EXTRAS EPISÓDIO 35
“A LOIRA GRINGA E GORDA”
No dia 11 de julho de 1992, aconteceram as primeiras acareações (confronto de versões) no presídio do Ahu, em Curitiba, entre os cinco homens acusados de matar Evandro. Na ocasião, Osvaldo Marcineiro, Vicente de Paula Ferreira e Davi dos Santos Soares confessaram o assassinato e assumiram também responsabilidade pelo desaparecimento de Leandro Bossi.
DOWNLOAD Acareações 11 de Julho de 1992
Hoje sabemos que que essas confissões foram feitas sob tortura.
Naquele dia, no entanto, os presos contaram a seguinte história: em fevereiro de 1992, Celina Abagge teria encomendado ao grupo de Osvaldo o sequestro de uma criança, que seria vendida para uma “loira, gorda, com sotaque de gringa”. Por um valor de 2 mil dólares, o grupo teria sequestrado Leandro e supostamente entregado o menino para essa mulher no aeroporto de Guaratuba.
No dia seguinte, 12 de julho, o delegado Luiz Carlos de Oliveira, que investigava o caso Bossi, foi ao presídio do Ahu para falar com os acusados. Em uma conversa particular com o investigador, Osvaldo teria revelado que havia sido torturado para assumir os crimes.
Apesar de mais tarde acreditar no suspeito, no começo o delegado decidiu levantar informações sobre a tal “gringa” mencionada nas acareações. Tradicionalmente, Guaratuba recebe muitos visitantes da Argentina e do Paraguai durante a temporada de verão. O local perfeito para iniciar as buscas, então, parecia óbvio: o Hotel VillaReal, o melhor da cidade. Lá trabalhava Paulina Bossi, mãe de Leandro, que sempre levava o filho para o serviço.
No dia 15 de julho, Oliveira interrogou o gerente do hotel, Jayme Luiz Wendhausen, na época com 38 anos de idade. Em depoimento, ele deu detalhes sobre a estadia de um grupo de argentinos no VillaReal durante diferentes períodos entre fevereiro e abril de 1992. Essas pessoas, segundo ele, “agiam de forma estranha” e eram lideradas por um casal tratado por todos como “Papa e Mama”: José Teruggi e Valentina de Andrade. Os participantes do que os demais hóspedes e curiosos chamavam de “seita religiosa” teriam sido vistos realizando rituais de orações, com altar de flores e papel laminado – o que já era suficiente para levantar suspeitas.
DOWNLOAD Depoimento Jayme Luiz Wendhausen (15-07-92)
Para piorar a situação, o grupo esteve em Guaratuba na data em que Leandro sumiu, em 15 de fevereiro, e também na ocasião do desaparecimento e morte de Evandro, no começo de abril.
As informações sobre o grupo ainda não eram muito claras, mas o pouco que se sabia já ajudava a aumentar as narrativas sobre a “seita satânica” que supostamente agia na cidade. Por essas e outras razões, em 15 de julho de 1992, a Polícia Civil cumpriu um mandado de busca e apreensão na casa de Valentina, que ficava em Londrina, no norte do Paraná. De lá, os policiais retiraram fitas VHS, fitas cassete, cadernos, agendas, cartazes, desenhos, armas e munições.
Um dos objetos que mais chamou a atenção da polícia foi o livro “Deus, a Grande Farsa”, escrito por Valentina e publicado em 1985. Na capa, havia a estranha figura de um bebê com duas cabeças.
Dentro do contexto de “seita satânica”, que apavorava os moradores de Guaratuba na época, o título do livro por si só funcionava como uma espécie de confirmação da existência dos tais “adoradores do diabo”. Além disso, alguns desenhos encontrados na residência, de figuras demoníacas ou que lembravam crianças sendo mutiladas, reforçavam ainda mais essa impressão.
Outro material suspeito apreendido foi um papel com anotações sobre matérias de TV que narravam os crimes contra Leandro e Evandro e mencionavam o suposto envolvimento do grupo de argentinos nos casos.
Além da busca e apreensão na casa de Valentina, objetos da chamada “seita Lineamento Universal Superior – LUS” também foram coletados na rodoviária de Londrina, com uma mulher que seria membro do grupo e caseira da residência, chamada Elisabeth Weigert.
Segundo matéria publicada na revista Veja, de 29 de julho de 1992, Elisabeth estava prestes a despachar para a Argentina uma mala com fitas de vídeo e outros materiais considerados suspeitos, quando foi abordada pela polícia. Na bagagem, havia um rifle, três pistolas e quatro “camisolões” com capuzes pontudos.
DOWNLOAD Matéria publicada na Revista Veja em 29 de Julho de 1992 (número 1245)
Ainda em 15 de julho de 1992, após ouvir o gerente do hotel VillaReal, o delegado Oliveira requisitou para a juíza de Guaratuba a prisão temporária de quatro integrantes do grupo: Valentina de Andrade; seu marido argentino José Teruggi; Antonio Salvador Meluso, apontado como segurança do casal; e Frederick Wassef. Dos quatro, a juíza só acatou o pedido contra Valentina e Meluso.
Valentina não foi encontrada, pois estava na Argentina, e passou a ser considerada foragida pela Polícia Civil do Paraná. Em matérias de TV da época, o delegado-geral da corporação, José Maria de Paula Correia, afirmava que até a Interpol havia sido acionada para ajudar nas buscas.
O único detido foi Meluso, em 16 de julho. Os detalhes da prisão não constam no inquérito de Leandro Bossi, mas informações da imprensa dão conta de que ele estava na casa de Valentina no momento em que foi detido.
DEPOIMENTOS DE PAULINA E MELUSO
Parte fundamental da investigação do caso Leandro Bossi partia da necessidade do delegado Luiz Carlos de Oliveira de verificar se, em algum momento, Valentina teve contato com o menino ou com a família dele antes do desaparecimento. Para isso, o investigador ouviu a mãe do garoto, Paulina Bossi, em 16 de julho, mesmo dia da prisão de Meluso.
Ela afirmou que a última vez que viu o filho foi por volta das 9h30 do dia 15 de fevereiro no Hotel VillaReal, onde trabalhava. Naquele dia, ela mandou Leandro ir para casa para trocar de roupa – o que de fato ele fez, já que as vestes que a criança usou mais cedo estavam na residência.
De acordo com Paulina, na ocasião do desaparecimento, “um casal de argentinos” se hospedou no hotel. Eles ficaram alguns dias por ali e foram embora, retornando para Guaratuba novamente no mês de abril. Foi aí que a mãe do garoto procurou Valentina, pois acreditava que ela tinha poderes e poderia auxiliá-la a encontrar o seu filho. A “Mama” lhe respondeu que infelizmente não tinha como ajudar.
DOWNLOAD Depoimento Paulina Bossi
Um dia após o depoimento de Paulina, Antonio Salvador Meluso foi ouvido pelo delegado Oliveira. Ele contou à polícia que conheceu Valentina e Teruggi há aproximadamente cinco anos, período em que começou a frequentar o grupo LUS, fundado em Buenos Aires, na Argentina. Em fevereiro de 1992, ele se encontrou com Teruggi e pediu permissão para passar as férias na residência do casal, em Londrina. A proposta foi aceita e Meluso viajou para o norte do Paraná na segunda quinzena do mês.
Ele comentou ainda que foi para Guaratuba em abril, junto com um grupo de 35 pessoas, e se hospedou em uma pousada que ficava cerca de 15 quadras do hotel onde Valentina e Teruggi estavam. Meluso explicou que todas essas pessoas pertenciam “à entidade LUS” e que foram para o litoral apenas para lazer, sem fazer nenhum tipo de culto na beira da praia.
Meluso afirmou que ficou em Guaratuba por apenas uma semana e voltou de ônibus para Londrina em seguida, enquanto o casal e outros membros do LUS permaneceram na cidade litorânea. Ao retornar de viagem, Valentina contou para Meluso que foi abordada no hotel pela mãe de uma criança que havia desaparecido. Ele relatou, no entanto, que todos só se inteiraram do caso mais tarde, por meio de matérias na TV, ocasião em que Valentina comentou que “algo feio teria acontecido com a criança” e que “o fato era terrível”.
No dia 4 de julho, o casal informou Meluso que viajaria para Buenos Aires. Mais tarde, os dois anunciaram que retornariam para o Brasil em 21 ou 22 de julho.
O integrante do LUS declarou à polícia que não poderia esclarecer nada a respeito dos escritos apreendidos na residência em Londrina. A única coisa que ele sabia era que os desenhos encontrados possivelmente teriam sido enviados por membros do grupo para a capa do livro de Valentina, intitulado “Deus, a Grande Farsa”. Ele reforçou, por fim, que era inocente e que nunca havia sido preso antes.
Antonio Salvador Meluso foi liberado em 21 de julho de 1992, cinco dias após ter sido preso. Ele já não interessava mais às investigações. Enquanto isso, a líder do LUS ainda não havia sido encontrada.
DOWNLOAD Depoimento Antonio Salvador Meluso
“DEUS, A GRANDE FARSA”
As ideias contidas no livro “Deus, a Grande Farsa” são importantes para explicar quais eram as crenças do grupo LUS. De acordo com a obra, Valentina seria uma espécie de médium, ou profetiza, que durante a década de 1980 esteve em contato com uma inteligência extraterrestre, responsável por lhe repassar uma série de ensinamentos. Entre eles, está a ideia de que o “Deus” da cultura judaico-cristã é “falso”. Dentro dessa lógica, ele seria na verdade uma criatura que usava seus poderes para enganar a humanidade e se disfarçar como “O Ser Supremo”.
Mas existiria um ser acima, esse sim a verdadeira Divindade, originado fora do planeta Terra. No caso do LUS, essa inteligência superior teria o nome de “Zuita” e seria a principal entidade com a qual Valentina teria contato, especialmente por meio de incorporações do marido José Teruggi.
Como grande parte das obras de natureza mística, o livro possui uma série de afirmações enigmáticas. Considerando, assim, a suposta participação da autora em um caso macabro envolvendo menores, um trecho específico foi bastante divulgado nos jornais: “Acautelem-se com as crianças. Elas são instrumentos inconscientes da grande farsa denominada deus, e seus nefandos colaboradores”.
Para jornalistas da época, essa frase sozinha já seria mais um indício que Valentina odiava crianças.
A POLÊMICA FITA VHS
Mesmo com o conjunto de indícios já bastante desfavorável à líder do LUS, nada chocou tanto a opinião pública quanto um dos vídeos encontrados na casa do casal. Em 23 de julho de 1992, o delegado-geral da Polícia Civil, José Maria de Paula Correia, convocou uma coletiva de imprensa para mostrar alguns trechos da fita VHS, gravada em Londrina no dia 11 de fevereiro de 1992.
Nas imagens, vê-se Teruggi sem camisa, com então 38 anos, e um volumoso bigode. Abraçado a ele está Valentina, a esposa, de 61 anos, usando um lenço na cabeça e o que parece ser um maiô. Os olhos dela não desgrudam do marido, que está incorporado pelo “Paizinho”, uma das entidades com quem se comunicava.
Valentina ri, levanta os braços, abraça Teruggi novamente. O argentino faz caretas e fala de forma estranha. O diálogo é em grande parte incompreensível, mas é possível entender trechos em que ela agradece o companheiro por tudo o que já recebeu dele.
Durante a coletiva, a polícia chamou a atenção para uma parte específica em que Teruggi incorporado estaria dizendo “mate a criancinha que eu te pedi. Ela é a riqueza energética”. Valentina teria respondido “claro… Já desperta pra vida com toda a riqueza e energia”
O vídeo do casal virou pauta no Brasil inteiro. Grandes revistas dedicaram longas matérias a eles e à chamada “seita LUS”, que foi acusada de fazer “lavagem cerebral” nos seus seguidores e de “arquitetar rituais”.
Uma reportagem da Revista Manchete, escrita pelo jornalista José Louzeiro e publicada em 8 de agosto de 1992, chega a afirmar, sem qualquer tipo de prova, que Valentina tinha ligações com Osvaldo Marcineiro e “seus parceiros de feitiçarias”. Além disso, o texto cita os casos das crianças mortas e mutiladas em Goiás e Maranhão, que também teriam sido “vítimas de bruxos ligados ao satanismo”.
DOWNLOAD Revista Manchete – LUS em Guaratuba – 8 Agosto 1992 (numero 2105)
CONFLITOS ENTRE AUTORIDADES
O delegado Luiz Carlos de Oliveira aproveitou o impacto e a repercussão da fita VHS na imprensa para agir novamente. No dia 24 de julho, ele pediu mais uma vez à Justiça a prisão temporária de Teruggi e Frederick Wassef. Em ofício, citou o vídeo como justificativa.
Em resposta, a juíza Anésia Edith Kowalski afirmou que gostaria de assistir a filmagem mencionada pelo investigador, procedimento que demorou alguns dias.
Enquanto isso, em 30 de julho de 1992, Wassef viajou de São Paulo para Curitiba para prestar depoimento ao promotor Antonio Cesar Cioffi de Moura, responsável pelo caso Evandro.
O membro do LUS relatou que, assim que soube que era procurado pela polícia, pediu para que advogados entrassem em contato com o delegado Oliveira. Ele afirmou que queria colaborar com as investigações de forma espontânea, sem precisar ser intimado. Segundo Wassef, no entanto, o investigador não quis ouvi-lo antes da decisão final da Justiça sobre as prisões temporárias.
DOWNLOAD Termo de Declarações de Frederick Wassef para o MP-PR 30-07-92
Esse era justamente o período em que as tensões entre Cioffi e Oliveira já cresciam de forma considerável, especialmente por causa da alegação de tortura dos acusados e da suspeita do delegado de que o corpo encontrado em Guaratuba poderia não ser de Evandro.
Ao final do processo, a juíza de Guaratuba jamais decretou as prisões de Teruggi e Wassef. E o motivo para isso fica claro em entrevista que concedeu ao jornal Clarín, da Argentina, em 2 de agosto de 1992. Na ocasião, ela alegou que a Polícia Civil mentiu e forneceu dados falsos para que ela aceitasse o pedido de prisão contra Valentina. Anésia Edith Kowalski também comentou que estava arrependida de ter tomado tal atitude e que, ao mesmo tempo, ainda sofria pressões e ameaças para que mandasse Teruggi para a cadeia.
No jornal argentino, ela chegou a dizer que não tinha dúvida de que as Abagge e o grupo de Osvaldo eram responsáveis pela morte de Evandro, e que o desaparecimento de Leandro seria um caso totalmente diferente. Uma versão dessa entrevista foi relatada no jornal brasileiro Correio de Notícias, de 9 de Agosto de 1992.
Além disso, o ponto-chave mencionado pela juíza que justifica a descrença no envolvimento de Valentina nos crimes é a aparência da suspeita descrita por Osvaldo durante as acareações. Afinal, ele havia dito que teria entregado Leandro para uma “gringa loira e gorda”. Mas a líder do LUS não se encaixava no perfil: ela era brasileira, não era loira e nem gorda.
Pouco mais de um mês depois do depoimento de Wassef e após a juíza Anésia deixar claro que não tinha interesse em prender ninguém do LUS, a defesa de Valentina solicitou que o pedido de prisão temporária fosse revogado – o que finalmente aconteceu em 9 de setembro de 1992.
Na decisão, a magistrada afirma que, apesar de todo o alarde feito pela imprensa, os objetos apreendidos na casa de Valentina não haviam sido anexados ao inquérito de Leandro Bossi. Até aquele momento, ela mesma não tinha visto os materiais diretamente.
A partir daí, os conflitos entre o delegado Oliveira, a juíza e Cioffi de Moura atingiram um caminho sem volta. Após meses de conflitos sobre questões de alegações de torturas, identidade do corpo e, agora, meses depois da primeira declaração de Wassef, o promotor Antonio César Cioffi de Moura realizou no mesmo dia 9 de Setembro de 1992 realizou uma reclamação formal contra o delegado Luiz Carlos de Oliveira.
Sob recomendação do promotor, a magistrada chegou a pedir à corregedoria da polícia a troca de delegado em Guaratuba. A solicitação, contudo, foi negada.
Em 28 de setembro, após todos os conflitos com o promotor Antonio Cesar Cioffi de Moura e a juíza Anésia Edith Kowalski, por iniciativa própria, Oliveira pediu para ser desligado da investigação sobre o desaparecimento de Leandro.
Quem ocupou o seu lugar foi o delegado João Ricardo Kepes Noronha – o mesmo delegado da Polícia Civil que assumiu e finalizou o inquérito caso Evandro após as prisões do Grupo ÁGUIA, da PM.
TRANSCRIÇÃO DA FITA
No mesmo dia da troca de delegados, a transcrição da polêmica fita de vídeo com Teruggi e Valentina foi anexada ao inquérito. O trabalho foi feito por um tradutor juramentado chamado Isac Nunes Cordeiro.
A transcrição inteira possui 91 folhas, mas o trecho mais importante está na página 18. Aos ouvidos do tradutor especialista, que entendia as falas do argentino incorporado pela entidade “Paizinho”, Teruggi disse “mas tem criancinhas que são experientes”, no que Valentina responde “claro, já desperta para a vida com toda riqueza, com toda sabedoria…”.
Ou seja, a frase “mate as criancinhas que eu te pedi” nunca foi dita. Os policiais e jornalistas da época, condicionados pelo contexto de busca por uma seita satânica, teriam escutado aquilo que queriam.
DOWNLOAD Perícia e transcrição completa da fita VHS do LUS (caso Bossi)
DEPOIMENTO DE VALENTINA E TERUGGI
Valentina e Teruggi finalmente foram ouvidos pela polícia no dia 5 de outubro de 1992 em Curitiba. Os depoimentos foram conduzidos pelo delegado Noronha, com a presença do advogado do casal, Arnaldo Faivro Busato Filho, e do promotor Cioffi de Moura.
Na ocasião, Valentina falou primeiramente sobre a origem do LUS. Ela disse que foi influenciada pelo ex-marido, Roberto Oliveira, a aprender os ensinamentos de um “grupo crítico de estudos” denominado Lineamento Universal Superior. Os membros tinham como objetivo trazer a público respostas para as dúvidas da humanidade. O LUS, de acordo com ela, só tinha registro oficial em Buenos Aires.
A líder do grupo disse que ouviu falar de Guaratuba ao buscar por lugares bonitos para levar os associados, que ela chamava de “filhos”. Ela viajou para a cidade pela primeira vez em 13 de fevereiro de 1992 e permaneceu por lá por apenas uma noite. Dois dias depois, retornou ao município e se hospedou com Teruggi no Hotel VillaReal.
Durante a estadia, ela conheceu de vista uma funcionária que mais tarde descobriu ser Paulina Bossi. Ela só conversou com a mãe de Leandro em abril, quando voltou ao hotel com outros integrantes do LUS. Em uma manhã, Valentina foi procurada por Paulina, que lhe pediu ajuda para encontrar o filho desaparecido. A líder do LUS respondeu que entraria em contato se tivesse qualquer notícia sobre a criança.
Questionada sobre Leandro, Valentina falou que em nenhum momento viu o garoto ou qualquer outra criança com características semelhantes, e que não conhecia os sete acusados no caso Evandro. Ela negou que o grupo tenha feito oferendas ou rituais na praia ou em outro lugar na cidade.
Sobre os desenhos considerados estranhos pela polícia, localizados na casa em Londrina, a líder do LUS explicou que eles eram propostas dos “filhos” ou associados para a capa do seu livro. Já a imagem de uma figura humana, com flechas apontadas para os órgãos internos, representaria na verdade os lugares onde o ex-marido de Valentina, Roberto, sentia dores. Segundo ela, a ilustração foi feita por um médium durante a incorporação de uma entidade.
Em relação aos materiais apreendidos na rodoviária, a líder do LUS alegou que a caseira, Elisabeth Weigert, decidiu por conta própria depositar os itens no guarda-volumes do local após ter visto notícias sobre as suspeitas do envolvimento do grupo em “rituais de magia negra”. De acordo com Valentina, as roupas que estavam na bagagem foram utilizadas uma vez em uma “dança” apresentada por ela e uma de suas “filhas” em Londrina, simbolizando “as trevas”. As armas, por sua vez, pertenciam a Teruggi, e ela não soube dizer se tinham ou não registro.
Em depoimento, ela contou também como conheceu Frederick Wassef. Ele era morador de São Paulo e, cerca de um ano antes, procurou Valentina após se interessar pelo livro que ela escreveu. Ele se tornou integrante do grupo e chegou a frequentar a casa do casal em Londrina. Em março e abril, ele também esteve em Guaratuba, mas não foi encarregado de trabalhar ou divulgar o pensamento do LUS no município.
Além disso, Valentina informou que não se apresentou à polícia antes por orientação do advogado. No entanto, ela acompanhou as notícias sobre as investigações, inclusive a repercussão da fita VHS. Nesse contexto, a líder esclareceu que Teruggi incorporava entidades desde 1987 e que o casal tinha o costume de gravar todo o processo, só em áudio ou também em vídeo, para não perder o teor da conversa entre os dois.
DOWNLOAD Depoimento completo de Valentina de Andrade (05-10-92)
O depoimento de Teruggi foi bem parecido com o de Valentina, com quem informou ser casado há seis anos. Ele acrescentou que, na primeira vez em que estiveram no Hotel VillaReal, em 13 de fevereiro, havia poucos hóspedes no local e ele não observou a presença do filho de Paulina.
Assim como a esposa, o argentino negou ter participado do sequestro de Leandro e reforçou que o Lineamento Universal não realizava trabalhos ou oferendas. Também comentou que não conhecia nenhum dos sete acusados pela morte de Evandro.
Segundo ele, o grupo estava no litoral apenas a lazer e cada um dos associados cuidava das próprias despesas – o casal ajudava os menos privilegiados por meio de uma “caixinha” que os membros faziam. Teruggi comentou que a sua renda vinha de uma empresa gráfica que possuía em Buenos Aires, assim como de uma fazenda em Lobería onde cultivava cereais.
Ele alegou que as armas apreendidas eram registradas na Argentina e que não se apresentou antes devido ao modo como a polícia entrou na sua casa e prendeu Meluso. Um advogado teria lhe dito na época que seria melhor ele aguardar a situação “esfriar”.
Sobre a polêmica frase “matem as criancinhas que eu te pedi”, Teruggi explicou que tudo não passava de um mal-entendido e que na verdade ele disse “mas tem criancinhas que são experientes”, como indicou a transcrição.
Em resumo, os depoimentos do casal foram uma maneira de encerrar esse estranho capítulo que o envolvia no caso Leandro Bossi – e, por consequência, no caso Evandro.
DOWNLOAD Depoimento completo de José Alfredo Teruggi (05-10-92)
DEPOIMENTO DE WASSEF
Frederick Wassef foi o último integrante do grupo LUS a prestar depoimento. Ele foi ouvido em 14 de outubro de 1992. À polícia, Wassef contou que adquiriu o livro “Deus, a Grande Farsa” no final de 1988 em uma banca de jornais e, após a leitura, teve muita curiosidade em contatar Valentina.
Ele então enviou cartas para ela por meio do número da caixa postal disponível no livro. Wassef também procurou o jornalista Goulart de Andrade, de quem era amigo, para discutir a possibilidade de fazer uma matéria para a TV sobre a obra de Valentina. A reportagem foi gravada com os líderes do LUS em São Paulo, mas não chegou a ir para o ar, por algum motivo desconhecido.
A partir daí, Wassef passou a fazer parte do círculo do casal, que o convidou para ir à Guaratuba na segunda quinzena de março. Ele ficou na cidade por cerca de quatro dias em companhia de vários argentinos que participavam do LUS. Mais tarde, em abril, ele retornou ao litoral, onde permaneceu por cerca de 15 dias – ocasião em que Teruggi e Valentina se hospedaram no Hotel VillaReal.
Segundo ele, a programação do LUS consistia em acordar cedo, ir até a praia, firmar acampamento e realizar atividades esportivas. Não havia celebração de cultos ou rituais. Wassef disse ainda que não fez nenhuma contribuição ou doação ao grupo e que sempre pagava as próprias despesas.
O membro do LUS informou que viajou no final de maio para Buenos Aires, onde conheceu a sede do Lineamento Universal Superior. Lá, integrantes do grupo ministravam cursos abertos ao público sobre o conteúdo do livro de Valentina. Nessas palestras, eram ensinadas as quatro normas proibidas pela seita, sob pena de expulsão: uso de droga, prostituição, abuso de confiança e falta de respeito.
DOWNLOAD Depoimento completo de Frederick Wassef (14-10-92)
SEITA?
No depoimento de Wassef, um detalhe chama a atenção: ele se refere ao LUS como “seita”. Esse termo ficou marcado na memória coletiva graças às matérias da época. O grupo, no entanto, sempre rejeitou essa denominação e se declarou como uma associação civil.
No senso comum, o termo “seita” tem uma conotação bastante negativa e é geralmente associado a comportamentos fanáticos, muitas vezes entendidos como perigosos e influenciáveis por processos de lavagem cerebral.
Por outro lado, no meio acadêmico, o conceito está presente em diversas discussões. Sociólogos como Peter Berger e Rodney Stark definem “seita” como um grupo sectário dentro de um corpo religioso maior – ou seja, quando seguidores passam a rejeitar parte da doutrina dominante e desenvolvem visões próprias. Nesse sentido, o LUS poderia ser entendido como uma seita sem grandes problemas. A conotação pejorativa, no entanto, tinha muito mais destaque.
GNÓSTICOS E A CULTURA “NOVA ERA”
Por mais incomuns que fossem, os ideais expostos por Valentina que atraíram Wassef e tantos outros envolvidos no grupo não eram exatamente novidade na história das religiões ocidentais. A ideia de um “falso deus” já era presente em linhas espirituais e místicas que datam pelo menos do Império Romano e do início do Cristianismo.
Os gnósticos antigos não acreditavam em alienígenas ou discos voadores, diferente de Valentina. Mesmo assim, essa característica não era nova na década de 1990. Desde os anos 60, muitos grupos autointitulados místicos integravam os chamados movimentos “Nova Era” e adicionavam às ideologias a noção de extraterrestres como seres mais evoluídos espiritualmente.
Essas ideias podem causar revolta em grupos mais ortodoxos, mas estão longe de representar automaticamente uma adoração ao demônio ou o desejo de sacrificar crianças. É perfeitamente possível entender as ideias de Valentina e do grupo LUS como apenas mais uma manifestação da cultura Nova Era na América Latina.
Como todo texto de teor místico, o livro “Deus, a Grande Farsa” não é dos mais simples de serem compreendidos. Ele é carregado de pessimismos e avisos apocalípticos. Dentro do contexto da busca por uma seita satânica que sacrificava menores, a obra trazia trechos chocantes para policiais e jornalistas da época. Um exemplo é a já citada passagem em que Valentina dizia que crianças “são instrumentos inconscientes da grande farsa denominada deus e seus nefandos colaboradores”.
Em vários momentos, a autora defende que é preciso ter bastante cuidado com as crianças, pois elas seriam “mais suscetíveis às forças do mal”. Para um seguidor do LUS, isso significa simplesmente que elas devem receber maior atenção em um nível energético e espiritual durante o crescimento, para não serem corrompidas pelo mundo. Para quem procurava por uma seita satânica, no entanto, esse trecho passou a ser usado como exemplo de que Valentina “odiava crianças”.
CONCLUSÃO SOBRE A PRESENÇA DE VALENTINA DE ANDRADE EM GUARATUBA
O ponto de partida para toda essa investigação foi baseado nas acareações realizadas no presídio do Ahu em 11 de Julho de 1992, nas quais Osvaldo, De Paula e Davi assumiam ser os responsáveis pelo sequestro de Leandro Bossi. Como hoje sabemos, essas acareações foram feitas sob torturas contra os três homens.
No dia seguinte, 12 de Julho, Osvaldo teria informado ao delegado Luiz Carlos de Oliveira que estava sendo torturado para assumir os casos Evandro e Leandro. Nas acareações do dia 13 de Julho, quando as Abagge foram confrontadas com Osvaldo, Davi e Vicente de Paula, o pai-de-santo já passava a negar todos os relatos.
DOWNLOAD Acareações 13 de Julho 92
Também é bom lembrar que, antes disso, Osvaldo chegou a dizer que teria assassinado Leandro Bossi – conforme foi explicado no episódio 25. Ou seja, entre os dias 1 e 11 de Julho de 1992, Osvaldo estava sendo forçado a assumir o caso Bossi: primeiro dizendo que teria o assassinado, e em seguida de que o teria sequestrado.
Por fim, não bastasse a questão da tortura, a descrição física que Osvaldo dava da suposta gringa na primeira acareação de 11 de Julho não se encaixava na descrição física de Valentina de Andrade.
Durante todo o período em que os membros do LUS foram considerados suspeitos, a polícia e o Ministério Público nunca conseguiram obter qualquer indício de autoria ou prova convincente contra eles.
“OS EMASCULADOS DE ALTAMIRA”
Os casos Evandro e Leandro, no entanto, não foram os únicos que marcaram a história do grupo LUS. Valentina de Andrade também foi suspeita de ter participado do assassinato e emasculação – ou seja, a retirada dos pênis e testículos – de ao menos cinco crianças em Altamira, no Pará, entre 1989 e 1993.
Além dela, outras seis pessoas foram apontadas como integrantes de uma seita satânica responsável pelos supostos rituais macabros.
A pergunta de ouro é: como é possível que ela tenha sido acusada de crimes tão parecidos do sul ao norte do país?
As primeiras pesquisas sobre o caso indicam que Valentina esteve em Altamira duas vezes na vida. Na década de 1970, ela passou pela região durante uma viagem com o então marido, que era de lá. Em certo momento, ele se mudou para a cidade em definitivo e, com a distância, o casal acabou se separando.
Anos depois, por volta de 1986, ela voltou para Altamira para visitar o ex-companheiro e descobrir se não havia entre eles nenhuma mágoa do passado. Na ocasião, Valentina estava a caminho de Manaus, já acompanhada de Teruggi e de outros membros do LUS. Decidiu fazer uma parada em Altamira apenas para um encontro rápido com o ex-parceiro. A princípio, nunca foi provado que ela esteve no município durante o exato período em que as crianças foram emasculadas e mortas.
No dia 28 de julho de 1993, o depoimento de um rapaz chamado Edmilson da Silva Frazão deu um novo rumo para as investigações. Nessa época, alguns suspeitos de matar os garotos de Altamira já estavam presos. Entre eles, o médico Anísio Ferreira de Souza, e um homem de posses e família poderosa na região, Amailton Madeira Gomes.
O caso enfrentava um impasse: a suposta atuação de uma seita satânica tinha peças que pareciam não se encaixar, pois faltava principalmente a figura de um líder do grupo. Por isso o depoimento de Edmilson foi considerado tão importante.
Na ocasião, ele relatou que em meados de 1991 o médico Anísio o convidou para participar de um culto na sua chácara, marcado para as 19h. Edmilson achou que se tratava de uma reunião de protestantes e aceitou o chamado.
No local, ele encontrou várias pessoas, entre elas Anísio e a esposa, e uma “mulher do Paraná”, da qual não se lembrava o nome. Todos estavam vestidos de preto, em um ambiente com velas acesas, também pretas. Após o médico saudar os convidados, quem falou foi a tal mulher misteriosa. Segundo Edmilson, ela explicou que estava na cidade para fundar uma seita e que precisava de homens de confiança para desempenhar os trabalhos necessários. Em seguida, Anísio teria “louvado os deuses das trevas”, momento em que Edmilson entrou em pânico e saiu do local.
Durante o depoimento, a polícia mostrou à testemunha uma foto de uma reportagem da revista Veja, que falava sobre o grupo LUS. Edmilson disse que a mulher na imagem, Valentina de Andrade, era a mesma que havia participado do culto na chácara de Anísio.
Aqui fica evidente que a testemunha apenas citou Valentina depois de ter visto a foto na Veja. Para a defesa, isso mostra que o caso de Guaratuba teria influenciado o de Altamira. Se não fosse a repercussão nacional da fita VHS e dos pedidos de prisão contra o LUS, talvez Valentina sequer fosse mencionada em Altamira.
Para a acusação, contudo, essa discussão era irrelevante e a matéria da revista teria apenas ajudado a testemunha a relembrar quem seria a tal mulher do Paraná.
Edmilson foi ouvido novamente pelo Ministério Público em 1995. Dessa vez, ele contrariou tudo o que havia afirmado anteriormente, alegando ter sido pressionado pela Polícia Federal. Mais tarde, porém, voltou atrás mais uma vez, e disse que teria sido subornado para desmentir os primeiros relatos que deu.
(Para mais detalhes sobre o caso de Altamira, conferir a matéria do G1 “Caso Césio Brandão: médico luta na Justiça para provar inocência, no ES“, assinada pelos jornalistas Natália Bourguignon e Wing Costa)
DESDOBRAMENTOS IMPORTANTES
As defesas dos acusados no caso de Altamira alegavam que não havia qualquer prova concreta contra os réus. Segundo os advogados, o inquérito foi baseado apenas em depoimentos de testemunhas que alegavam terem visto essas pessoas em circunstâncias suspeitas, sem nenhuma outra comprovação.
Dos seis réus julgados, cinco foram considerados culpados. Apenas Valentina foi absolvida, em dezembro de 2003, com a ajuda dos advogados Arnaldo Faivro Busato Filho e Cláudio Dalledone Júnior.
Parte da estratégia de defesa de Valentina foi conduzir uma investigação própria, procurando casos similares em cidades e estados próximos do Pará. Após longa pesquisa, foram encontradas no Maranhão vítimas em condições muito parecidas com as de Altamira: crianças e adolescentes do sexo masculino que foram emasculados e mortos. Naquela altura, os chocantes crimes já tinham autor confesso: o mecânico Francisco das Chagas Rodrigues de Brito, conhecido popularmente apenas por “Chagas”.
Chagas é considerado o maior serial killer já preso no Brasil, com um histórico de mais de 40 vítimas. Pouco antes do julgamento de Valentina, ele admitiu também ser o responsável pelos crimes no Pará.
Um detalhe, no entanto, complica a situação: o mecânico foi diagnosticado como um paciente esquizofrênico. Tempos após assumir os crimes de Altamira, ele passou a negá-los. Para os que creem em sua culpa, isso seria um sintoma da sua condição mental. Para os que acreditam que Valentina é culpada, Chagas seria um bode expiatório.
Independente disso, a Justiça do Pará jamais aceitou a confissão do mêcanico. Portanto, os condenados pelo caso dos Emasculados de Altamira tiveram de cumprir suas penas. Alguns estão detidos até hoje. Seguem abaixo os nomes e tempo de prisão:
Amailton Madeira Gomes: 56 anos de prisão;
Anísio Ferreira: 77 anos de prisão;
Carlos Alberto dos Santos Lima: 35 anos de prisão;
Césio Flávio Caldas Brandão: 56 anos de prisão;
José Mateus Gomes: 56 anos de prisão.
Além dos cinco citados e de Valentina, que foi absolvida, a acusação do Ministério Público também elencava um sétimo nome, Aldenor Ferreira Cardoso. Ele nunca foi encontrado, portanto não foi julgado. Muitos que conhecem o caso acreditam que ele já morreu.
O caso “Emasculados de Altamira” será a próxima temporada do Projeto Humanos.