EXTRAS EPISÓDIO 31
DOCUMENTOS SOBRE ANÁLISE DO CADÁVER
DOWNLOAD LAUDO LEVANTAMENTO DE CADÁVER*
DOWNLOAD LAUDO ARLINDO BLUME – “TRABALHO PERICIAL”*
*As fotos do cadáver foram subtraídas das versões dos documentos disponíveis para download.
O EXAME DE DNA
No júri de 1998, as Abagge foram absolvidas após os jurados serem convencidos de que o corpo encontrado no matagal em Guaratuba não era de Evandro. O Ministério Público do Paraná recorreu e, em 2003, o julgamento foi anulado, por se entender que a decisão dos jurados foi contrária às provas dos autos. É nesse ponto que o exame de DNA do Instituto Gene de Belo Horizonte tem papel central.
O teste foi realizado em três partes e teve os resultados finais divulgados no dia 21 de março de 1993. De acordo com os laudos, os materiais coletados como amostra eram: um fêmur, dois dentes (um permanente e um de leite), e um bloco histológico com fragmentos de músculo, todos retirados do cadáver; e o sangue de Ademir e Maria Caetano, os pais de Evandro, para comparação. A conclusão do exame de que o corpo era mesmo do menino sempre foi questionada pelos advogados dos acusados.
Para tentar responder as questões levantadas pela defesa e outras dúvidas técnicas sobre o teste, especialistas foram consultados para esse episódio do podcast. A primeira é Mariana Galvão Ferrarini, engenheira de Bioprocesso e Biotecnologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ela tem mestrado em Biologia Celular e Molecular e doutorado tanto nessa área quanto em Bioinformática – campo de pesquisa também do pós-doutorado.
O MÉTODO PCR
A primeira pergunta sobre o laudo é a seguinte: a defesa dizia que o método utilizado para a realização do exame de DNA, chamado PCR, não era confiável e jamais seria aceito em um júri hoje em dia. PCR é a sigla em inglês para Polymerase Chain Reaction, que significa Reação em Cadeia da Polimerase. Mas, afinal, o que é a PCR? Como ela funciona?
Segundo Mariana Ferrarini, a polimerase é uma enzima que consegue amplificar o DNA várias vezes para facilitar a análise na hora do teste. “Por exemplo, você extrai DNA de uma amostra, que no caso foi do fêmur, e essa enzima vai amplificá-lo diversas vezes, para que no final haja uma quantidade detectável de DNA. A PCR nada mais é do que aumentar a quantia de amostras que você tinha no início”, explica.
Ainda de acordo com ela, o DNA é uma molécula relativamente estável e que não se degrada com facilidade. Por isso, é possível recuperá-lo de amostras antigas, que já estão deterioradas, como foi o caso do corpo da criança encontrado no matagal. “Claro que a qualidade do DNA pode variar. A técnica da PCR vai depender da qualidade que você tinha no começo. Então se o DNA estava inteiramente degradado, pode ser que o produto final seja comprometido”, completa Ferrarini.
Quem também fala um pouco sobre o método PCR é o perito Gabriel Gaspar. Ele é pós-graduado em Perícia e Investigação Criminal e trabalha como instrutor dessa área no curso do Exército.
O perito comenta que a PCR é um procedimento bastante utilizado na atividade forense. “É um método já vigente, não sei como era na época, mas hoje em dia ele é bem confiável sim. Nunca aconteceu comigo de questionarem a PCR”, afirma.
O LAUDO PRELIMINAR
A leitura de Ferrarini sobre o laudo preliminar inconclusivo de 7 de novembro de 1992 é de que os responsáveis pelo teste não conseguiram amplificar o DNA. “Eles não chegaram a uma quantidade detectável de material e acho que tentaram uma segunda vez, quando finalmente tiveram sucesso. Nessa ocasião, eles provavelmente extraíram uma maior quantia de DNA de outra porção do fêmur que talvez estivesse menos degradada. Acredito que tenha sido isso, mas não tenho certeza”, pondera.
Ela esclarece que a falta de material suficiente na primeira análise não invalida a segunda. “Para mim não justifica você dizer que a segunda foi inconclusiva só porque a primeira teve esse resultado”.
A mesma opinião é compartilhada pelo perito Gaspar. Para ele, é evidente que o laudo preliminar aponta apenas que a amostra do fêmur estava degradada e que não poderia ser utilizada para o exame. “A única conclusão do primeiro teste é de que a amostra era insuficiente. Posteriormente, eles usaram a técnica da PCR e, no segundo laudo, conseguiram fazer o teste de paternidade, que indicou os 99,997% de probabilidade do DNA corresponder ao sangue dos pais de Evandro”.
TESTE DE PATERNIDADE
Como se trata de um teste de paternidade e não diretamente da identificação direta do corpo, ele é ainda mais atacado pela defesa. Isso porque, como explica Gaspar, se o DNA fosse de irmãos de Evandro, por exemplo, o exame também daria positivo. “Se eu fosse burlar alguma coisa, eu pegaria a amostra de sangue de um dos irmãos de Evandro. Ou até mesmo o dente de leite, se a dentista tivesse guardado, com uma má intenção e tal. Mas o fêmur já não me parece algo que se pudesse forjar. A não ser que o osso fosse de outra criança morta e os pais dessa vítima fornecessem o sangue deles”, diz o perito.
Sobre esse assunto, a engenheira de Bioprocesso fala que, apesar de ter pouco conhecimento nessa área específica, o fato de ser um teste de paternidade não foi um choque para ela, nem para especialistas com quem conversou. “A conclusão geral é que a defesa, ao mesmo tempo, tem e não tem razão nos questionamentos. Eles têm pontos bem fortes. Um deles é que não houve a preservação da cadeia de custódia. Na verdade, ninguém tem certeza se o que foi testado era realmente o que havia sido coletado na cena do crime. Essa é a parte que eles têm razão”. Aqui ela se refere ao fato de que a coleta e o transporte das amostras não foram acompanhados pela promotoria e nem pela defesa.
Por outro lado, para Ferrarini, os documentos deixam claro que o teste foi feito com pedaços do fêmur. “Eles devem ter feito com mais de um fragmento do osso, que foram extraídos e testados separadamente. Para mim, o documento está dizendo claramente que usou o fêmur”.
PROBLEMAS LEVANTADOS PELA DEFESA
Outro aspecto que a defesa estranhou é o fato do médico-geneticista Sérgio Danilo Pena, responsável pelo exame, não ter prestado compromisso legal ao assinar o laudo. Isso significa que a participação dele no processo foi apenas como assistente técnico e não como perito.
Na prática, as consequências em caso de erro ou fraude, por exemplo, não seriam tão graves. Na época, ele justificou a decisão em ofício enviado à Justiça, alegando que “a perícia em questão não foi realizada a fim de instruir os autos da referida ação penal, mas sim atendendo a uma solicitação do diretor do Instituto Médico-Legal”.
No júri de 2011, o advogado de defesa de Beatriz, Adel El Tasse, juntou três pareceres técnicos assinados por diferentes especialistas. Um deles era sobre marcas de torturas que a ré ainda possuía no corpo, especialmente dos choques elétricos nos dedos. O segundo questionava todo o procedimento do laudo de necropsia e, por fim, o terceiro levantava dúvidas sobre o laudo de DNA do Instituto Gene. Esse último, de nove páginas, foi assinado por um perito forense de Santa Catarina, Zulmar Vieira Coutinho.
O argumento central do documento era de que os kits utilizados no exame vieram dos Estados Unidos, onde a variação genética é diferente da do Brasil. Na época, Guaratuba tinha cerca de 20 mil habitantes, o que significaria que havia pouca variedade nesse sentido, já que as pessoas casavam entre si, às vezes com parentes mais distantes. Para a defesa, isso era sinal de que havia grande possibilidade de o exame resultar em um falso positivo.
Em relação à variação genética, Ferrarini explica que a PCR é feita especificamente para uma porção do genoma, a sequência de DNA, onde geralmente há variabilidade nas populações. Uma parte das pessoas tem a sequência ou alelo A, por exemplo, a outra tem a B, ou a C, D, E ou F. “Se você encontra em um casal um alelo que não é comum e o filho tem esse mesmo alelo, a probabilidade de confirmar a paternidade aumenta. O teste de DNA é baseado nisso e ele não examina só uma, mas algumas regiões do genoma. Nesse caso, foram usadas seis porções, que para a defesa não foram suficientes”.
Em resumo, a defesa bate no ponto de que com esse número não é possível dizer com uma confiabilidade de 99,997% – como o exame aponta – que o corpo é do filho de Ademir e Maria. “Eu não sei exatamente todos os cálculos, ele é bem complexo, mas acredito que o Instituto Gene sabe fazer da maneira correta”, afirma a engenheira.
Após a gravação, Ferrarini realizou uma troca de emails com Ivan e o biólogo Bruno Zagonel Piovezan (especialista em genética) realizando esse cálculo por conta própria. Esses emails com os cálculos, nos quais citam as fontes utilizadas, podem ser conferidas aqui.
VARIAÇÃO GENÉTICA
Como na época os kits utilizados no exame vieram dos Estados Unidos, as porções do genoma eram previamente escolhidas e já chegavam prontas para uso. Ferrarini comenta que analisou cada um desses marcadores genéticos para compará-los com os da população brasileira e concluiu que, de modo geral, eles poderiam sim ser usados para o teste sem grandes problemas.
Além de criticar os kits norte-americanos, a defesa também alegava que as frequências genéticas podem mudar drasticamente dependendo da população do local. “Em uma cidade como São Paulo, por exemplo, em que as pessoas vêm de diversos lugares e se misturam, você tem uma miscigenação muito maior de raça, cultura e também de genoma. Quando você vai para um município muito pequeno, como Guaratuba, onde as pessoas tendem a casar entre si, não há uma variabilidade grande desses alelos. Então qualquer criança ou adulto terá um código genético mais próximo. É isso o que a defesa fala”, explica a engenheira.
Apesar das críticas serem válidas, segundo a especialista, a defesa bate nesses pontos sem nenhum tipo de prova ou cálculo com base científica. “Nesse aspecto eu não concordo, porque é muito achismo. Em 2011, quando houve o novo júri, eles poderiam ter ido lá e feito esse teste para levantar o código genético das pessoas e usar como base para a argumentação, mas eles não fizeram”.
Quando, então, a defesa apresenta um documento que afirma que a probabilidade de vínculo genético não é de 99,997%, mas “em torno de 25%”, não há nada que suporte essa afirmação. “Eles não oferecem nenhum cálculo, nenhuma prova de onde tiraram esses 25%. Em um laudo, para mim isso está faltando. Se fosse algo com base científica, teria que ter as fontes”, argumenta a engenheira.
Ainda que o teste para levantar o código genético da população seja relativamente simples, a defesa encontraria um grande obstáculo: esse tipo de procedimento depende de uma série de aprovações, inclusive de um comitê de ética. Por isso, mesmo que os moradores se voluntariassem para o exame, um estudo genético dessa magnitude seria difícil de ser conduzido.
FALSO POSITIVO
Os advogados dos acusados sempre defenderam a possibilidade do exame de DNA ter dado um falso positivo. Qual, então, é a chance de um teste de paternidade gerar esse resultado?
De acordo com a engenheira de Bioprocesso, a resposta certa é “depende”. O primeiro fator que pode interferir nesse sentido é a escolha dos marcadores genéticos, caso eles sejam muito comuns entre a população, como a defesa alegava. O problema é que isso não passa de especulação, sem a realização de testes que comprovem uma suposta falha.
O outro elemento capaz de confundir o exame é o parentesco. É muito provável que, em um teste de paternidade como o realizado no caso Evandro, uma amostra do irmão do pai – ou seja, o tio do garoto -, também resultasse em um falso positivo. Isso acontece porque a carga genética entre familiares próximos é muito parecida.
Independente dessas possibilidades, no entanto, Ferrarini declara que as maiores fontes de erros em laudo não vêm diretamente desses fatores, mas sim da troca de amostras. “Uma pessoa colocar o material em um tubo errado, por exemplo, acontece com maior frequência do que a gente imagina. Claro que não em uma frequência absurda, mas acontece. Eu acredito que a maioria dos erros nos testes de DNA não tem origem na técnica em si, na parte do laboratório, mas no manuseio das amostras”.
ESPECIALISTAS RESPONDEM: O CORPO É DE EVANDRO?
O biólogo Bruno Zagonel Piovezan, mestre em Genética e especialista em Histocompatibilidade, também foi consultado para o podcast. Ele foi convidado a responder a grande pergunta: com base nos documentos à disposição, o corpo é ou não é de Evandro?
Piovezan diz que, apesar de os questionamentos da defesa terem lógica, o teste de DNA é praticamente incontestável. “O único viés que colocaria esse laudo em dúvida seria se o cadáver fosse de um parente próximo de Evandro, tipo um irmão ou eventualmente um primo. O número de marcadores é o ideal? Eles são os melhores marcadores? Não, não são, mas é basicamente incontroverso, ao meu ver, ainda que os apontamentos da defesa façam sentido. Para mim, é gritantemente óbvio que é o Evandro nesse caso”.
A mesma pergunta foi feita para o perito Gabriel Gaspar. Para ele, não é possível dizer com 100% de certeza que o cadáver é mesmo o filho de Ademir e Maria, mas existem evidências que apontam que sim. “Há indícios mais fortes, como a idade da arcada dentária, que é compatível com a de Evandro. Tem a altura, que é uma questão muito vaga para mim, e o DNA, que é um indicativo mais forte. Ele só não é 100% conclusivo porque a coleta do material não foi acompanhada, ainda que o fêmur me pareça algo difícil de ser adulterado. Mas não podemos dizer com certeza que não houve troca nas amostras”, completa.
Para Ivan, não há dúvidas de que o corpo é de Evandro. Mesmo com as especulações, ele considera o teste de DNA bastante sólido, já que foi feito com o que havia de melhor na época. Ele afirma que já conversou com vários especialistas que concordam com isso. No geral, geneticistas têm a opinião unânime de que o corpo é de Evandro.