Enciclopédia do caso Evandro

EXTRAS EPISÓDIO 32

 

DOCUMENTOS SOBRE ANÁLISE DO CADÁVER

DOWNLOAD LAUDO LEVANTAMENTO DE CADÁVER*

DOWNLOAD LAUDO NECROPSIA*

DOWNLOAD LAUDOS DNA EVANDRO

DOWNLOAD LAUDO ARLINDO BLUME – “TRABALHO PERICIAL”*

*As fotos do cadáver foram subtraídas das versões dos documentos disponíveis para download.

 

MATERIAIS ANALISADOS NO EXAME DE DNA

Além dos materiais coletados do cadáver encontrado no matagal em 11 de abril de 1992, também foram enviados ao Instituto Gene, em Belo Horizonte, os seguintes objetos apreendidos pela polícia: um bloco de alvenaria do escritório da serraria Abagge, contendo uma mancha de sangue aparentemente em forma de mão; um líquido encontrado em um pote de barro, que havia sido enterrado na frente de uma loja em Guaratuba; e um alguidar retirado da casa de Osvaldo Marcineiro. Todo o processo de obtenção desses materiais e seus respectivos laudos estão descritos no post da enciclopédia referente ao episódio 30.

Havia a suspeita de que a mancha no bloco de alvenaria seria um resquício do suposto ritual. Os primeiros exames realizados em Curitiba apontaram nela a presença de DNA humana, mas não foi possível comparar esse material genético com o de Evandro. A defesa sempre deu duas versões para a existência da mancha: a primeira era de que um bêbado que estava machucado dormiu uma vez no local e sujou a parede; e a outra era de que aquele lugar era uma serraria e, portanto, não seria incomum que trabalhadores se ferissem ali.

O bloco de alvenaria nunca teve grande destaque no processo. Por outro lado, as manchas avermelhadas no alguidar apreendido na residência de Osvaldo e o líquido do pote de barro foram bastante usados pela acusação, que alegava que essas eram provas materiais fortes de que um sacrifício havia sido conduzido pelo grupo. Isso se torna evidente na manifestação do Ministério Público no momento de pronúncia dos réus.

O Ministério Público do Paraná sempre reforçou que as primeiras análises em laboratório concluíram que em todos esses objetos havia indício de “sangue humano ou primata”. É importante ressaltar, no entanto, que essa interpretação está equivocada, uma vez que não existe DNA humano apenas em sangue. Ele também está presente em outros fluidos corporais, como saliva, suor e sêmen. Essa confusão entre DNA e sangue é bastante comum no processo e mostra como até mesmo as autoridades demoraram a entender esse conceito.

Em resumo, o Instituto Médico-Legal (IML) de Curitiba constatou a presença de sangue no alguidar e no líquido do pote de barro. Isso já seria esperado, pois Osvaldo havia dito anteriormente que participava de trabalhos com sacrifício de animais. A principal dúvida era: havia sangue humano nesses materiais? Como o IML não conseguiu responder essa pergunta de forma satisfatória, recomendou-se então o exame no Instituto Gene, que encontrou DNA humano em todas as peças analisadas.

O laudo conclusivo, de 21 de março de 1993, afirma, porém, que as tentativas de comparação com o perfil genético de Evandro não foram bem-sucedidas. O mesmo documento confirma que os materiais coletados do cadáver correspondiam com o DNA de Maria e Ademir Caetano, pais da vítima – o que indicava que a criança achada no matagal era de fato filha do casal.

 

HIBRIDIZAÇÃO FRACA

O exame do Instituto Gene foi realizado em três partes, com um kit já pronto importado dos Estados Unidos, da empresa Life Codes Corporation. No segundo laudo, de 9 de dezembro de 1992, um trecho chama a atenção. O relatório diz que todas as preparações do fêmur e dentes coletados do cadáver tiveram hibridização positiva, confirmando a origem humana. Já os demais materiais – a mancha no alguidar e o líquido do pote de barro – demonstraram hibridização fraca. Afinal, o que isso significa?

Para responder a essas dúvidas técnicas, o podcast consultou mais uma vez o biólogo Bruno Zagonel Piovezan, mestre em Genética e especialista em Histocompatibilidade. Ele explica que, apesar de não conhecer exatamente o kit utilizado na época, basicamente a deia é: cortar uma parte do DNA que é exclusiva de humanos e grudá-la em uma membrana de nitrocelulose.

Ou seja, o DNA é dupla fita e, por algum processo físico ou químico, você faz com que essa cadeia se separe e se torne uma fita simples. Esse DNA, que é derivado de uma sequência humana, está querendo se conectar a alguém que seja complementar a ele. A reação de uma se ligar na outra, nós chamamos de hibridização positiva, o que confirma que aquele material é de origem humana”, afirma o biólogo.

Já a hibridização fraca pode indicar duas situações: uma reação inespecífica, por algum problema que ocorreu durante o teste, ou que a quantidade de material é muito pequena.

Agora por que o do ‘fraca’? O DNA é transparente, então para que possamos enxergá-lo, são utilizadas técnicas como a que o laudo aponta, a da sonda quimioluminescente, que solta uma fluorescência. Não tenho como ter certeza sem olhar o kit da Life Codes, mas eles provavelmente usaram esse sistema de cores. Uma vez que acontece a hibridização, o DNA em potencial fica marcado, com uma coloração mais ou menos intensa”, comenta Piovezan.

 

Exemplo de método “Dot Blot”, conforme explicado no episódio. Os círculos mais fortes à esquerda representam as hibridizações positivas fortes, enquanto que aquelas os círculos à direita representam hibridizações positivas fracas

 

Essa coloração será proporcional à quantidade de material e à qualidade dos controles de teste utilizados. Quanto menos intensa a cor, mais fraca é a hibridização. “A princípio, se hibridizou, tem DNA humano. Mas como hibridizou fraco, pode ser que tinha pouco DNA ou que ele estava degradado. A minha tendência é dizer que de fato havia material genético humano ali, mas para ter certeza eu teria que saber mais sobre como o exame foi feito, se houve os controles, se não teve contaminação externa… Há uma série de protocolos e cuidados que deveriam ser tomados”.

Para o biólogo, no entanto, a quantidade de DNA mencionada pelo laudo, de 50 picogramas, é bastante razoável. É difícil dizer, no entanto, se isso significa que a hibridização deveria ter sido mais forte, porque tudo depende da sensibilidade do sistema usado e da forma como o exame foi conduzido.

Para se ter uma ideia, uma gota de sangue humano padrão, de 0,05 ml, contém entre 1.5 e 2 microgramas de DNA, de acordo com cálculo da empresa alemã de genética, Qiagen – ou seja, entre 1,5 milhão e 2 milhões picogramas.

Piovezan relembra, contudo, que no caso Evandro, a suposta gota de sangue analisada não era uma amostra qualquer. “Ela caiu em um alguidar, ficou exposta ao tempo, teve todo tipo de coisa. Então a qualidade desse DNA caiu muito. O DNA é uma molécula resistente, mas é óbvio que se aquilo foi manipulado, a qualidade vai cair. Se ele estiver muito quebrado, a hibridização não vai acontecer tão bem”, completa.

 

DE ONDE VEIO O DNA HUMANO?

Se partirmos do princípio de que não houve erro por parte do laboratório e de que os acusados são inocentes, existem ainda outras questões a serem abordadas. Considerando que Osvaldo relatava que fazia cortes de frangos, é possível ter havido no teste hibridização com sangue de galinha?

De acordo com o biólogo, a probabilidade disso acontecer é muito baixa. “Eu teria que ver exatamente qual é o desenho do kit da Life Codes, mas a chance de hibridizar com sangue de galinha é muito pequena. Eu não apostaria nela não”, declara.

Se esse é o caso, de onde veio, então, o DNA humano presente no alguidar e no líquido do pote de barro? Segundo Piovezan, a fonte desse material genético poderia ser, por exemplo, um corte no dedo, em que o sangue da pessoa teria pingado ali; ou ainda saliva, se alguém tivesse cuspido dentro dos objetos, por algum motivo.

Já a ideia de que o DNA veio apenas de impressões digitais são, para o biólogo, um exemplo ruim. “É possível, mas nesse caso fica só um resquício de pele que caiu ali, então é bem difícil. A impressão digital em si, eu acredito que não, mas um cuspe ou uma gota de sangue por conta de um corte são perfeitamente possíveis de serem detectados”.

 

RITOS RELIGIOSOS

Novas dúvidas surgem a partir da entrevista com Bruno Piovezan. É possível que o DNA humano detectado no alguidar e no líquido no pote de barro fossem de outra pessoa, que não Evandro? De repente, até de um dos pais de santo? Existem trabalhos em religiões de matrizes africanas que misturam sangue de animal com outros fluidos humanos?

Antes de partir para essas discussões, vale lembrar como a acusação monta o caso. Em entrevista para o podcast em 2017, o promotor Paulo Markowicz descreve a denúncia do Ministério Público: o assassinato de Evandro foi cometido em um “ritual de magia negra” na forma como o suspeito Vicente de Paula Ferreira havia proposto. “A morte do menino se deu com semelhança a sacrifícios de animais realizados em algumas práticas religiosas. Não há dúvida de que os responsáveis pelo crime perverteram os valores dessa religião. A forma com que o corpo foi encontrado bate com as confissões”, diz o promotor.

Hoje sabemos que as confissões foram feitas sob tortura e que contêm informações bastante contraditórias. A maior delas é o corte no pescoço do cadáver que, apesar da insistência da promotoria, nunca foi comprovado. De qualquer forma, a declaração de Markowicz continua: “Houve sim perversão da religião. Eles amputaram as mãos e as pontas dos dedos dos pés do menino. Com a galinha é assim, você corta o pescoço e faz o padê no alguidar. Tira-se as pontas das asas, os pés e o couro do frango, como foi feito com Evandro, que foi escalpelado. Além disso, remove-se os órgãos internos, que são colocados em um altar, como oferenda, durante três dias. As pessoas dizem que isso começaria a trazer mau cheiro, mas aí tem o lado espiritual, porque parece que se faz de um jeito que não chega nem mosca perto”, completa.

O padê mencionado pelo promotor é a oferenda à entidade colocada em um alguidar, constituída de alimentos, bebidas e outros elementos, como imagens e velas.

Aqui, para que se avance no debate, é necessário ter em mente que nenhuma religião de matriz africana defende ou pratica sacrifício humano. Para a acusação, os responsáveis teriam deturpado os valores religiosos ao cometerem o assassinato.

 

COMPARAÇÕES: O CORTE NO PESCOÇO

Quem explica melhor as práticas nas religiões de matrizes africanas e as compara com o que foi encontrado no caso Evandro é o doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Orlando Calheiros. Além de atuar no meio acadêmico, ele é ogã – sacerdote que tem papel fundamental nos rituais – em uma casa de Umbanda traçada com Candomblé. A entrevista para o podcast também aconteceu antes da descoberta das fitas que comprovaram as torturas.

Calheiros analisou fotografias do alguidar, do pote de barro e do cadáver encontrado no matagal para levantar algumas impressões. “Quando você corta um frango e vai colocá-lo no padê, que é o alguidar com a farinha, você tem que molhar o alimento com o sangue dele e depois colocar ali as patas, as asas, a parte de trás do rabo, o pescoço e a cabeça. Você faz toda uma arrumação”, comenta.

Segundo ele, o que faz a galinha sangrar é justamente o corte no pescoço, que é feito por uma pessoa especializada, o Axogun. Esse sacerdote, que passa por uma preparação, pratica a técnica da forma mais indolor e rápida possível. Pela lógica da religião, não faz sentido que o corte seja feito com o animal já morto, pois o sangue precisa fluir, cair no padê e enchê-lo.

Esse é um ponto que já não bate com a denúncia do Ministério Público. Em confissão feita sob tortura, Osvaldo Marcineiro alegava que a vítima foi primeiro estrangulada e posteriormente sofreu o corte no pescoço. A própria acusação afirmava que “utilizando-se de meio cruel, asfixia mecânica, os denunciados mataram o menor Evandro ao tempo que iniciaram o ritual cortando-lhe o pescoço”. Essa contradição às técnicas de corte das religiões nunca foi explorada nos julgamentos.

Isso tudo é muito estranho. De fato, parece que tentaram de alguma forma emular o que se faz com os animais… Primeiro porque esse tipo de ato [sacrifício humano] não existe e é terminantemente contrário a qualquer tipo de prática dentro das casas religiosas. E, segundo, essa ideia do ser morto. Não pode ser feito assim”, afirma o antropólogo.

 

O POTE ENTERRADO

 

Pote de barro que estava enterrado em frente à loja Berimbau em 1992. Nesta imagem, o objeto era mostrado à Vicente de Paula Ferreira no júri de 2004

 

Analisando as discrepâncias, agora sob a luz da comprovação das torturas, é possível partir do princípio de que os sete acusados são inocentes. De acordo com esse viés, como examinar as características do pote de barro enterrado em frente à loja Berimbau, do empresário Antonio Costa, em Guaratuba?

Segundo os autos do processo, o pote estava tampado e, em cima dele, havia um pequeno punhal. Dentro, além do líquido levado para análise, ele continha outros objetos, como moedas, penas, sementes, conchas do mar e fios de cobre. (para mais detalhes, conferir o laudo de perícia do pote aqui)

Para Calheiros, o pote se assemelha a uma quartinha de Exu, que serve para abrigar a oferenda a essa entidade, em troca de proteção. “Em um terreiro ou uma casa, o Exu é o guardião e aí você pode fazer um assentamento na entrada desse lugar. Geralmente é um padê com a comida e a imagem do Exu e a quartinha onde fica o líquido para a entidade. Me parece que esse sujeito está emulando isso de algum jeito, como se fosse de fato um tipo de proteção. Agora o conteúdo dessa quartinha, que são conchas do mar, pena de ave preta, isso não me parece algo familiar. Mas a estética, a estrutura, faz sentido se você pensar de uma forma aberta”.

 

Exemplos de Quartinhas de Exu (Fonte: blog Exu Tranca Rua)

 

O fato de a quartinha estar enterrada foi um dos aspectos que mais chamou a atenção de Calheiros. “Claro que isso pode ser algo comum no Paraná, o que eu já não saberia dizer. Até porque aqui no Rio já está tudo asfaltado, então é difícil fazer um buraco na frente de uma loja. Normalmente, esse objeto é colocado dentro do estabelecimento, na entrada”, relata.

Técnicas específicas locais poderiam explicar também o punhal e os outros objetos encontrados na quartinha, além da falta da imagem da entidade. “Às vezes, como as religiões de matrizes africanas são fluídas e se transformam, pode ser que essas sejam práticas locais. E isso depende da entidade também. Tem algumas que possuem gostos específicos, que usam imagens, outras que não usam, depende muito do que é praticado ali”.

 

LIMPEZA APÓS O CORTE

De acordo com Calheiros, após o corte, é comum que as partes do frango fiquem juntas com o padê por alguns dias. Depois disso, uma limpeza minuciosa deve ser realizada. “Você tem que levantar os agrados, despachá-los e jogá-los fora. A comida vai ficar junto com a imagem por um tempo, e ela pode ser retirada após um ou dois dias, até porque dá bicho e apodrece”, diz.

A ideia de que uma força espiritual espanta o mau cheiro e moscas é apenas um boato. “Isso é balela. A função dos ogãs membros da casa é justamente ir lá e limpar tudo. Depois que você faz o corte, tem que limpar o chão. Tanto que, dependendo do Orixá, o sangue não pode nem cair no chão, o lugar precisa ser forrado com folhas. Tudo isso é até uma preocupação sanitária”.

Ou seja, nesse contexto, se as vísceras do menino tivessem sido colocadas em um alguidar e ficado por dias em uma casinha, sem ninguém limpar, é improvável que não exalassem mau cheiro ou não atraíssem insetos.

 

SANGUE OU SALIVA NO ALGUIDAR

Conhecendo um pouco mais os rituais religiosos e novamente partindo do pressuposto de que os sete acusados são inocentes, voltamos para a questão central: de onde teria surgido o DNA humano no alguidar e no líquido?

As possibilidades foram exploradas com a ajuda do antropólogo. A pessoa responsável pelo corte poderia, por exemplo, ter machucado a própria mão com a faca?

Se o sujeito é um especialista, isso é pouco provável. É um processo muito longo para você se aperfeiçoar, ele implica em uma série de técnicas para o animal não sofrer. Por isso, em uma casa de Candomblé com um Axogun sério, eu diria que é muito raro, mas não impossível. Sobretudo talvez no caso de um ajudante, uma pessoa mais inexperiente que está segurando o animal”, opina Calheiros.

A princípio, Vicente de Paula dizia ter experiência com o corte de animais, enquanto que o trabalho na quartinha enterrada teria sido feito pelo presidente da Associação Espírita Paranaense na época, que seria ogã de corte. “Dizer que a possibilidade de um ferimento acidental não existe é uma afirmação muito forte. Acidentes acontecem… Mesmo assim, acho difícil”, conclui.

Além de sangue, outra alternativa para encontrar DNA humano nas peças seria a saliva. Existe a chance de o pai de santo ter cuspido no alguidar por algum motivo?

A resposta, segundo o antropólogo, é sim. “É comum, no momento de temperar as imagens, a pessoa ingerir álcool e cuspir a bebida de volta sobre elas”, explica.

Segundo ele, existe um princípio de que as entidades comem aquilo que é oferecido a elas. Como consequência, os médiuns incorporados também se alimentam. “Os Exus, que são as figuras centrais desse relato, bebem. É normal que tomem cerveja, cachaça ou champagne. Na hora da preparação do padê, enquanto comem e bebem, existem alguns tipos de Exus que demandam que álcool seja borrifado em cima da quartinha. Os membros da casa de santo então colocam a bebida na boca e a assopram sobre a imagem”.

Aqui vale um comentário de Piovezan, biólogo e mestre em Genética, que reforçou que o álcool não interfere em exames para detecção de DNA humano. O líquido é inclusive usado para vários métodos de preparação da molécula.

Depois do ritual, o alguidar deve ser limpo e o conteúdo dele jogado fora pelos ogãs. “A quartinha geralmente fica para sempre com a entidade, já o alguidar é algo transitório, que pode ser utilizado novamente”, descreve Calheiros.

Como o corte de animais é feito nesse mesmo pote de barro, é possível que o exame do Instituto Gene tenha identificado, por exemplo, sangue de galinha e DNA humano de saliva. Isso, todavia, é apenas uma especulação. Levando em consideração que um perfil não foi traçado, não é possível ter certeza do quê e de quem é o material genético encontrado.

 

ADAPTAÇÃO DAS PRÁTICAS RELIGIOSAS

Todos os elementos analisados em conjunto, para o antropólogo, sugerem uma possível modificação das práticas de religiões de matrizes africanas por parte do grupo de Osvaldo. Contudo, isso não significa necessariamente que houve um ritual de sacrifício humano.

Outro detalhe levantado é que não se pode dizer que tipo de preparação ou treino os integrantes do grupo de Osvaldo tinham e quais práticas exatamente realizavam nos ritos religiosos.

Fazer mão no Candomblé é um ano sem beber, a pessoa precisa ficar muito tempo sem fazer sexo, é uma coisa difícil. Não é todo mundo que começa e termina, na verdade são poucos. Até mesmo matar um animal sem causar sofrimento é algo que exige muita técnica. Se por um lado, os acusados eram inocentes e não tinham um treinamento religioso adequado, se cortar no momento de fazer o padê uma vez ou outra seria comum, por exemplo”, finaliza.

 

A RELIGIÃO AFETOU A PROMOTORIA?

Voltando à entrevista com o último promotor do caso Evandro, Paulo Markowicz, realizada em 2017, outras questões referentes à religião foram abordadas. Tema central em todos os julgamentos, não há dúvidas de que ela influenciou também os bastidores do processo.

O promotor Celso Ribas, que atuou no júri de 1998, chegou até mesmo a questionar a imparcialidade da juíza que presidia os trabalhos na ocasião, Marcelise Weber. Ele alegava que, como a mãe da magistrada incorporava Exu e seguia religião de matriz africana, ela poderia ter simpatia pelos acusados e estar sujeita à influência política. A suspeição de Marcelise – ou seja, a dúvida sobre a sua imparcialidade – nunca foi julgada e o júri seguiu normalmente.

Entre todos os envolvidos, o caso era conhecido por ter uma “aura pesada e negativa”. Muitos acreditam inclusive que ele contribuiu com a morte precoce do próprio Celso Ribas, que faleceu em 2004 em decorrência de um ataque cardíaco; e com a aposentadoria por invalidez da juíza Marcelise, que teve trombose no cérebro.

Em relação à saúde do Celso, eu não tenho dúvidas de que ela foi afetada pela carga que esse caso trouxe. Ele faleceu em Camboriú [Santa Catarina], enquanto se arrumava para tomar banho. Teve uma arritmia no coração e ninguém conseguiu socorrê-lo a tempo. Não foi confirmado, mas parece que havia a suspeita de que ele estava com câncer no rim”, relata o promotor Markowicz.

Para ele, o caso Evandro abalou a saúde física e mental de muitas pessoas ao longo dos anos. “Eu tenho certeza que ele tem uma aura pesada, um estigma. Digo isso porque foi o que eu mesmo senti. Eu sou católico praticante e no começo vi tudo isso como uma luta entre o bem e o mal. Não por eles serem ‘bruxos’, nada disso… Mas sim pelo jeito como a morte do menino aconteceu. Aquilo causa um asco no ser humano, é algo que não dá para compreender”, completa.

Markowicz avalia que o fato de ele ser católico praticante não interferiu negativamente no modo como trabalhava nem atrapalhou o seu julgamento. “Em um primeiro momento, era como se aquilo fosse um confronto, em que os acusados eram meus próprios inimigos. Mas depois, justamente por causa da minha religião, eu comecei a pensar o contrário. Passei a rezar por eles e pedir que Deus fosse misericordioso, e acho que isso me aproximou de uma isenção. Meus princípios religiosos me ajudaram a colocar um pouco de bondade e redenção em tudo isso”, opina.

Ele admite que a única coisa que o chateia é o caso ainda continuar vivo, mesmo depois de tantos anos. “Ele tinha que ser esquecido, parece que não tem fim. As próprias Abagge têm uma argumentação razoável, mas do outro lado existe uma mãe que perdeu o filho. Reviver isso é doloroso”.

Para o promotor, o assassinato de Evandro já teve uma solução e o que resta agora é deixá-lo para trás. “Deu-se uma resposta, porque a Justiça tratou do caso. Eu acredito que isso foi suficiente para diminuir um pouco a maldade no mundo”, conclui.