Enciclopédia do caso Evandro

EXTRAS EPISÓDIO 29

 

DOCUMENTOS SOBRE ANÁLISE DO CADÁVER

DOWNLOAD LAUDO LEVANTAMENTO DE CADÁVER*

DOWNLOAD LAUDO NECROPSIA*

DOWNLOAD LAUDOS DNA EVANDRO

DOWNLOAD LAUDO ARLINDO BLUME – “TRABALHO PERICIAL”*

*As fotos do cadáver foram subtraídas das versões dos documentos disponíveis para download.

 

A DENTISTA DE EVANDRO

O corpo de Evandro Ramos Caetano foi encontrado em um sábado de manhã, no dia 11 de abril de 1992, em Guaratuba. À tarde, após o trabalho da equipe de criminalística da cidade, ele foi levado ao Instituto Médico-Legal (IML) de Paranaguá. Lá, ele foi reconhecido pelo pai, Ademir, e mais tarde seguiu para Curitiba, onde só foi examinado na manhã seguinte.

Todos os problemas que a defesa aponta no processo de identificação pela arcada dentária ocorrem nesses dois dias, 11 e 12 de abril. Dessa vez, quem está no centro das discussões é a dentista de Evandro, Adaíra Kessin Elias. Na ocasião, ela afirmou que o estado dos dentes do cadáver correspondia com os procedimentos que ela havia feito em Evandro quando ele ainda estava vivo. A princípio, essas constatações foram realizadas sem as fichas do paciente.

Em depoimento no júri de 2004, a odontolegista Beatriz Sotille França, responsável pelo exame de arcada dentária, relatou que Adaíra viu o corpo no IML de Paranaguá no dia 11 de Abril, e só no dia seguinte (12 de Abril) prestou testemunho no IML de Curitiba. Ou seja, ela poderia ter antes analisado a boca do cadáver para, depois, repassar as informações para Beatriz como se estivesse falando de memória. Esse é o primeiro ponto atacado pela defesa e um bom exemplo de como a cadeia de custódia de evidências deve ser respeitada.

Por outro lado, a situação precisa ser colocada em contexto: uma pequena cidade do litoral tem um caso notório de criança desaparecida. Um corpo irreconhecível é encontrado e todos querem identificá-lo o mais rápido possível. Então os responsáveis pela investigação chamam a dentista que atendia um grande número de crianças da região. Como é fim de semana e ela trabalhava em um órgão público, não tinha acesso às fichas dos pacientes no momento. Ela só podia contar com a memória.

Diante desse cenário, a defesa conseguiu um terreno fértil para questionar o procedimento, com base em três elementos principais: o relato de memória, o laudo do exame de arcada dentária e as fichas necessárias para a confirmação da identidade do cadáver.

 

O DENTE “64”

Uma das maiores confusões dessa etapa de identificação do corpo envolve o dente “64”. Aqui vale uma explicação técnica: um adulto tem em média 32 dentes, que são numerados a partir de um esquema de quadrantes – o sorriso é dividido em quatro partes, como se uma “cruz” o cortasse no meio. Todos os dentes do primeiro quadrante têm o número 1 na frente, o do segundo têm o número 2, e assim sucessivamente. Na prática, os dentes são numerados de 11 a 18, 21 a 28, 31 a 38 e 41 a 48.

 

Separação dos quadrantes em dentes de adultos

 

Numeração parcial dos dentes de adultos em cada quadrante

 

Esquema mostrando numeração completa dos dentes de adultos em cada quadrante

 

 

Nas crianças, no entanto, a contagem é um pouco diferente, já que elas têm em média 20 dentes de leite, além dos permanentes. Os dentes de leite também são separados em quatro quadrantes: 5, 6, 7 e 8. Eles são numerados, então, de 51 a 55, 61 a 65, 71 a 75 e 81 a 85.

 

Numeração parcial dos dentes de crianças em cada quadrante

 

Esquema monstrando a numeração completa dos dentes de crianças em cada quadrante

 

Dito isso, é possível analisar o Laudo de Exame Odontológico de Identificação, elaborado em 12 de abril de 1992 por Beatriz França. Ele descreve os procedimentos que Adaíra havia feito em Evandro e que, em tese, seriam os mesmos encontrados no cadáver. Entre eles, o documento afirma que o dente “64” do menino tinha sido extraído há aproximadamente um ano.

 

Trecho do laudo de necropsia, no qual a Dra Beatriz Sottile França registrava a fala da Dra Adaíra: “afirmou ter extraído o dente 64 há um ano aproximadamente”

 

O problema é que, logo no início do laudo, a odontolegista afirmava que o cadáver possuía o dente 64 e que ele havia passado por uma restauração. Portanto, as informações do próprio documento eram contraditórias: a dentista de Evandro dizia uma coisa, a legista em certo momento aponta outra.

 

Trecho do laudo de necropsia, no exame de arcada dentária. O dente 64 é citado como presente, com restauração

 

No júri de 2004, Beatriz França tentou explicar a situação como um erro de datilografia, mas acabou causando ainda mais confusão. Ela disse que a falha estava na menção ao dente 56, cuja numeração não existe. Mas o laudo não cita o número 56 em nenhum momento. Tudo indica que ela se enganou.

Com base no seu depoimento de 1998, no qual ela explicava um pouco melhor a questão do erro de datilografia, a dedução mais plausível é que o erro aconteceu entre os números 54 e 64. Por essa lógica, a dentista teria extraído o dente 54 de Evandro, que teria sido erroneamente registrado como 64 no laudo. Essa hipótese faz sentido, já que o exame de necropsia constatou que o dente 54 estava “ausente – alvéolo ósseo fechado”. E, de fato, quando um dente é removido há mais de um ano, o buraco que ele deixa é depois preenchido.

 

Trecho do exame de arcada dentária sobre o dente 54, constatando sua ausência e o “alvéolo ósseo fechado”, o que indica que ele teria sido retirado há um ano

 

DOWNLOAD Depoimento Beatriz Sotille França (júri 1998)

 

PROBLEMAS NAS FICHAS

No júri de 1998, a odontolegista falou sobre a primeira vez que teve contato com as fichas de tratamento odontológico de Evandro. Segundo ela, o marido de Adaíra a procurou e lhe entregou os documentos – não se sabe a data exata em que isso ocorreu. A dentista então tirou cópias, as devolveu para ele, e disse que os papéis deveriam ser enviados à juíza de Guaratuba, Anésia Edith Kowalski. Quando as fichas apareceram em juízo, no entanto, coisas estranhas aconteceram.

De acordo com o relato, Beatriz França viu ao menos duas vezes as fichas que confirmavam a extração do dente 54 de Evandro: primeiro com o marido de Adaíra e, posteriormente, quando elas foram enviadas por fax ao IML em dezembro de 1992. Só que essas eram apenas cópias, e havia a requisição para o envio das originais. Até o capitão Valdir Copetti Neves, responsável pela Operação Magia Negra, participou dessa etapa das investigações. Na ocasião, a dentista recebeu um ofício do capitão, pedindo por um exame comparativo entre os documentos e o cadáver.

Quando as 11 fichas foram encaminhadas oficialmente, uma delas estava claramente adulterada, inclusive em papel de textura diferente. Outras estavam borradas, ilegíveis, e em nenhuma delas havia o registro da extração do dente 54.

O juízo de Guaratuba foi informado e, após alguns dias, uma 12ª ficha foi enviada, dessa vez contendo a extração do dente. Só que aqui surgia mais uma discrepância: a data do procedimento não era de um ano antes do crime, como Adaíra havia comentado, mas sim de 23 de janeiro de 1992.

A odontolegista repassou todos esses problemas ao diretor do IML e um inquérito chegou a ser aberto para investigar o caso. O resultado das investigações sobre as fichas, porém, não é conhecido por Beatriz e não é citado no processo como algo relevante. Por isso, não é possível saber o que realmente aconteceu.

Ainda assim, claramente há problemas nas fichas odontológicas. Somente após reorganizá-las e atestar quais seriam confiáveis, Beatriz escreveu um segundo laudo complementar, comparando o corpo com as informações encontradas nos documentos.

Esse novo relatório, de 28 de dezembro de 1992, aponta que apenas três fichas eram legíveis. A conclusão contida nele é de que os tratamentos dentários do paciente Evandro correspondem com os encontrados na arcada dentária do cadáver.

 

DOWNLOAD Laudo Exame Odontológico Complementar

 

CONSPIRAÇÕES?

Para os que acreditam que o corpo não é de Evandro, todo o procedimento de exame de arcada dentária é duvidoso. As principais hipóteses eram de que houve negligência no processo ou ainda de que a dentista do menino faria parte de uma conspiração contra a família Abagge.

Nessa segunda teoria, as pessoas diziam que o relato de Adaíra não era confiável, por se basear principalmente na memória. Afinal, como já mencionado, quando o cadáver estava em Paranaguá, a dentista foi chamada para verificar os dentes e analisar se poderia ou não ser Evandro. Isto é, ela viu a boca da criança antes de falar com a odontolegista e poderia ter simplesmente notado as extrações e depois as descrito como se fosse de memória.

Além disso, outro fato que alimentava as ideias conspiratórias era que, naquelas eleições de 1992, Adaíra foi eleita vereadora pelo PMDB – o mesmo partido do então governador Roberto Requião.

Tudo isso somado à adulteração das fichas, ao envolvimento do capitão Copetti Neves e ao registro do dente “64”, aumentava ainda mais a paranoia de que peças eram movimentadas nos bastidores.

 

DENTES ROSADOS

Hipóteses à parte, pode ser que tudo isso não passasse de um processo de identificação mal feito, pois é inegável que houve problemas na cadeia de custódia. E os advogados de defesa tinham todo o direito de explorar essa tática. Além de todas as complicações já citadas, eles atacaram outro elemento do laudo odontológico: os dentes rosados.

Em concordância com o laudo de necropsia, que mencionava uma área de putrefação avançada em torno do pescoço da criança, a odontolegista apontava a existência de dentes de leite com coloração rosada. Segundo ela, esse seria um indício de morte violenta por asfixia mecânica, conforme relatavam alguns estudos que ela acompanhava no meio científico. A explicação técnica é a seguinte: quando o sistema circulatório é exposto a uma tensão muito forte, os vasos capilares da polpa dentária se rompem e o sangue que vaza concede uma cor rosada aos dentes de leite.

Aqui está o ponto central sobre a discussão da causa da morte. O médico-legista Francisco Moraes e Silva, responsável pelo exame de necropsia, declarou que não era possível especificar o tipo de lesão que causou a morte do garoto, porque a área ao redor do pescoço estava em estado avançado de decomposição. Por isso, com a informação dos dentes rosados, concluiu-se que a vítima sofreu “asfixia mecânica”, que é um termo mais genérico e abrangente.

A tese da defesa gira em torno da possibilidade de que o cadáver poderia ter saído de um necrotério. Se esse fosse o caso, se fosse de fato de uma criança que tinha morrido antes de Evandro desaparecer, os dentes rosados apareceriam de qualquer forma por conta do processo natural de putrefação, independente da morte por asfixia mecânica.

No geral, essa é uma discussão que depende de inúmeros fatores, onde não há respostas com maior grau de certeza.

Para a defesa, essas questões foram analisadas de forma apressada e superficial. No fim, nem os médicos-legistas ou a odontolegista foram capazes de especificar o tipo de asfixia, que poderia ser afogamento, esganadura, sufocação direta ou indireta, entre outros. A conclusão da causa da morte era pouco elucidativa.

Por esse motivo, os advogados de defesa declaravam que os legistas se basearam em princípios muito frágeis e sequer apontaram a causa da morte em si, mas sim a consequência da morte. O médico Francisco Marques e Silva rebatia a acusação, alegando que o estado de decomposição do corpo e a ausência de órgãos internos impediam um exame mais detalhado. Por isso, ele preferiu manter um termo mais amplo no laudo, sem mencionar o tipo específico de asfixia.