confissões foram feitas sob tortura e não ajudam a solucionar o caso.

O fato é que essa lesão nunca foi confirmada oficialmente. Então a principal pergunta é: nas fotos, no vídeo de necropsia, nos laudos de levantamento do corpo, é possível ver o corte no pescoço?

No laudo de exame de necropsia, por exemplo, não há nada que indique a existência desse corte. Além disso, em vários depoimentos nos júris, o próprio Moraes e Silva afirma que o cadáver não apresentava essa lesão.

O problema é que em um relatório do IML de Curitiba assinado por Silva e Carlos Roberto Ballin, a informação já é outra. No documento, de 14 de julho de 1992, os dois responsáveis pelo exame respondem a uma série de perguntas da Polícia Civil do Paraná. A finalidade era averiguar se os detalhes dados nas confissões – inclusive o corte no pescoço – correspondiam com o estado do corpo.

DOWNLOAD Ofício do IML confirmando compatibilidade dos relatos com estado do corpo

Uma das questões era a seguinte: “há equivalência entre as anotações feitas no laudo de necropsia em 12 de abril de 1992 e os interrogatórios dos suspeitos Osvaldo Marcineiro, Vicente de Paula Ferreira e Davi dos Santos Soares de 7 de julho”?

Ambos os médicos responderam que “existe perfeita correspondência entre as descrições contidas nos depoimentos prestados com as lesões descritas no laudo”. As discrepâncias entre esse documento, o exame de necropsia e os depoimentos de Moraes e Silva jamais foram explicadas de forma satisfatória.

Para o perito Gaspar, é difícil que os médicos tenham ignorado um ferimento como o corte no pescoço. “Eu não acho que esse tipo de lesão passaria batido pelos legistas. E não sei dizer por que existe essa contradição no documento do IML. O laudo de necropsia é muito incompleto, o que dificulta tudo”, completa.

Em várias das confissões, os acusados afirmavam que tinham primeiro estrangulado Evandro e depois cortado o pescoço da vítima. Para um olho treinado, a marca de estrangulamento é visível tanto no vídeo de necropsia quanto nas fotos. Além disso, essa lesão consta no laudo de necropsia, diferentemente do corte.

Na fita VHS do grupo Águia, da Polícia Militar, Osvaldo diz que estrangularam o menino. Se essa fosse a única confissão existente, ela estaria de acordo com o que concluiu o laudo de necropsia. Mas esse não era o caso.

A confusão fica ainda maior quando o relatório do IML declara que “a existência de putrefação mais acentuada ao nível das regiões materiais e posterior do pescoço evidencia a presença de ferida produzida por instrumento corto-contundente”.  Instrumento corto-contundente é aquele que gera uma lesão por ação dupla – tanto pelo gume do objeto quanto pela pressão que exerce. Os exemplos mais usuais são guilhotinas, machados, enxadas, facões e até dentes.

Além da área mais necrosada em torno do pescoço, outro indício sinalizava a asfixia como possível causa da morte da criança: os dentes rosados. A explicação técnica é a seguinte: quando o sistema circulatório é exposto a uma tensão muito forte, os vasos capilares da polpa dentária se rompem e o sangue que vaza concede uma cor rosada aos dentes de leite.

No laudo de necropsia lê-se que Evandro “teve morte violenta com características de asfixia mecânica”. A complicação é que, segundo especialistas consultados para o podcast, há sim sinais de que o garoto morreu asfixiado, mas não necessariamente de forma violenta.

De acordo com manuais de Medicina Legal, existem vários tipos de asfixia mecânica: enforcamento, estrangulamento, esganadura (que seria tipicamente homicida) e até afogamento. Para se determinar qual o tipo empregado a um corpo, deve-se analisar outros elementos, como os órgãos internos e o estado do pescoço. No caso Evandro, no entanto, o que sobrou no cadáver para essa avaliação foram apenas os dentes rosados e a área necrosada ao redor do pescoço.

Em diversos momentos durante os depoimentos, o médico Francisco Moraes e Silva reforçava que a dificuldade em estabelecer a causa exata da morte se dava por conta do avançado estado de decomposição do corpo. Alguém esganou a criança? Essa é a causa mais provável. Pode ter sido acidente? Sim, apesar de pouquíssimo provável. Por essa ótica, é possível que a lesão na coxa esquerda, por exemplo, tenha provocado um grande sangramento e, como consequência, causado o fenômeno dos dentes rosados.

 

RETIRADA DAS VÍSCERAS

Sobre a retirada das vísceras do corpo, uma pergunta é sempre frequente: quem realizou os cortes sabia o que estava fazendo? Isso seria verificável nas lesões do abdômen, do tórax e das costelas.

De acordo com a acusação, os machucados teriam sido causados com instrumentos disponíveis na serraria. Todos eles foram periciados na época e traços de sangue não foram encontrados em nenhum deles. Mas como o ritual teria acontecido em abril e as prisões apenas em julho, a promotoria dizia que muitas informações teriam se perdido nesse meio tempo.

De qualquer modo, novamente existem conflitos entre Drischel e Silva quando o assunto é a habilidade da pessoa que causou as lesões no corpo encontrado. Para o primeiro perito, os cortes nas costelas em movimento linear e criando degraus, como se fosse uma “escada”, indicam que o material usado seria uma espécie de tesoura de poda. Além disso, ele considerava o responsável bastante habilidoso, devido à simetria e a sequência dos cortes na região do abdômen e do tórax.

Já Marques e Silva defendia que as lesões foram produzidas por serras. Em depoimento prestado em 2004, ele afirma que se o suspeito fosse alguém “especializado em abrir crianças”, certamente teria usado um bisturi para as cartilagens.

Essa guerra de narrativas jamais foi totalmente resolvida e, até hoje, não é possível saber como exatamente os cortes foram feitos.

 

ESTADO DE DECOMPOSIÇÃO

O estado avançado de putrefação do corpo é outro elemento recorrente no caso. A acusação afirma que Evandro foi morto em 7 de abril e encontrado no dia 11. Diante dessa alegação, há quem acredite que o cadáver achado no matagal estava muito decomposto para um espaço tão curto de tempo entre os eventos.

A explicação do médico Moraes e Silva para essa situação é bastante convincente, de acordo com especialistas. Ao ser questionado sobre o assunto durante o júri de 2004, ele afirma que o estado de decomposição do corpo procede em alguns elementos, mas em outros não. “Existem sinais de quatro dias? Existem. Existem sinais que não são de quatro dias? Existem também”, declarou na época.

Segundo ele, o avanço na putrefação em partes específicas aponta que o corpo pode ter sido colocado em um lugar fechado por um tempo antes de ser jogado no matagal. Esse local poderia ser um porta-malas, por exemplo. Um espaço confinado tende a acelerar o processo de decomposição.

Existe aqui a hipótese de que o corpo achado no mato teria saído de um necrotério. Segundo essa teoria, ele teria sido conservado em um freezer e apresentava até mesmo marcas de congelamento, sem exalar cheiro.

Havia gente na época, como Drischel, que relatava que o cadáver não tinha odor algum e que esse era um indicativo de que ele era antigo. Por outro lado, existem depoimentos de pessoas que sentiram o cheiro do corpo, como é o caso da delegada Leila Bertolini, do Grupo Tigre. Ambas as versões foram repassadas em depoimentos durante os julgamentos.

Já sobre a queimadura de gelo, é importante frisar que ela só ocorre em pessoas vivas, de acordo com especialistas. A marca que fica na carne congelada, por exemplo, não é exatamente uma queimadura. Essa desconfiança de que o corpo teria sinais de congelamento veio, mais uma vez, de Drischel. No júri de 2004, ele falou sobre a existência de uma “substância esbranquiçada” na lateral esquerda do cadáver, o que apontaria para a presença da tal queimadura.

Contudo, Francisco Moraes e Silva, que era um dos médicos legistas, jamais levantou essa possibilidade.

 

EXUMAÇÃO

Durante depoimento no júri de 2004, o médico Moraes e Silva faz uma pergunta interessante: se de fato ainda existiam dúvidas sobre a identidade do corpo, por que a defesa nunca pediu um novo exame com os dentes e o fêmur do cadáver, que estavam guardados no cofre do IML? Por que os advogados dos acusados, que sabiam da existência desses materiais, sempre insistiram na exumação?

Segundo o promotor Paulo Markowicz, entrevistado para o podcast, a própria acusação desconfiava que o cadáver enterrado na cova de Evandro poderia ter sido retirado de lá em algum momento e substituído por outro. “Não ficou um policial guardando o túmulo o tempo todo. Havia essa suspeita, de que o corpo enterrado lá não era de Evandro. Então nós não iríamos concordar com isso, porque aí o caso estaria acabado. Por que a defesa não quis fazer a exumação com os dentes e o osso? Eles não queriam, eles queriam cemitério”.

Como suporte dessa teoria, o promotor relembra a ossada de menina encontrada no mesmo matagal em Guaratuba em 1993. O cadáver usava as roupas de Leandro Bossi, que havia desaparecido um ano antes.

Aqui vale relembrar: a identidade da menina nunca foi descoberta e não há nenhuma prova que confirme a suspeita da promotoria sobre a violação do túmulo de Evandro. Não há certeza também se os dentes e o fêmur ainda estão no IML ou se já foram destruídos.

 

POLÊMICAS DO DR. FRANCISCO MORAES E SILVA

O médico Francisco Moraes e Silva, conhecido como “Chico Louco”, é uma das figuras mais polêmicas envolvidas na perícia do caso Evandro, por conta das contradições que o cercam. Em todos os depoimentos que prestou, ele dizia que as confissões dos acusados não batiam com o estado do corpo. Só que em 1992, o ofício do IML que ele próprio assinou falava exatamente o contrário. Ele nunca conseguiu explicar essa história de maneira clara o suficiente.

No julgamento de 2005, a reputação do médico passou a ser questionada, artifício que foi utilizado pela defesa. Na ocasião, os advogados citavam que Silva havia sido processado e exonerado do cargo de diretor do IML de Curitiba por suspeita de abuso sexual e de venda de cadáveres a universidades.

Esses casos são relatados por jornais da época. O primeiro foi noticiado pela Folha de Londrina no dia 4 de fevereiro de 2000. A matéria afirma que duas adolescentes acusaram Silva de abuso durante exames.

Oito dias depois, nova reportagem na Folha de São Paulo informa que o então diretor do IML havia sido afastado do cargo por causa de supostas irregularidades na emissão de atestado de óbito. Ele era suspeito de participar de um esquema que fraudava laudos para ficar com o dinheiro do seguro obrigatório, pago em caso de mortes no trânsito.

Mais uma denúncia contra o médico é divulgada na revista Isto É em 5 de julho de 2000. Agora ele era acusado de envolvimento em um sistema de venda de cadáveres para universidades da região sul e sudeste do Brasil. De acordo com a reportagem, “peças” humanas eram vendidas a um valor de R$ 1,8 mil. O corpo era dividido em partes – cabeça, tronco e membros – e tinha os órgãos e tecidos retirados e repartidos.

Mais recentemente, uma das últimas acusações que o ex-diretor do IML sofreu foi no caso de feminicídio da fisiculturista Renata Muggiati, em 12 de setembro de 2015. A denúncia dá conta de que ele auxiliou na elaboração de um laudo falso um mês após a morte da vítima, sem ter acesso ao corpo ou aos exames complementares. O objetivo seria esconder a verdadeira causa da morte de Renata, que foi apontada como asfixia mecânica. Inicialmente, a polícia tratou o caso como suicídio, já que ela caiu da janela do apartamento onde morava. Mais tarde, as investigações indicaram que ela teria sido morta e depois jogada do 31º andar pelo então companheiro, o médico Raphael Suss Marques.

Ao que tudo indica, Silva virou réu no caso, que correu em segredo de Justiça. Em matérias mais recentes, no entanto, apenas o outro médico envolvido, Daniel Colman, era citado como réu. Não é possível saber qual é o exato desfecho de cada acusação contra Marques e Silva.

É importante reforçar que uma pessoa ter sido acusada de algo, ou mesmo cometido um crime anos depois dos eventos do caso Evandro, não significa necessariamente que houve má conduta em 1992. Isso pode ou não ser indício de algo.

Quando se olha para promotores, policiais e peritos, é difícil encontrar alguém que não se envolveu em problemas ou polêmicas após 1992 – e, na maioria dos casos, é difícil provar qualquer coisa.