4 – Cresci, e Agora?

6 de janeiro de 2016

Quando crianças, sentimos que o mundo é um espaço cheio de possibilidades. Às vezes, essa fase acaba cedo. Outras vezes, ela fica conosco até o fim. No quarto (e último) episódio de Crônicas, Ivan Mizanzuk apresenta quatro novas histórias de nossos possíveis futuros colaboradores, explorando o tema dos desafios da vida adulta: Tainara Rebelo nos mostra que uma demissão nem sempre é o fim do caminho; Eduardo Souza nos conta sobre uma das decisões mais difíceis que teve que tomar em sua vida; Isabela Cabral nos faz repensar como uma família se forma; e Luiz Amorim divide conosco o dia em que teve que aprender a enxergar pessoas diferentes dele.

>> 0h01min42seg Ato 1: “Uma Demissão Nem Sempre é Uma Demissão”, de Tainara Rebelo
>> 0h07min18seg Ato 2: “O Presente”, de Eduardo Souza
>> 0h14min14seg Ato 3: “Surpresas e Famílias”, de Isabela Cabral
>> 0h23min54seg Ato 4: “Minha Primeira Aula”, de Luiz Amorim

Descrição da Arte: trecho de “The Son of Man”, de René Magritte (1946).

Transcrição

Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Como já avisei nos últimos programas, estamos no meio da produção da nossa segunda temporada e enquanto ela não chega, estamos publicando crônicas produzidas por possíveis colaboradores futuros aqui do Projeto Humanos. Este é o último episódio da série Crônicas, e vocês ouvirão quatro histórias desses autores. E o tema de hoje é: “Cresci, e agora?”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Mais de uma vez, eu já ouvi adultos, pessoas com as suas vidas feitas e bem direcionadas, confessando que, apesar de terem seus 30, 40 ou mais anos, ainda se sentem jovens. Muitos dizem que ainda se sentem como se estivessem no colégio, por exemplo. Outros, um pouco mais humildes, dizem que se sentem eternamente com 23, 24 anos. Eu mesmo, neste momento, estou com 32 anos, mas não é incomum que quando me param na rua e perguntam a minha idade, eu tenho que parar para pensar um pouco, porque, por algum motivo, eu me vejo e me sinto com 28 anos. Parece que, de alguma forma, eu parei no tempo, o que é curioso porque, desde adolescente, eu sempre me senti como um velho rabugento no corpo de alguém mais jovem. E eu me pergunto, será que algum dia eu sentirei a idade que realmente possuo? E o que que é isso, afinal de contas? Então, falaremos sobre essas coisas que circundam o envelhecimento. Histórias sobre sonhos, desafios, família, responsabilidades. Aqueles momentos em que lidamos com problemas da vida que mostram como as coisas ficam bem mais complicadas depois de adultos. Enfim, você sabe do que eu to falando. Chegamos, assim, então, ao primeiro ato de nosso programa. Ato 1, “Uma Demissão Nem Sempre É Uma Demissão”. Quando somos crianças, uma das perguntas que mais ouvimos é “o que você quer ser quando crescer?” E depois de um tempo, sentimos que parece que a infância não acaba nunca, e que crescer não chega nunca, porque a pergunta tá sempre lá. A produtora Tainara Rebelo nos conta um pouco mais sobre como foi esse seu processo.

Tainara (narração): Era 2009, eu já tava naquelas de que cada trabalho na faculdade era feito no automático. A professora da aula de Marketing tinha dito pra fazermos uma análise de um seguimento de mercado, mas minha vontade era estudar o ramo de explosivos, pois eu já queria explodir a faculdade inteira. No fim, escolhi a indústria do tabaco, me pareceu a coisa mais saudável a se fazer.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Tainara (narração): Nesse clima de “foda-se”, uma tarde, eu tava indo à padaria pra comprar mais gordura em forma de pão de queijo, era a minha dieta básica do período. O telefone tocou e eu atendi. “Sim, aceito!” Finalmente um emprego, né? Era uma bosta, mas era melhor do que nada. Eu explico melhor que tipo de bosta que era. Era do tipo: meu chefe era um babaca, como ele deixava a cada email que mandava com quatro ou cinco pontos de exclamação depois de um “bom dia”. E no mesmo email, ele dizia que teríamos que fazer hora extra, durante o mês todo, pra dar conta das demandas que serviam pra comprar a gasolina do seu Mini Cooper e a sua coleção de sapatênis da Lacoste. E isso era só uma segunda-feira comum.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Tainara (narração): Dizem que quando a coisa está péssima, a gente dá valor às coisas pequenas, né? E nesse caso, era a Tati, a minha colega que sempre tornava o almoço e a vida algo suportável. Certo dia, ela me disse “você curte rádio? Eu vou te apresentar pra algumas pessoas.” E um ano depois, eu finalmente estava numa rádio. A Tati é péssima com prazos, mas ela mantém a sua palavra, e isso já diz muito sobre ela.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Tainara (narração): Trabalhar na rádio era um sonho antigo meu. Conversar, então, com os radialistas, preparar pauta, escolher, entrar em contato com entrevistados. Ah, eu me sentia ligada na tomada, 220 por hora. Quando a gente faz o que a gente gosta, até fazer o café da galera se torna algo mais suportável. E acredite, eu fiz muitos. Sempre faltava dinheiro pra pagar a conta do cartão de crédito. E eu passei três anos almoçando no restaurante do lado, onde o prato feito custava R$ 6. Nos três anos em que eu fiquei lá, ganhei cinco quilos de experiência. E após ter me olhado no espelho e dito “preciso emagrecer”, eu também percebi que era hora de mudar minha vida. O Kaká me chamou pra conversar e disse que eu era peça chave pro projeto dele. Eu ia trabalhar numa grande campanha, com um dos melhores estrategistas do Brasil. E aí, confesso que eu pensei duas vezes. Era a chance de mudar, mas também a ideia de entrar em algo totalmente novo me assustava. Mas quando eu conversei com o tal cara fodão que ele tinha me falado, eu não tive dúvidas. O cara falava com certeza, sabia vender o projeto. Ele batia na mesa com tanta convicção, que de repente, todos os lugares em que eu trabalhei antes pareciam amadores e sem graça perto dele. “Tá bom, eu vou”, eu disse. E ainda negociei um salário que era três vezes o meu. Aquele troco que eu comia no PF de R$ 6.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Tainara (narração): Finalmente, algo novo pra me entreter. Eram planejamentos, escalas, tabelas, planilhas, e muito brainstorm, muito mesmo. E eu me sentia útil, e conseguia ultrapassar os meus limites a cada dia. Foram os dez meses mais felizes da minha vida, desde a rádio. Até que me surgiu o que pareceu ser uma boa oportunidade, em outra cidade. E eu fui. Eu estava empolgada com tanta novidade, não tinha como ser ruim. E aí, a minha surpresa, a minha chefe era uma garota mimada, que ficava repetindo que a casa dela tinha cinco banheiros, só pra chamar atenção. Os outros funcionários aplaudiam aquela baboseira, a cada vez que ela abria a boca. E alguns ainda davam risadinhas forçadas, pra ver quem era o campeão daquela cena de puxa-saquismo escancarado. Com isso, a cada dia eu me arrastava para ir ao trabalho e me jogava na cadeira que, ainda por cima, fazia um barulho estranho toda vez que eu sentava. A vida voltara a ser um inferno.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Tainara (narração): Certo dia, eu cheguei e ela pediu que eu revisasse todo o trabalho do mês e pensasse no que podia melhorar. Depois, ainda pediu que eu escrevesse doze textos de praxe pros nossos clientes. E no dia seguinte, eu soube que ela mexeu em cada um dos textos e falou que era de autoria dela, tsc. Ah! Então, eu não tive dúvidas, eu pedi a minha demissão e saí de lá sorrindo até pra árvore. Eu percebi que não importa o quanto bem você ganhe, mas fazer o que você gosta ainda é o melhor caminho pra felicidade. E por mais que eu não tenha encontrado algo que me deixe tão feliz como antes, ainda caminho em busca do que vai me fazer feliz de novo, tsc. Ah, e eu voltei a comer meu PF de R$ 6. Mas, dessa vez, eu tô tranquila.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Tainara Rebelo é jornalista e, por acreditar que toda história é boa o suficiente para ser contada, passou a contar a história dos outros. Nasceu em Brasília e, depois de morar em cinco estados diferentes, atualmente reside em São Paulo. E só tem medo de uma coisa: ficar sem histórias para contar.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Ato 2, “O Presente”. Se, na história anterior, nós vimos o fantasma da infância presente na definição do que queremos, de fato, fazer pelo resto de nossas vidas, Eduardo Sousa nos traz, agora, uma história sobre a decisão mais difícil que teve que fazer, quando criança.

Eduardo (narração): Era a primeira vez em que eu poderia escolher o meu presente de aniversário, em todos os três anos da minha vida. Meus pais costumavam comprar eletrônicos ao vendedor que trazia de tudo do Paraguai, na mala do carro, para Timbaúba, a cidade de interior de Pernambuco onde eu morava. Foi dele que tínhamos comprado o Mega Drive, porque meus pais achavam que, jogando videogame, meus dois irmãos e eu iríamos nos tornar Einsteins.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Eduardo (narração): E era daquele porta-malas cheio de fitas que eu teria a responsabilidade de escolher o meu presente. Naquele momento, eu entendi como era ser Presidente. Teria que ser a escolha certa, porque a decisão não iria afetar só a mim, mas toda a sociedade. Se o jogo fosse ruim, meus irmãos me culpariam. Minha honra também tava em jogo. E eram tantas fitas. Era uma liberdade paralisante. Como se eu tivesse o mar pra desbravar e eu não soubesse nadar.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Eduardo (narração): No meio dessa tempestade emocional, meus olhos encontraram o presente. Eu tive uma certeza que realmente só poderia ter com 3 anos. Peguei a fita e corri muito mais rápido do que um ninja pelo consultório de dentista de minha mãe, que ficava no térreo, e subi as escadas até a frente da TV da sala, para apresentar minha decisão. Tinha escolhido o jogo das Tartarugas Ninjas.

(APÓS A VINHETA SONORA DO MEGA DRIVE, FADE IN E FADE OUT DA TRILHA SONORA DO JOGO)

Eduardo (narração): Toda minha certeza se confirmou. Meus dois irmãos, com mais do dobro da minha idade, sete e oito anos, aprovaram a minha escolha, brigando para ser a outra tartaruga, enquanto a tela da TV começava a emitir luz própria. Eu, óbvio, era Rafael, a tartaruga mais foda. Ali, pertencíamos ao mesmo universo, que ignorava toda diferença de idade, escola, obrigações. Tudo aquilo que, para eles, era cotidiano e, para mim, era um tanto alienígena. Ali, estávamos alheios a tudo que era real. E aquela fita era a ponte para esse universo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Eduardo (narração): Ficávamos alheios e, por isso mesmo, unidos para lutar contra o Destruidor. O de nós que não era nenhuma tartaruga assistia e ensinava os outros a jogar, gritando para que não morressem. Por outro lado, estavam ali apenas esperando que alguém morresse, pra jogar. E não havia contradição nenhuma nisso. Não havia contradição em nada ali. Tudo era tão crível como tartarugas mutantes ninja que viviam no esgoto e lutavam para salvar o mundo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Eduardo (narração): Mas a vida real, aos poucos, deixava a ponte mais deserta. E poeira acumulava na fita. Nosso universo ficava em repouso porque meus irmãos raramente queriam jogar, à medida que os dias iam passando. Nossos mundo se separavam cada vez mais, como se fosse uma gravidade ao contrário. Mesmo assim, eu lutava contra essa força e segurava o nosso universo. Passei a carregar a fita comigo para onde quer que eu fosse dentro daquela casa. E eu não fazia muito mais do que comer e brincar. Me intitulei guardião desse universo, apenas esperando quando eles quisessem voltar, pra colocar tudo em movimento.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Eduardo (narração): Não sei quantas semanas passei carregando essa fita. Mas, no final de algum dia, depois de segurar toda a gravidade ao contrário, guardando a ponte, um dos meus irmãos se decide deixar levar para outro universo, logo depois do jantar. Mal acabamos, rápido como ninja, segurei a fita e fui para o Mega Drive, enquanto meu irmão andava como uma tartaruga. Coloquei a fita no videogame e liguei. Tela preta da TV.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Eduardo (narração): Tirei a fita, soprei embaixo, coloquei de novo. Agora, com certeza, que estava bem posicionada. Tela preta.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Eduardo (narração): Aquela tela era um buraco negro que refletia o vazio desesperador daquele momento. Pegamos outra fita qualquer, enfiamos no Mega Drive, luz própria. Tartarugas Ninja, buraco negro. Eu era culpado pela destruição de um universo. De tanto que eu andava com a fita, alguma coisa deve ter caído nos circuitos e ela nunca mais ligou. Eu falhei em guardar aquele universo. Eu, cuja missão era proteger, destruí. Traí minha responsabilidade.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Eduardo (narração): Para mim, aquela fita, mais importante do que ser a ponte para o nosso universo, era a ponte entre três pessoas. E isso foi o que me transformou. Aquela fita me proporcionava um momento de pertencimento que o mundo real não me dava. Acho que nunca mais tive aquela mesma certeza, nem aquele mesmo pertencimento. Mas me lembro da segurança que ter aquela fita comigo me dava. E tenho certeza, aquilo, sim, era real. Já ouvi muito que cada cabeça é um mundo. Aquela fita de Tartarugas Ninja me permitiu atravessar o abismo entre pessoas. Permitiu gravitar mundos em um mesmo universo. Até hoje, quando observo pessoas conversando, imagino que força faz com que elas interajam, quais são as leis de gravitação universal que fazem esses mundos entrarem em movimento? E sempre lembro daquela fita. Hoje, eu não ando mais com fitas de Mega Drive. Mas ainda tento encontrar outros meios de gravitar outros mundos. Mas eu também perdi a inocência. Cada vez que eu tento atravessar esse abismo, lembro de colocar a fita no Mega Drive, e sei que ela pode estar quebrada.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Eduardo Sousa é designer, ilustrador e mestrando em Design pela UFPE, onde pesquisa sobre estranhamento e livros ilustrados. Suas pinturas estão no Instagram, e vocês podem encontrá-las na conta “sousaeduardo”, e seus textos estão, também, no Filosofia do Design, o blog do nosso querido amigo Marcos Beccari. E torçamos para que, hoje, o Eduardo consiga guardar melhor suas fitas de videogame.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Ato 3, “Surpresas e Famílias”. Parte do crescimento enquanto indivíduo se dá pelo contato com outros familiares. É aquela noção básica de “eu me reconheço a partir da minha relação com outra pessoa”. E as primeiras pessoas que temos contato são: nossos parentes. Mas o que acontece quando sua família não é exatamente aquilo que você sempre pensou? Isabela Cabral nos traz essa história.

Isabela (narração): Até os 6 anos de idade, eu era filha única. Hoje, depois de uma série de surpresas da vida, eu tenho cinco irmãos. E eu não sou mais a filha mais velha. Bem, deixa eu explicar direito como isso aconteceu.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Isabela (narração): Meus pais casaram cedo e, pelo menos em parte, acredito eu, pressionados pelo fato de que a minha mãe tava grávida de mim. Os dois eram bem ferrados de grana na vida, na época. E as coisas foram até melhorando um pouquinho, com o tempo. Seis anos depois – um intervalo razoável, né? -, veio a segunda filha. Minha irmã, Mariana. Eles acabaram se separando, um ano mais tarde. Mas esse não é o foco aqui, então eu vou pular os detalhes. Casamento, dois filhos, separação… Ok, comum. Só que, quando eu tinha onze anos, eu fiquei sabendo que, talvez, eu tivesse uma irmã mais velha.

(TRILHA SONORA ENTRA, MAS É INTERROMPIDA COM EFEITO SONORO DE DISCO DE VINIL ARRANHANDO AO PARAR BRUSCAMENTE)

Isabela (narração): Oi?!

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Isabela (narração): Aline, o nome dela, me disseram. Ela tem 15 anos. Tinha na época, né? A mãe dela morreu, ela teve uma infância muito difícil. Ela mora com a tia. Dizem que a tia bate nela. Essas foram algumas das primeiras informações que eu tive sobre aquela garota que eu não sabia nem que existia. Eu fiquei curiosa pra saber mais sobre ela, pra confirmar a história, claro. E, caso confirmado, pra saber exatamente o que isso ia mudar na minha vida.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Isabela (narração): Pouco tempo depois, mais uma novidade. Existia a chance de eu ter um irmão mais velho. Aham! Seis anos mais velho, pra ser mais precisa. Não, ele não tinha nada a ver com aquela irmã. Outro caso completamente diferente. Vamos lá, as primeiras coisas que eu soube sobre esse cara de 17 anos, na época, com quem eu provavelmente compartilhava o mesmo pai. O Jeferson é filho de uma auxiliar de enfermagem, ele tem uma irmã da minha idade, por parte da mãe dele. Ele é inteligente, estudioso, tinha inclusive acabado de passar para uma Escola Federal. E ele é surdo de um ouvido, porque teve meningite aos cinco anos. Ah, o Jeferson e a Aline moravam na mesma rua. Juro! Eles já se conheciam, e não faziam a menor ideia de nada. Não é plot de novela. É subplot da minha vida.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Isabela (narração): Lá estava eu, no meio de um festival de exames de DNA. Era como se eu tivesse no Programa do Ratinho, e o apresentador fosse aparecer a qualquer momento pra anunciar, daquela forma sensacionalista, os resultados. Um caso que a produção do programa ia adorar, aliás. Dois testes de paternidade do mesmo homem, com mães diferentes, de momentos diferentes. Mulheres essas com quem ele nunca chegou a namorar, com quem sequer saiu várias vezes, só ficou uma vez. É claro que esses detalhes eu só saberia mais tarde. Eu só tinha onze ou doze anos, naquele ponto. Bem, mas eu já deixei claro quais foram os resultados. Já dei spoiler. É que, na minha experiência, na experiência da família, meio que foi assim, não tinha muita dúvida, era mais uma questão técnica. Os dois são a CARA do meu pai. O queixo furado, a cor morena da pele, o formato dos olhos. Iguaizinhos. Muitíssimo mais parecidos do que eu ou a minha irmã por parte de pai e mãe. Então, dito e feito. Resultados positivos. Eu tinha ganhado, do nada, dois irmãos mais velhos. E aí, o que acontece agora?

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Isabela (narração): Não é como se eles fossem crianças. E eu nem morava com meu pai. Mas a gente ia começar a se ver? A conviver? Ela ia mudar pra mesma escola que eu? E eu, realmente ia enxergar, em algum momento, essas duas pessoas, até então estranhas, como meus irmãos? Algumas dúvidas se passavam pela minha cabeça. Na primeira vez que eu tive com a Aline, a gente foi num aniversário de 1 ano. Não lembro de quem. Numa casa de festas infantis enorme, dessas que tem vários brinquedos. A gente tava numas máquinas de jogos, em frente a uma mini parede de escalada. Cada uma em uma máquina. Eu não tava conseguindo fazer a minha funcionar. Aí, eu soltei uma reclamação. Ela rebateu com “se vira, você não é quadrada.” Essa cena ficou guardada comigo até hoje. Eu nunca soube muito bem por quê. Olhando, agora pra trás, talvez eu tenha ficado meio chocada com a arrogância dela. Ainda mais com alguém que ela mal conhecia. Talvez, tenha sido uma demonstração da criança – pré adolescente, sei lá – tosca que eu era, em contraste com uma pessoa mais independente que ela me parecia. Talvez, um pouco dos dois. Já meu primeiro encontro com o Jeferson, meu irmão mais velho, foi no aniversário de um tio, um churrasco na garagem. A gente certamente conversou sobre várias coisas. Mas eu lembro que um assunto foi música. Eu contei que eu curtia Beatles, Queen, Legião Urbana, entre outros. E ele me disse que gostava de Pink Floyd, The Who. Eu, meu pai e ele ficamos horas, em pé, batendo papo. Ele sempre tomava o cuidado de ficar do lado direito da gente. Ele explicou que o ouvido esquerdo era o ouvido bom.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Isabela (narração): Então, vejamos, contagem. Três irmãos. Eu já tinha a Mariana. Aí, vieram a Aline e o Jeferson. Mas eu disse cinco, lá no início. Acontece que, justamente nessa época, meu pai tinha acabado de se casar de novo. E não demorou muito, a esposa e ele resolveram engravidar. Foi quando demos boas-vindas ao mundo pra Ludmila.  Quatro agora, né? Bem, acelera seis anos. Também fruto do segundo casamento do meu pai, nasceu a Alicia. Pronto, um total de cinco irmãos. Nesse meio tempo, a minha relação com os meus irmãos mais velhos, esses que surgiram de repente… Um tempo meio esquisito na minha vida. Essa relação foi se construindo naturalmente e gradualmente. A gente saiu daquelas impressões iniciais e superficiais e aprendeu mais um sobre o outro. A gente descobriu coisas em comum, bastante coisa em comum. A gente se ajudou por momentos difíceis. Isso tudo, principalmente, eu devo dizer, com a minha irmã. A Aline passou por episódios que não caberiam aqui. E nós duas nos aproximamos. A Mariana, única irmã com quem eu cresci mesmo, é uma companheira. Passado o tempo de brigas idiotas de infância, nós nos damos super bem. Ter irmãs tão mais novas, ainda crianças, que é o caso da Ludi e da Alicia, é bem bacana. Elas são umas fofas e é uma delícia. Só podiam parar de achar que eu sou mãe delas, o que já aconteceu algumas vezes. Por mais que a vida tenha premissa de novela, de acordo com a minha experiência, os personagens não agem de forma tão dramática assim, não. É claro que os problemas existem. Existem mesmo. E a gente vai lidando com eles. Mas viver essa família com uma certa diversidade, inclusive de criação, é interessante. É bem interessante. Seja lá como ou quando chegaram, todos os meus irmãos têm a sua importância na minha vida. Todos estão presentes. Todos acrescentaram e continuam acrescentando pra quem eu sou, de verdade. E quando alguém, casualmente, me pergunta se eu tenho irmãos, eu não consigo evitar, eu sempre dou uma risadinha antes de responder.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Isabela Cabral tem 22 anos e está se formando em Comunicação Social na PUC-Rio. Adora podcasts e já participou dos falecidos Podcomer e Dark Passengers, lá por 2010. Atualmente, tem interesse por podcasts de storytelling e, em sua monografia,  trata desse assunto. Não à toa, ela está aqui no Projeto Humanos. E até o momento, pelo menos até onde sabemos, ela ainda está com apenas cinco irmãos.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Ato 4, “Minha Primeira Aula”. Um belo dia de manhã, acordamos e percebemos: “Ei! Eu não estou sozinho no mundo. Há outras pessoas que sentem coisas que eu sinto.” Já não somos mais o centro das atenções e o universo parece que não se resume mais às nossas casas. E alguns anos depois, com algum esforço e sorte, aprendemos também que outras pessoas passam por coisas que jamais imaginaríamos. Luiz Amorim nos conta um pouco mais sobre essa sua experiência.

Luiz (narração): Em alguns instantes, só havia o som da minha voz no ambiente. Atentos, os diversos ouvidos passam a ouvir os meus passos, um atrás do outro, em direção à mulher com o molho de chaves nas mãos. Este foi arremessado em meu rosto e, enquanto eu tateava o ar para evitar ser atingido, um chute súbito me levou ao chão. “Acertei mesmo ou você tá fingindo?”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Luiz (narração): Um dia, Bruna veio falar comigo no Facebook. Como tantos outros amigos antes dela, ela me procurou por causa do meu conhecimento em artes marciais. Mas aquele caso era totalmente diferente de tudo que eu já havia passado. A janela do chat se abriu com uma frase depois da outra que narrava, (ao fundo, ouve-se efeitos sonoros de digitação) “eu estava num bar, um cara grande discutiu comigo, nem vi o que havia em volta, soquei seu nariz.”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Luiz (narração): confesso que fiquei pasmo. Nada tinha a ver com fragilidade, mas com a inconsequência do ato. Nos próximos momentos, rolei a tela e percebi o quanto estava próximo desse assunto. (ao fundo, ouve-se efeitos sonoros de rolagem do mouse e cliques) “Violência contra a mulher é questão masculina”, “Sou neta das bruxas que eles não conseguiram queimar”, “PL 5069 é urgente para todas as mulheres”. Esses e outros textos publicados por apenas uma amiga, a Gigi.  Notei, de imediato, que haviam duas visões da mesma violência: a sentida na pele e o início de uma discussão. Cliquei no chat da Gigi. (ao fundo, mais efeitos sonoros de digitação) “Gigi, olha essa conversa que acabei de ter com a Bruna, vou colar aqui, é grave, né?” “Muito grave, Luiz.” “Eu tenho um plano, me ajuda?” Eu sentia necessidade de agir. Após tantos anos treinando, estava ali a grande oportunidade de eu ensinar algumas mulheres a se defenderem. Em apenas um dia, estava com um programa de aula em mãos e duas semanas para divulgar o workshop de Defesa Pessoal para Mulheres. Desarmes facas, armas de fogo, bastões e espadas. As minhas alunas sairiam da minha aula prontas a enfrentar os 88 loucos.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Luiz (narração): O dia estava quente e a sala estava com o ar condicionado no máximo. Na pequena mesa, havia frutas, chá, sucos e água. Quando as estudantes apareceram, a Gigi deu a minha primeira missão: permanecer em absoluto silêncio, apenas ouvir o que elas consideravam violência do dia a dia, os anseios etc. Tudo que eu já conhecia, correto? Puff, quem me dera.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Luiz (narração): Ao ouvir o segundo relato, tinha a certeza que o meu programa de aula não seria usado. Na verdade, meu coração batia mais forte, me arrepiava ao ouvir cada detalhe daquilo que achava que não acontecia com ninguém. “Eu penso três vezes antes de sair de casa de saia.” “Então, ele passou por mim, atravessou a rua e fez um som assim (ele faz um som com a boca de sugar o ar para dentro, entre dentes).” “Ele era meu superior e apertou minha mão com seu dedo médio tocando a palma da minha mão.” E continuava, enquanto o suor gelado gelado começava a escorrer na minha nuca. Uma vez na balada; uma vez no ônibus; uma vez chegando em casa…

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Luiz (narração): Dentre todos os relatos, nenhum continha uma arma branca, de fogo ou bastões. Pior, nenhum teria acontecido comigo. Mulheres diferentes trocavam experiências praticamente iguais. Dentro da minha cabeça, a Beatrix Kido estava apontando e rindo de mim. Eu era o professor que mal entendia que a violência tem diversos níveis, como o assédio. O alongamento seria a última técnica que eu realmente ensinaria? Resolvi fechar os olhos e voltar a escutar cada história que acabara de ouvir, e que ainda ressoa na minha memória. Meus ombros relaxaram, quando fiz a primeira demonstração. Aos poucos, caminhei entre as alunas e preenchi a sala com a minha curiosidade. Entre os golpes, meus olhos pairavam nos detalhes de mãos, pés. Conforme o esperado, durante as horas de aula, recebi diversos golpes. Mais do que técnicas, elas deveriam aprender algo que aprendi naquele momento. O único inimigo é seu próprio ego. E sejam atentas aos detalhes e preencham as situações de dificuldade. Meu programa adotado deu lugar a perguntas improvisadas. Meu papel, ali, era mostrar uma possibilidade, uma chance de tomar alguma atitude sem ter medo, e utilizar elementos cotidianos como vantagem. Seduzir e tocar de leve um ponto de pressão no rosto do cara que tenta te cercar no bar. Entender que a caneta dentro da bolsa poderia perfurar e imobilizar o indivíduo que mal viu que você a tinha em punho. Arremessar o molho de chave daria um segundo de abertura para um chute.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Luiz (narração): Aquela tarde quente marcou meu corpo e das alunas, com arranhões e pequenas contusões. Muito suor e sorrisos precederam nosso abraço de despedida. Além de golpes, elas tinham em mãos a fonte de tudo que eu considerava de mais puro em ensinar: a capacidade que temos em tomar consciência e passarmos a agir, ao invés de reagir. A desconstrução é mais dolorida, pois  ela não machuca onde você vê, mas sim onde você resiste. De certa forma, digo que ensinar só foi possível pois aceitei aprender. Talvez agora eu esteja mais preparado a ser agente dentro desse contexto de violência, que presencio todos os dias em pequenos detalhes e que, além de tudo, fazemos parte.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Luiz Amorim é formado em Design e possui MBA em Branding. Trabalha com apresentações desde 2009 e, por conta disso, acaba criando histórias para tudo, desde produtos e, especialmente, pessoas. Além das artes marciais, possui também um enorme amor por caligrafia e podcasts. E, acima de tudo, é um grande amigo nosso.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Chegamos ao fim da primeira série de Crônicas do Projeto Humanos, e esperamos que vocês tenham gostado da experiência. Elas podem voltar a qualquer momento. Então, não esqueçam de assinar o nosso feed. Em breve, também teremos a estreia da nossa segunda temporada, e eu pretendo lançar um teaser dela nas próximas semanas. Ou seja, é mais um motivo para você acompanhar a gente no feed. Siga-nos também pelo Twitter, através do @anticast e use a #projetohumanos; tudo junto. Assim, saberemos que você está nos ouvindo e que nossa palavra está sendo espalhada. Vamos agora àqueles créditos finais que vocês já conhecem tão bem. O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. As histórias desse programa foram produzidas por Tainara Rebelo, Eduardo Sousa, Isabela Cabral e Luiz Amorim. Lembrando que eles são nossos possíveis colaboradores futuros, e seria muito bom que pudéssemos remunerá-los de alguma maneira. Portanto, se você acha que essa galera tem potencial, por favor, contribua no nosso Patreon. Isso será essencial para uma maior periodicidade. O link para a contribuição está no post. E não esqueçam de comentar, dizendo se gostaram das histórias ou não. Pois, assim, tentaremos melhorar nos programas vindouros. Nos ouvimos em breve. E, até lá, que sua vida seja recheada de boas histórias para contar. Até a próxima.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição e edição por Sidney Andrade. Revisão por: José Roberto A. Frutuoso