Enciclopédia do caso Evandro

EXTRAS EPISÓDIO 34

 

 

EUCLÍDIO SOARES DOS REIS, O “BARBA”

O lenhador Euclídio Soares dos Reis, frequentemente chamado de “Euclides” ou “Barba” nos autos, era um dos poucos moradores da área de matagal onde o corpo da criança foi encontrado. Na manhã de 11 de abril de 1992, outros dois lenhadores, Daniel Miranda e Lázaro Marchetti, acharam o cadáver no meio do mato e logo em seguida avisaram Barba da descoberta.

Em pouco tempo, Euclídio passou a ser uma importante fonte para o Grupo TIGRE. Ele foi o responsável por fornecer, por exemplo, informações sobre um suposto Opala preto que teria sido visto nas imediações do matagal – fato que nunca chegou a ser comprovado pela polícia. Além disso, o lenhador também falou de roçadores que teriam frequentado a região na semana em que Evandro desapareceu e antes do cadáver ser encontrado.

Barba repassava muita coisa para os investigadores, de modo formal e informal. Isso fica claro nos relatórios da Polícia Civil e na quantidade de depoimentos que ele prestou naqueles primeiros dias.

Durante o júri de 2004, o delegado do TIGRE na época, Adauto Abreu, citava Euclídio como o principal suspeito do crime. Segundo o investigador, as “desinformações” que o lenhador sempre trazia seriam motivo para que ele fosse o foco das investigações. Para o investigador, os relatos de Barba eram soltos, sem grandes conclusões, como se ele tentasse desviar a atenção de si mesmo.

DOWNLOAD Depoimentos Euclídio (13, 20 e 24 de Abril de 1992)

 

RELAÇÃO COM DIÓGENES

No livro “A Verdadeira História do Caso Evandro”, o engenheiro Diógenes Caetano dos Santos Filho narra que, após a denúncia que fez ao Ministério Público, policiais militares do Grupo Águia lhe procuraram e pediram para que ele os levasse até Euclídio. Ele conta que até então não conhecia o lenhador, mas sabia que não seria difícil localizá-lo. Ele promoveu o encontro com a testemunha e retirou-se.

Segundo o relato do livro, depois das prisões dos sete acusados, Euclídio visitou Diógenes e lhe contou que alguém teria tentado matá-lo. Ele disse que só conseguiu escapar porque conhecia bem a região de matagal onde morava.

Desesperado, ele fugiu com a mulher Cecília Vonçoviski Guimarães e seu filho Ronaldo, e pediu que Diógenes chamasse os policiais do Águia, porque não confiava nas outras autoridades. O engenheiro atendeu o pedido, mas os PMs lamentaram e responderam que não poderiam fazer nada. Essa suposta tentativa de homicídio contra Euclídio não possui nenhum registro nos autos do processo do caso Evandro.

Mais tarde, o primo de Evandro ofereceu a casa dos fundos do seu terreno para que Barba pudesse ficar a salvo com a família. Na época, o lenhador também relatou que passava por dificuldades financeiras. Além disso, de acordo com o livro, ele estaria sendo assediado pelo Grupo TIGRE, a ponto de ser visitado duas vezes por dia pelos investigadores.

Nesse meio tempo em que conviveram, Euclídio se separou de Cecília. Ela voltou com o filho para a cidade natal, Araucária, na região metropolitana de Curitiba. Poucos dias depois, o lenhador também resolveu deixar a casa onde morava de favor. Como mais uma forma de ajuda, Diógenes deu um pouco de dinheiro e alguns engradados de cerveja para Barba, que conseguiu abrir um pequeno bar.

O livro de Diógenes dá a entender que o objetivo do Grupo TIGRE seria o de incriminar Euclídio, para acobertar as atividades da “seita satânica”. Ele chegou a afirmar que toda a história do garoto Diogo de Manaus, que viajou até Guaratuba e assumiu ser Leandro Bossi, seria uma grande conspiração contra ele e o lenhador.

Diógenes acreditava que, em algum momento, o menino acusaria Euclídio de o ter sequestrado e que ele próprio seria apontado como auxiliar no crime. No livro, ele não explica, no entanto, de onde tirou essa informação, e não há qualquer indício nos autos que comprovem essas suspeitas.

 

INCÊNDIO NA SERRARIA ABAGGE

Alípio dos Santos tinha 47 anos e trabalhava como vigia na serraria Abagge desde maio de 1992, das 20h às 6h. No dia 13 de fevereiro de 1993, ele prestou depoimento na Delegacia de Guaratuba sobre um incêndio no imóvel que aconteceu naquela madrugada.

Segundo o vigia, por volta das 4h30, um rapaz chamado João Maria dos Santos, filho de um amigo dele, apareceu na serraria para pegar uma carona de barco até a região de Cubatão, onde morava. Quinze minutos depois, os dois preparavam a embarcação para partir, quando um homem mascarado surgiu, apenas com os olhos visíveis.

O rapaz apontou uma arma para o vigia, disse que iria amarrá-lo e que era para ele ficar quieto. De acordo com o relato de Alípio, quando ele perguntou a identidade do estranho, o invasor teria respondido que ele e o parceiro que o acompanhava seriam parentes de Evandro. Nesse momento, o vigia percebeu que o mascarado não estava sozinho. Havia um segundo homem, também com o rosto coberto, que se ocupou de amarrar João.

Ainda de acordo com o depoimento, os invasores prenderam os dois com cordas. Em seguida, um deles pegou um galão com gasolina, acendeu um pedaço de madeira e ateou fogo na serraria. Eles mandaram os rendidos não olharem para trás e saíram com uma canoa em direção à Baía.

Por sorte, as vítimas logo conseguiram se soltar e correram até a casa de Irineu Wenceslau de Oliveira, o vigia anterior, que ainda era funcionário da serraria e morava na frente do imóvel. Eles juntaram baldes de água e conseguiram apagar o incêndio, que não havia se alastrado.

Os três também procuraram o gerente da serraria, cargo ocupado na época por José Travasso, amigo de longa data da família Abagge. Perto das 7h da manhã, ele recebeu em casa o guardião Alípio e João Maria, que lhe descreveram o ocorrido. Os dois relataram que os encapuzados diziam ser parentes de Evandro e que ali no lugar do imóvel construiriam uma capela.

Em depoimento no dia 17 de fevereiro de 1993, Travasso falou que suspeitava de três pessoas: Euclídio, Ademir (pai de Evandro) e de um cunhado de Ademir, que ele não nomeou. O gerente alegou que desconfiava desses homens porque foi cumprimentado por eles em uma lanchonete na noite anterior ao incêndio.

João Carlos Anderson, o sobrinho de Celina Abagge, foi ouvido pela polícia no mesmo dia em que Travasso. No mês seguinte, em 22 de março de 1993, Anderson teria prisão temporária decretada por coagir o marceneiro Edésio da Silva, testemunha que afirmava ter visto a filha e a mulher do prefeito sequestrando Evandro na manhã de 6 de abril de 1992. Na época do incêndio na serraria, Anderson trabalhava na administração do local.

Segundo ele, Travasso o procurou por volta das 7h30 para avisá-lo sobre o incêndio. O sobrinho de Celina relatou que lhe descreveram os encapuzados como um rapaz “alto, magro” e o outro “baixo e atarracado, meio gordo”, sendo que esse último “usava uma bota sete léguas”. Os dois vestiam roupas escuras.

Anderson comentou ainda que, próximo das 3h30, estava em um bar e que lá teria visto dois homens de roupas escuras. Eles seriam Euclídio, descrito como “o braço direito de Diógenes”, e um tal de Lauri Ramos, primo de Evandro.

Após os depoimentos, a polícia examinou a serraria e constatou que foram poucos os danos causados pelo fogo. Bastava agora descobrir quem eram os responsáveis pelo crime. Os primeiros a serem ouvidos na delegacia foram Lauri e Euclídio.

Barba prestou o primeiro depoimento sobre o incêndio no dia 9 de março de 1993. Ele disse não se lembrar da data exata, mas que em uma noite de fevereiro frequentou o Bar do Toninho, onde chegou por volta das 21h30. Euclídio afirmou que estava sozinho e que em certo momento viu Travasso sentado em uma mesa. Ele comentou que saiu do estabelecimento perto das 23h e foi direto para casa.

Negou ainda que estava na companhia de Lauri Ramos, do qual disse ser amigo, e reforçou que não teve nenhum envolvimento com as pessoas que atearam fogo na serraria. Ele apontou João Carlos Anderson, o sobrinho de Celina (o mesmo acusado de ter coagido Edésio na mesma época), como o autor do incêndio, mas não soube dizer o motivo.

Sobre Diógenes, Euclídio declarou que os dois eram amigos, mas que não trabalhava para ele e nem era o seu “braço direito”.

No dia 10 de março, Lauri respondeu as perguntas da polícia e informou que não estava em bar algum naquela madrugada, muito menos na companhia de Barba. Ele alegou que só ficou sabendo do incêndio na serraria por meio de outros moradores de Guaratuba. Lauri negou que tenha cometido o crime e disse não fazer ideia da razão pela qual foi citado como suspeito.

As investigações não avançaram. Em 19 de agosto de 1994, a promotoria pediu o arquivamento do inquérito, que foi autorizado quatro dias depois. Euclídio, suspeito do Grupo TIGRE, por ora estava livre das suspeitas sobre o incêndio. Mas não demoraria muito para que ele voltasse a ser alvo da polícia.

DOWNLOAD Autos de Processo do Incêndio da Serraria Abagge

 

PRISÃO POR TRÁFICO

No dia 2 de março de 1995, Euclídio foi preso em flagrante pelo investigador Airton Paulo Ribeiro e o escrivão da Polícia Civil, Paulo Cezar Rodrigues. Segundo os relatos, Airton recebeu uma denúncia de que o bar de Euclídio –imóvel que também era sua residência – seria um ponto de tráfico de drogas.

Fingindo ser um cliente, o investigador perguntou a Euclídio se ele teria cocaína para vender. O dono do bar mostrou o produto e falou que tinha disponível buchas pequenas e grandes. Logo depois, Airton se identificou como policial e deu voz de prisão.

O delegado de Guaratuba na ocasião era Douglas Carlos Possebon e Freitas, que tomou o depoimento dos policiais e também de Barba. À polícia, Euclídio disse que a droga não pertencia a ele, mas sim a um jovem chamado Anderson, que tinha em torno de 20 anos.

Nesta época, o ex-lenhador já havia se separado e estava casado há seis meses com outra mulher, Angela Machado dos Reis. A esposa repetiu em depoimento todas as informações dadas pelo marido e, oito dias após a prisão, revelou mais detalhes sobre o suposto traficante que, segundo ela, se chamava Anderson Correia Santiago.

No relato, ela admitiu que seu nome verdadeiro não era Angela, mas sim Maria da Luz Machado, e alegou que teria mentido por conta da “pressão da autoridade policial” e porque “a autoridade não pediu identidade”.

Esses detalhes, no entanto, servem apenas de pano de fundo para um acontecimento mais importante. Cerca de uma semana depois da prisão de Euclídio, Maria foi levar cigarros para o marido na delegacia quando percebeu que ele não estava lá. E o mais estranho era que nem mesmo o advogado do suspeito, Pedro Ivo Machado, sabia do paradeiro dele.

Em depoimento prestado no dia 3 de maio de 1995, o policial Messias dos Santos Oliveira admitiu que foi um dos responsáveis por tirar Euclídio de Guaratuba. Junto com um colega chamado Ivan, ele teria levado Barba para Curitiba, para a então delegacia de Antitóxicos, que na época estava sob o comando do delegado Kiyoshi Hattanda. O motivo da transferência seria um reconhecimento que o preso deveria fazer de Anderson, o rapaz que havia mencionado ao ser interrogado.

O policial Messias comentou que recebeu uma ligação da Antitóxicos no dia 8 de março, marcando o procedimento para o dia seguinte. O delegado de Guaratuba, Douglas Possebon, já se encontrava na capital.

Messias declarou que esse tipo de transferência era incomum, que inclusive não havia sido devidamente registrada ou autorizada pela Justiça. Além disso, outro detalhe chama a atenção em seu relato: o delegado Luiz Carlos de Oliveira – responsável pelo caso Leandro Bossi na época das prisões dos sete acusados – também estava na Antitóxicos na ocasião.

Para esclarecer esse e outros pontos, Possebon também foi ouvido. Ele contou que atendeu uma chamada da Antitóxicos no dia 6 de março, sobre o reconhecimento que poderia ser feito com Euclídio, assunto que ficou pendente.

No dia seguinte (7 de março), Barba teria chamado o delegado para conversar e pedir regalias, como dormir fora da delegacia, e Possebon argumentou que não podia lhe conceder nada desse tipo. O investigador então aproveitou a oportunidade para perguntar para Euclídio detalhes sobre o caso do incêndio na serraria Abagge, já que o havia ouvido durante o inquérito ainda em 1994.

Ele questionou se na época Barba tinha mesmo contado a verdade e o preso respondeu que não. Agora, ele afirmaria que naquela noite havia saído para pescar com Diógenes, que o convidou para ir até a serraria Abagge, mas ele recusou.

Diante dessa nova informação, Possebon passou a fazer mais perguntas sobre o caso Evandro, pois sempre teve a impressão que Euclídio havia mentido. Após a conversa com o suspeito, o investigador entrou em contato com a Divisão de Crimes contra o Patrimônio, onde Luiz Carlos de Oliveira trabalhava, para que o detido pudesse fornecer novas pistas.

Ficou combinado que isso seria feito na Antitóxicos em Curitiba. Possebon ressaltou, contudo, que não presenciou o procedimento em Curitiba e nem o conteúdo das declarações que Barba teria dado.

DOWNLOAD Inquérito Tóxicos Euclídio

 

DEPOIMENTO BOMBÁSTICO

Sobre esse suposto depoimento, existe nos autos do processo um relato prestado por Euclídio na Delegacia de Antitóxicos em 9 de março de 1995. É um longo relato de sete folhas* e seu conteúdo é surpreendente.

(*o depoimento é enumerado como sete folhas, mas ele na verdade possui oito páginas. A primeira folha tem escritos frente e verso, e foi contada apenas como uma folha)

Nele, Euclídio afirma que por volta das 19h do dia 9 de abril de 1992, uma quinta-feira, amarrava os bois na entrada de casa quando percebeu a chegada de um veículo Fiat Panorama verde escuro, que fez uma manobra na Rua Engenheiro Beltrão e estacionou em seguida. Ele identificou os dois ocupantes do carro como Diógenes e “Paulinho Magueira” (provavelmente “Paulo Mangueira”) ou “Paulo Basil” (provavelmente “Paulo Brasil”).

Eles não perceberam a presença de Barba, que ficou o tempo todo observando a movimentação dos dois. Nesse momento, Diógenes e Paulinho teriam aberto o porta-malas e tirado de lá um pacote volumoso, que levaram para o mato, onde ficaram por cerca de uma hora e meia.

De acordo com Euclídio, já estava escuro quando a dupla saiu do matagal e foi embora. Barba decidiu ir até o local para saber o que eles haviam deixado lá. Ele disse que andou por uns 10 minutos e não demorou a encontrar o volume enrolado em jornais. O lenhador teria visto um pé pequeno e percebido que se tratava de um ser humano. Assustado, ele voltou correndo para casa e a sua mulher, Cecília, notou que o marido estava espantado e perguntou o que tinha acontecido. O companheiro respondeu apenas que teria visto uma “visagem” e não teceu mais comentários.

No dia seguinte pela manhã, depois de pensar muito no que fazer, ele resolveu tirar satisfações com o próprio Diógenes. Ele foi até a casa do primo de Evandro e contou o que tinha visto. Segundo o depoimento, o engenheiro teria dito em resposta: “Venha morar aqui que eu te dou tudo o que você quiser para não abrir o bico”. O lenhador inicialmente relutou um pouco, mas depois resolveu aceitar a proposta.

Na noite do dia 10 de abril, sexta-feira, Euclídio foi jogar dominó na casa de um vizinho. Como estava em uma mesa de frente para a rua, ele disse ter visto o Fiat verde se aproximar novamente, ocupado por Diógenes e Paulinho, perto da meia-noite. O carro foi até o mesmo ponto onde havia estacionado na noite anterior e voltou após cerca de 30 minutos.

No sábado pela manhã, dia 11, Barba se levantou por volta das 7h para medir a roçada que os peões realizaram na área de matagal, e lá encontrou outros dois lenhadores, Daniel e Lázaro. Daniel estranhou a presença de corvos em um ponto específico do mato e sugeriu que os três fossem ver o que tinha lá. Euclídio concordou e ficou alguns passos atrás dos dois durante todo o caminho. Foi aí que a dupla encontrou o corpo e chamou por Barba.

O lenhador comentou que na hora notou que o cadáver não estava mais enrolado em um jornal, mas sim exposto e completamente desfigurado. Os três ficaram muito apavorados e Euclídio resolveu chamar a polícia. Daniel encontrou perto do corpo um chaveiro contendo apenas uma chave, que foi entregue para os policiais.

Após o ocorrido, Euclídio passou a morar na casa dos fundos do terreno de Diógenes, onde ficou por aproximadamente três meses. De acordo com ele, o primo de Evandro começou a pressionar para que ele deixasse o local, o que fez após receber uma quantia em dinheiro. Barba ainda relatou que, no período em que conviveram, presenciou várias vezes Diógenes pagando despesas dos policiais do Grupo Águia e que um dia até a mãe do engenheiro teria reprovado a alta quantia gasta pelo filho.

Ao perguntar para Diógenes por que ele estava fazendo tudo aquilo, o primo de Evandro teria respondido que as suas atitudes eram motivadas por uma vingança contra Celina Abagge, pois ela teria sido pivô da separação dos seus pais.

Em outra ocasião, Barba teria sido convidado por Diógenes para uma pescaria. Na época, o ex-lenhador já havia se divorciado de Cecília e namorava uma mulher chamada Odete Aparecida Messias Ribeiro. Ele deixou a companheira no salão do “Baile do Toninho” e seguiu com o primo de Evandro para a suposta pescaria.

Eles pegaram um barco a remo e se dirigiram até os fundos da serraria Abagge. Euclídio estranhou a movimentação e perguntou o que eles estavam fazendo ali. O engenheiro respondeu que queria colocar fogo no imóvel e Barba se recusou a participar. O primo de Evandro teria ido sozinho até o local e cometido o crime, enquanto Euclídio esperava na canoa. Ele alegou que não sabia das intenções de Diógenes naquela noite.

Após o incêndio, os dois fugiram e voltaram ao estabelecimento do Toninho para buscar Odete, que mais tarde perguntou por que havia manchas de óleo na roupa de Diógenes, que teria feito comentários evasivos.

Euclídio encerra o bombástico relato com a seguinte afirmação: “a acusação de sacrifício de Evandro não passa de uma farsa e de uma trama diabólica elaborada e executada por Diógenes Caetano dos Santos Filho“.

 

NOTA: A depender da cópia dos autos do caso Evandro que se consulte, este depoimento de Euclídio encontra-se ou faltando a folha enumerada como “número 3” ou ainda possui cortes nas margens superiores e inferiores na digitalização/fotocópia. Para este trabalho, Ivan Mizanzuk se utilizou de três fontes: 

Fonte 1: Autos do processo digitalizados no site do STJ, como parte do recurso de Airton Bardelli e Francisco Sérgio Cristofolini [DOWNLOAD Fonte 1]

Fonte 2: Arquivo pessoal fornecido por fonte. Este é o que possui melhor qualidade [DOWNLOAD Fonte 2]

Fonte 3: Autos do processo do caso conhecido como “Emasculados de Altamira”, que possui cópia de boa parte do Caso Evandro [DOWNLOAD Fonte 3]

Ivan Mizanzuk montou uma versão própria, misturando páginas da Fonte 1 (páginas 1 e 4 do PDF) e Fonte 2 (páginas 2, 3, 5-8 do PDF). Você pode fazer o download dessa versão aqui.

 

Matéria do Jornal Hora H, edição de 22 a 28 de julho de 1996. Nela, conta-se sobre o depoimento bombástico de Euclídio e a ausência de acusações contra o lenhador

 

DOWNLOAD MATÉRIAS DE VÂNIA MARA WELTE PARA O JORNAL HORA H

 

PRESSÃO E AMEAÇAS DA POLÍCIA?

O impressionante depoimento de Euclídio se tornou um marco importante para a defesa dos sete acusados. O conteúdo dele é do tipo que poderia reverter o caso inteiro – ou, no mínimo, abrir uma nova investigação tendo Diógenes como suspeito. Por que, então, isso não aconteceu? Para responder essa pergunta, as circunstâncias do relato precisam ser colocadas em perspectiva.

Enquanto o detido era levado para Curitiba, a esposa de Barba e o advogado dele tentavam entender o que havia acontecido. Pedro Ivo Machado, que representava o ex-lenhador, buscava naquele mesmo dia entrar com um pedido de habeas corpus, mas não conseguiu encontrar o delegado Possebon, que estava na capital. Euclídio só voltou para Guaratuba na madrugada do dia 10 de março. Poucas horas depois, o pedido de habeas corpus foi aceito e, em seguida, ele foi liberado.

Ao retornar para a cidade litorânea, Barba denunciou que teria sido coagido pela Polícia Civil em Curitiba. Em depoimento, ele declarou que de fato foi levado para fazer o reconhecimento, mas que não identificou nenhum dos presos como o verdadeiro Anderson. Em seguida, o delegado Luiz Carlos de Oliveira teria o interrogado sobre o caso Evandro e, a partir daí, passado a fazer ameaças físicas e psicológicas contra ele.

Segundo Euclídio, Oliveira teria o pressionado a assinar uma declaração confessando que a morte de Evandro tinha sido armada por ele e por Diógenes. Além disso, o investigador teria ainda acusado a dupla de ter colocado fogo na serraria Abagge e que, por todos os delitos, “poderia pegar 50 anos de cadeia”. O ex-lenhador respondeu que não tinha nada a declarar e que “poderiam fazer o que quisessem com ele”.

De acordo com o depoimento, o interrogatório aconteceu das 15h às 21h30 e foi acompanhado por um suposto desembargador, uma pessoa que teria se apresentado como ocupante de “um cargo abaixo de desembargador”, e pelo delegado Kiyoshi Hattanda, da Antitóxicos. Barba relatou que não cedeu às pressões e saiu da delegacia sem prestar depoimento ou assinar qualquer declaração.

A denúncia de Euclídio resultou na abertura de um pedido de providências, que tinha como objetivo esclarecer o que exatamente ocorreu em Curitiba. Aqui ao menos duas versões se confrontam: a primeira, de que Euclídio quis ser solto e ofereceu informações que julgava serem valiosas sobre o caso Evandro, negando tudo em seguida; e a segunda, de que Euclídio foi coagido e ameaçado por policiais civis para livrar as Abagge.

O curioso é que no documento onde consta o depoimento bombástico contra Diógenes, há sim a assinatura de Euclídio, igual àquelas presentes em testemunhos anteriores. Teria ele assinado sem ler? Teria assinado uma folha em branco? Teriam forjado sua assinatura? Será que ele enganou a polícia dando declarações falsas só para sair da prisão e depois se arrependeu? Ou falou a verdade e decidiu voltar atrás?

Do outro lado, todos os policiais envolvidos negaram que tenham coagido ou ameaçado Euclídio. Foi o que disseram os delegados Oliveira e Hattanda; o corregedor da Polícia Civil, Hamilton Soares Canfield, que também presenciou o interrogatório de Barba; e Nelson Sabbagh, que chefiava a Divisão de Crimes contra o Patrimônio, a quem Oliveira era subordinado.

Em geral, fica claro em todos os depoimentos que os investigadores sabiam que o procedimento havia sido irregular, sem qualquer registro ou autorização judicial, e não quiseram se comprometer. Talvez seja por isso que o relato surpreendente de Euclídio nunca surtiu o efeito esperado.

Todos esses depoimentos foram prestados no processo de um Pedido de Providências anexado ao inquérito de Tóxicos de Euclídio.

DOWNLOAD Pedido de Providências Euclídio (Tóxicos)

 

De qualquer forma, Barba foi julgado pela posse de drogas e acabou condenado. Ele cumpriu pena em regime fechado, depois em aberto, e foi condicionado a realizar trabalhos voluntários.

O mandado de prisão foi emitido apenas em 15 de julho de 1998. Na época, o ex-lenhador já havia saído do litoral e morava em Araucária.

Em 18 de agosto deste mesmo ano, Euclídio foi interrogado novamente. Dessa vez, ele deu outra versão para a apreensão de drogas na sua casa/bar três anos antes: negou ser usuário e traficante de drogas e sugeriu que os próprios policiais plantaram o entorpecente no imóvel. Falou ainda que assumiu a culpa na época porque havia sido coagido pela polícia.

Anteriormente, tanto Barba quanto a esposa Maria admitiram que a cocaína apreendida pertencia ao rapaz de nome Anderson, que aparentemente nunca foi ouvido no inquérito.

Os policiais Airton Paulo Ribeiro e Paulo Cezar Rodrigues, que na ocasião prenderam o suspeito, mantiveram os testemunhos prestados e reafirmaram que não houve nenhum tipo de coação.

O único que corroborou com a nova versão do réu sobre o episódio foi Diógenes, em depoimento prestado no dia 30 de março de 1999. De acordo com o engenheiro, a droga “teria servido como uma maneira de constranger o denunciado a prestar falso testemunho”. As provas e relatos contra Euclídio, no entanto, eram bastante convincentes e ele acabou condenado.

 

Após anos de procura, Ivan Mizanzuk finalmente localizou Euclídio e chegou a conversar diretamente com ele no final de 2019. Ele se recusou a conceder entrevista, mas disse que nunca deu nenhum depoimento em Curitiba e que a cocaína havia sido plantada no bar pelo delegado Douglas Possebon.

Ao ser questionado sobre a presença da assinatura dele no documento, Barba se limitou a dizer que era “mentira” e não quis dar mais explicações. Ele também reforçou várias vezes que era alvo de armação desde a época do Grupo TIGRE e que foi Diógenes quem o ajudou.

Também em 2019, Mizanzuk entrou em contato com Possebon. Ele repetiu o que já consta no inquérito e no pedido de providências. Afirmou que, após ser preso em flagrante, Euclídio passou a dizer que tinha informações sobre o caso Evandro e que gostaria de regalias em troca de abrir a boca.

Afinal, qual é a verdade? É muito difícil saber. Com versões conflitantes, nunca saberemos o que realmente aconteceu. A análise de Mizanzuk é que Euclídio poderia ter dado de fato o depoimento em Curitiba, inventando uma história mirabolante para se safar da prisão. Para isso, ele teria juntado dois boatos fortes da época do crime: que o corpo não era de Evandro e que tudo não passava de uma armação de Diógenes.

Dentro dessa linha de raciocínio, faz sentido que ele tenha mudado de ideia ao chegar em Guaratuba e descobrir que seria liberado com um habeas corpus. Com medo do que poderia acontecer se soubessem que ele tinha envolvido Diógenes, passou a dizer que foi coagido. Isso são, claro, apenas especulações.

No fim, não é possível dizer se Euclídio é ou não o verdadeiro assassino de Evandro. Apesar dos depoimentos confusos e o fato de ele morar perto do local onde o corpo foi encontrado, não há indícios convincentes de que ele é culpado.

Barba era o principal suspeito do Grupo TIGRE em 1992 e, em três meses de investigação, os policiais não conseguiram encontrar provas convincentes contra ele.

 

NOVOS DEPOIMENTOS SOBRE O INCÊNDIO

Inicialmente, o inquérito do incêndio na serraria Abagge deveria ter sido encerrado após o arquivamento do processo em 19 de agosto de 1994. Mas eis que em 6 de maio de 1998, novas informações sobre o caso foram encontradas no inquérito de Leandro Bossi. Elas estavam contidas em quatro depoimentos de testemunhas.

O primeiro relato é de um homem chamado Nelson Rubens Mazanek, ouvido em 27 de outubro de 1993. Ele contou que cinco dias antes havia sido procurado por Odete Ribeiro, então companheira de Euclídio, que lhe pediu emprego e abrigo pois estava muito apavorada.

Ela teria lhe revelado que, na mesma noite do incêndio, Barba foi convidado para sair com Diógenes. Segundo Odete, eles a deixaram em um bailão e, quando voltaram para buscá-la mais tarde, ela percebeu que Euclídio estava todo sujo de barro e cheirando a óleo diesel. Por isso, ela desconfiava que a dupla havia sido responsável por botar fogo na serraria Abagge. Odete comentou que não procuraria a polícia, no entanto, porque tinha medo do que Euclídio poderia fazer com ela e seu filho.

Um relato muito parecido, também presente no inquérito de Leandro Bossi, é o de uma mulher chamada Marilda Cunha, conhecida de Odete. Ela disse que ouviu a história de Nelson e foi procurar a companheira de Barba para ajudá-la. Odete, porém, não se abriu com a amiga e demonstrava estar bastante assustada, novamente admitindo apenas que estava com medo do parceiro.

O tempo passava e a história parecia não sair do lugar. Até que, quase um ano depois, em 23 de setembro de 1994, a própria Odete deu a sua versão da história. As suas declarações correspondem com o que Nelson Mazanek havia descrito. Ela acrescentou que Euclídio e Diógenes voltaram da suposta pescaria por volta das 5h daquela noite e ela logo percebeu que o marido estava bastante agitado.

De acordo com ela, depois de muito perguntar o que havia ocorrido, o companheiro teria confessado que recebeu ordens de incendiar a serraria Abagge. Ele teria começado a chorar e ela acreditou na história. No dia seguinte pela manhã, ainda conforme o depoimento de Odete, Euclídio botou fogo nas roupas sujas de óleo e passou a ameaçar a esposa de morte, obrigando que ela morasse junto com ele. Agora, contudo, os dois já estavam separados.

Em 28 de setembro de 1994, Barba finalmente respondeu as alegações da ex-companheira. À polícia, ele negou todas as acusações e isentou Diógenes de qualquer participação no incêndio. Ele disse que em nenhum momento foi convidado para uma pescaria.

Na verdade, segundo Barba, o primo de Evandro teria o visitado por volta das 19h30 e os dois saíram juntos dar uma volta de carro pela cidade. Eles passaram na casa do engenheiro, onde ficaram por cerca de 30 minutos e, em seguida, por volta das 21h30, foram até o baile do Toninho. Lá, Euclídio conversou um pouco com a companheira. Depois, ele voltou para o carro onde Diógenes o aguardava e os dois ficaram ali escutando música até as 23h, quando chamaram Odete e voltaram para casa.

Aqui há um detalhe interessante: na primeira vez em que foi interrogado sobre o incêndio, em 1993, Barba disse aos policiais que tinha ido para o bar do Toninho sozinho. Ele não citou Odete ou Diógenes. Agora, cerca de um ano e meio depois, em resposta às acusações feitas pela ex-companheira, ele adicionou esses detalhes à história.

Com o surgimento dos novos materiais, especialmente o depoimento de Odete, Euclídio Soares dos Reis virou suspeito novamente. E desta vez, Diógenes Caetano dos Santos Filho também entrava em cena.

Sobre o incêndio, o engenheiro voltou a ser interrogado no dia 31 de agosto de 1999. A declaração foi bem curta: ele disse que não conhecia Odete, apenas Euclídio, mas que não esteve com ele na noite do ocorrido. Alegou que nesse dia estava em uma festa de aniversário na “Colônia dos Fiscais”.

De suspeitos, Diógenes e Euclídio se tornaram réus, mas não foram presos por isso. Barba ficou detido por conta do flagrante por venda de cocaína desde 15 de julho de 1998, quando foi condenado a três anos de prisão. Por bom comportamento e ausência de antecedentes criminais, ele foi solto em 18 de junho de 1999 para cumprir o resto da pena com trabalhos assistenciais. Ou seja, cerca de dois meses após sair da cadeia, ele enfrentava nova acusação, arriscando ser preso novamente.

Em 14 de Dezembro de 1999, o ex-lenhador deu um novo depoimento, com novas contradições. Apesar de continuar negando envolvimento no crime, agora ele dizia que tinha ido pescar com Diógenes na noite do incêndio.

As testemunhas de acusação no processo foram interrogadas no dia 30 de março de 2000. Todas elas reiteraram as informações que haviam fornecido anteriormente.

Já a defesa de Diógenes, representada pelo então jovem advogado Cláudio Dalledone Júnior, levou duas testemunhas: Wilson Alberto Farkas e Mordecai Magalhães de Oliveira. Eles foram chamados para comprovar o álibi do engenheiro, que alegou que estava em uma festa de aniversário na noite do dia 12 e madrugada do dia 13 de fevereiro de 1993. O evento aconteceu na Associação dos Funcionários Fiscais, em Guaratuba.

Em depoimento, Farkas contou que foi inclusive naquela ocasião que conheceu Diógenes. Comentou ainda que teria visto o primo de Evandro chegar no local por volta da meia-noite, mas que não sabia dizer o horário que ele foi embora.

A festa era de uma mulher chamada Diva, esposa de Mordecai, a segunda testemunha convocada. Ele também confirmou o álibi de Diógenes e forneceu outros detalhes sobre a presença dele no local. Mordecai relatou que o próprio bolo de aniversário havia sido feito em uma confeitaria da qual o primo de Evandro era dono.

Apesar de ser engenheiro, Diógenes já explicou em outros momentos que naquele ano de 1993 não conseguiu exercer a profissão, e o motivo teria sido justamente o seu envolvimento no caso Evandro. Por causa disso, por um curto período de tempo, a sua renda vinha de trabalhos de confeitaria.

Até mesmo fotos de bolos e da festa de aniversário foram anexadas ao processo e o álibi de Diógenes se tornou sólido. Por isso, em 2 de maio de 2002, o próprio promotor pediu a absolvição dos réus. Em 6 de agosto, a Justiça seguiu a orientação do Ministério Público e julgou improcedente a denúncia contra Diógenes e Euclídio.

Durante a conversa com Mizanzuk, Barba falou que todas as acusações haviam sido uma obra de vingança de Odete, que teria se magoado após o término do relacionamento dos dois.

Durante as pesquisas, Mizanzuk tentou falar com pessoas que conheceram Odete. Como ela já é falecida, esse era o único recurso que restava. No geral, ele ouviu relatos de que ela era tranquila, mas que teve problemas com álcool nos seus últimos anos, o que lhe causou algum tipo de distúrbio mental. No fim da vida, ela passou a viver na rua e acabou falecendo em maio de 2018. Sobre o relacionamento com Barba, nada do que lhe foi dito é exatamente confiável.

As pesquisas para o podcast apuraram que Euclídio era e ainda é um homem pobre. Ele sofreu uma série de problemas, foi suspeito no caso Evandro, mas sem nenhuma prova convincente que pudesse comprometê-lo. Seus relatos são confusos e, se na avaliação de alguns ele pode ser visto como suspeito, outros podem considerá-lo um homem ingênuo e com medo, que apenas tentou sobreviver no meio de uma história muito maior que ele.

 

FREDERICK WASSEF E O LUS

Deixando de lado os acontecimentos acerca de Euclídio, a história agora toma um novo rumo. Recentemente, um nome ficou bastante famoso em todo o país e chamou a atenção por uma suposta ligação com o caso Evandro.

Na manhã de 18 de junho de 2020, Fabrício Queiroz foi preso. Pessoa próxima de Jair Bolsonaro e ex-assessor de Flávio, filho do presidente, Queiroz era procurado há meses pela polícia. Ele é suspeito de participar de um esquema de “rachadinha” na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro no período em que trabalhou no gabinete de Flávio, até 2018. Ele foi encontrado em uma chácara no município de Atibaia, em São Paulo, pertencente ao então advogado do filho do presidente, Frederick Wassef.

Com o nome de Wassef estampado na mídia, alguém decidiu pesquisar sobre ele em jornais antigos digitalizados e encontrou uma matéria intitulada “Delegado pede prisão de ‘bruxos’”, de 25 de julho de 1992. A reportagem, publicada no Jornal do Brasil, fala sobre a suspeita que a polícia tinha no envolvimento de um grupo chamado Lineamento Universal Superior, o LUS, no desaparecimento de Leandro Bossi.

Trecho de matéria publicada no Jornal do Brasil em 25 de Julho de 1992

Integrante do LUS, Wassef teve um pedido de prisão temporária solicitado contra ele – assim como os líderes da chamada “seita” pelo jornal, o argentino José Teruggi e a esposa dele, Valentina de Andrade.

Somado a isso, outro detalhe é ainda mais intrigante: tempos depois do caso de Guaratuba, Valentina foi suspeita de participar de supostos rituais satânicos que envolviam emasculação (retirada dos órgãos genitais) e morte de ao menos seis garotos na cidade de Altamira, no estado do Pará, norte do Brasil. Esses crimes aconteceram entre 1989 e 1993 e, além de Valentina, outras seis pessoas foram acusadas. O caso ficou conhecido como “Os Emasculados de Altamira”.