1 – Perdas

16 de dezembro de 2015

Neste primeiro episódio de Crônicas, temos o relato de Ivan Mizanzuk, falando sobre o Natal de 2015; Diogo Braga, do Diário do Menestrel, reflete sobre a expressão “Homem não Chora”; o historiador Pedro Ferrari nos apresenta suas memórias de infância, no apartamento em que morou quando criança; e Rafinha Martinelli nos mostra que, às vezes, é preciso nos perdermos de nós mesmos para entendermos quem somos.

>> 0h02min00seg Ato 1: “Como Ácido no Aço”, de Ivan Mizanzuk
>> 0h21min00seg Ato 2: “Homem Não Chora”, de Diogo Braga
>> 0h28min55seg Ato 3: “Sobre Janelas e Ficções”, de Pedro Ferrari
>> 0h39min42seg Ato 4: “Uma Toalha é só uma Toalha?”, de Rafinha Martinelli

Descrição da arte: obra “Branco Sobre Fundo Branco” (1918), de Kazimir Malevich.

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Diário do Menestrel

Transcrição

Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. A nossa segunda temporada deverá se iniciar em fevereiro de 2016 e eu ainda estou produzindo ela. Mas enquanto ela não chega, eu achei que seria legal contar algumas histórias para vocês, como se fosse uma midseason, assim, antes da temporada começar. Mas quais são essas histórias, vocês devem estar se perguntando. Eu não sei se vocês sabem, mas a alguns meses eu venho fazendo uma espécie de workshop com interessados em contribuir ao Projeto Humanos. Nós temos realizado encontros via Hangout, trocado e-mails e eu tenho ensinado técnicas de storytelling, que é o formato de podcast que fazemos aqui. Muitas histórias legais surgiram nesses encontros e serão elas que vocês vão ouvir por aqui. Elas são bem diferentes do que já ouviram aqui, pois não são em formato de entrevistas. Nessa etapa em que nos encontramos, os candidatos estão ainda aprendendo a contar histórias individuais como pequenas crônicas. E é por conta disso que esses programas serão chamados de “Projeto Humanos [Crônicas]”. Serão histórias de amor, de saudades, de superação. Enfim, histórias reais, sobre pessoas reais.

Ivan (narração): E quem conhece um pouco de podcast storytelling deve saber que o Projeto Humanos é muito inspirado no This American Life, famoso podcast dos Estados Unidos de onde surgiu, por exemplo, o Serial, esse podcast que, enfim, quebrou todos os recordes de downloads. Este modelo de crônicas já é bem comum lá no This American Life. Então a gente tá fazendo isso por aqui também. E assim a gente mata um pouquinho da nossa saudade em ouvirmos histórias e conhecermos novos personagens. E se é para nos inspirarmos no This American Life, permitam-me realizar meu sonho de ser o Ira Glass, o host do This American Life, já que ele é meu herói. Então, este é o Projeto Humanos e nas próximas semanas escolheremos um tema, contaremos histórias que exploram este tema em vários ângulos. E o tema de hoje é “Perda”. Serão 4 atos.

Ivan (narração): E chegamos, enfim, ao Ato 1 do nosso programa, produzido por mim. Ato 1, “como ácido no aço”. Semana que vem é natal e se tem uma coisa que me deixa estressado é pensar com quem que eu vou jantar. Será que vai ser com a família do meu pai, com a família da minha esposa… E há tantas ramificações, tantos caminhos dentro dessas duas opções, que a sensação de vertigem é enorme. Para facilitar, um lado da minha família criou um mecanismo. Fazemos um pré-natal na casa de um parente para que todos podemos estar com menos opções na noite do dia 24 de dezembro. Mas este natal será diferente. Era dia 29 de março, um domingo. Eu acordei com uma ligação do meu pai avisando que o seu irmão, meu tio Edson, havia falecido. Ele morava no litoral do Paraná e à noite, enquanto o corpo ainda estava a caminho de Curitiba, eu me encontrei com o meu pai, minha avó Dalva, e as suas irmãs Zilda e Dano. Eu não sei explicar o porquê, mas eu senti um impulso de gravar o que estavam conversando. Tirei o celular do bolso, coloquei em cima da mesa, e gravei parte do que aconteceu aquela noite.

(ENTRA GRAVAÇÃO EM SOM AMBIENTE)

 

Pai: Alguém quer mais um café?

Dalva: Não, obrigado.

Pai: Ninguém dorme, né. Não sei como vai ser a sua noite também. Mas só para avisar, já está a caminho, tá.

Dalva: Pois é, isso que eu quero… Eles vão ligar?

Pai: Então, aí é assim.

Dalva: Ligou pra você agora?

Pai: Não, eu tô trocando. Falando com o Diogo, Nicole.

Dalva: Sim, mas…

Tia 1: O teu celular tocou?

Pai: Sim, era o Diogo.

Tia 1: Era o Diogo. E daí?

Pai: E daí, já tão subindo. O médico, ela não quis assinar a papelada.

Dalva: Não quis?

Tia 1: E quem é que fez o laudo?

Pai: Então, daí diz que conseguiram a permissão para trazer o corpo pra cá, pra doutora Daniele assinar.

Dalva: Ah, isso que eu te falei. É isso mesmo.

Ivan (narração): Quando pensamos em uma família se reunindo, horas após a notícia de um parente morto, provavelmente a cena que imaginamos é toda de luto, chorando muito. E isso de fato ocorre, mas apenas nos primeiros momentos. Depois de um tempo, os ânimos se acalmam e começamos a conversar sobre outras coisas. Ainda assim, há sempre um desconforto no ar, a atmosfera fica pesada. Mas há outros motivos para que a conversa estivesse nesse tom naquela noite. Anos atrás, meu tio Edson havia sido picado por uma aranha marrom e o veneno dela acabou entrando tanto no seu corpo que acabou corroendo parte de um osso da perna. Eu não lembro se era direita ou esquerda. A solução seria uma cirurgia, mas daí entra outra parte da história da sua vida. Ele bebia. E para fazer uma cirurgia dessas, o paciente tem que parar de beber por um tempo, o que ele não conseguia fazer. E então entrava um círculo vicioso. Ele sentia dores na perna, insuportáveis, tomava remédios, não adiantava. E a bebida acalmava. Mas ele tinha que parar de beber para fazer a cirurgia que nunca fez. A saúde vai se agravando e anos atrás ele chegou a ser hospitalizado.

Dalva: …só que a segunda vez que ele foi internado. A primeira vez ele foi internado com 30% de chance de sobreviver.

Ivan (narração): 30% de chance de sobrevivência.

Dalva: …teve que ser contido. Sabe o que é contenção no hospital? É amarrar também a pessoa.

Tia 1: De agressivo que ele tava.

Dalva: Agressivo não. Abstinência do álcool. Ele via…

Tia 1: Delirava.

Dalva: …é, delirava. Ele via jacaré no teto. Uma mosca vira um monstro. Começa a ter delírios.

Pai: Terrível. Disse que foi terrível lá. Tanto que quiseram…assim, aquela história né, não quiseram mais ele lá.

Tia 2: Aham.

Dalva: Assim ele não (incompreensível)…

Pai: Só não pegaram, despacharam ele de lá, “porque aqui não é o lugar pra isso”, porque ele estava doente também. Não era só abstinência. Então, daí eles quiseram estabilizar, né…

Dalva: A saúde.

Pai: …E daí ficaram. Foi aquilo que a mãe falou. Amarraram ele, fizeram…ele falou “quero beber”, “quero isso”, que não sei o quê…

Tia 1: Meu deus…

Pai: Terrível.

Ivan (narração): Quando esse tipo de coisa  acontece com alguém que amamos, nós queremos acreditar que a vida da pessoa vai mudar. Que ela vai parar de beber, que ela vai se alimentar melhor, vai fazer exercícios. Mas a realidade é que as pessoas são mais complicadas do que pensamos.

Pai: …aí ele ficou o quê, uns 30 dias, né, um negócio…?

Dalva: Não, ele ficou em casa. Ficou 6 dias sem beber. 6. Depois eu fui lá. Eu fui lá, então ele tinha uma garrafa de vodka, um copo…uma garrafa de vodka na frente dele. Sempre. (breve silêncio) Isto neste primeiro internamento. E depois do segundo internamento também. Ele simplesmente não aceitou não beber. Não aceitou.

Pai: É, ele…sabe aquela história que você fuma e daí encontra um médico que diz que cigarro não faz mal? Alguém lá do hospital falou “não, isso que você teve foi uma virose”.

Tia 1: Meu deus.

Pai: Virose cerebral. Quer dizer…é tudo que ele queria ouvir.

Dalva: É, era tudo que ele queria ouvir.

Pai: Era tudo que ele queria ouvir. “Ah, não, não tive crise abstêmica, não sei o quê. Não sou alcoólatra. Foi uma virose que atacou o cérebro.”

Dalva: Sim, atacou o cérebro ,sim.

Pai: Era tudo que ele queria ouvir.

Dalva: Ele estava com infecção no cérebro.

Pai: Tava mesmo. Tava feia a coisa.

Dalva: A segunda vez, ele foi internado com 3% de chance.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Pai: Aquela vez já foi (incompreensível)…

Dalva: Já foi pro Hospital das Nações. Que daí já foi a… Essa menina.

Pai: Aquela, Dani.

Dalva: Hã?

Pai: Aquela Daniele.

Dalva: A Daniele que encaminhou. Porque no Hospital das Nações ela trabalhava.

Tia 1: Ela é clínica geral?

Pai: Ela é clínica geral e cardiologista, eu acho.

Dalva: Não sei, ela tem uma especialidade, não sei qual que é.

Pai: Ela tem duas.

Dalva: Eu sei que ela… “lá eu posso cuidar dele melhor, né, porque eu trabalho lá”. Daí, quando ele teve alta…daí ele teve alta, certo? Ele foi tratado, foi pra UTI, lógico, porque foi morto. Assim, praticamente morto. Deus o leve. Ai, Jesus. (suspiro)

Pai: Calma, mamãe.

Dalva: Eu sei que daí a Daniele tratou dele tudo, e quando ela foi visitar ele em casa. (pausa) Ele…seis primeiros dias também ele não bebeu. Mas depois…não whisky, mas vodka, por causa do cheiro. De primeiro, escondeu das pessoas, mas depois não escondeu mais.

Ivan: Acho que ele misturava cerveja com Campari, né? Cerveja com Campari.

Pai: Ele misturava, tava misturando já. Guaraná com bebida. Ele misturava tudo. Cerveja com Campari…

Dalva: Tudo. Tudo tinha que ter álcool. Tudo. A cerveja é fraca demais, não satisfaz. Mistura, toma cachaça. Nem que seja cachaça. Então daí a Daniele viu ele bebendo e disse assim, “Edson, eu não vou tratar mais de você”.

Pai: É.

Dalva: “Eu disse pra você, Edson, você saindo do hospital, você não pode mais beber. O teu organismo não aguenta mais.” Foi clara com ele.

Pai: Não adiantava.

Dalva: É, não adiantava.

Pai: Não adiantava. Não era mole. Eu já vi gente teimosa, meu deus do céu, mas esse…

Dalva: E daí, ele…

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Meu tio era funcionário público, e por conta  das dores que passou a ter, chegou a se aposentar com antecedência. Pegou o dinheiro que conseguiu da aposentadoria, sacou o FGTS e com isso comprou uma casa na praia. Quando eu soube que ele estava indo morar no litoral, eu fiquei feliz por ele, pois ele sempre amou pescar. Pensei que teria descanso, afastado da vida na cidade, e eu nunca soube que essa sua mudança era também um sintoma da sua doença…até aquela noite.

Dalva: E aí, ele comprou a casa lá, sem muito critério. Ele gostou do lugar porque lá ele ia pra casa do Adilson, que é um cara que tem uma marina lá, e eles eram sócios num barco de pesca. E ele passeava. Me levaram passear de barco, mas faz muito tempo…antes, bem…anos atrás. Eu sei dizer que ele comprou a casa lá, eu fui também. Fui lá…

Pai: Foi lá e não voltou mais, porque ele falou que de lá não saía. Que é o que o alcoólico chama de fuga geográfica, né.

Dalva: É fuga geográfica.

Tia 1: Ainda existe isso? Quanta coisa que tem, né?

Pai: É, fuga geográfica. Você sai do convívio da família, vai pra um outro lugar, pra poder beber sossegado.

Dalva: Pra poder beber sossegado, pra ninguém te encher o saco.

Tia 1: Fuga geográfica?

Dalva: Chama fuga geográfica.

Ivan (narração): A ideia de que o alcoolismo é uma doença que influencia até na sua escolha de onde você quer morar foi algo completamente novo para mim. Minha avó, naquela noite, como em tantas outras, me ensinava uma coisa nova. E o motivo por ela saber tanto sobre os sintomas do alcoolismo é que ela também já sofreu isso.

Dalva: Eu vou fazer isso, eu vou fazer um teste. Presta atenção, eu vou fazer um teste. Peguei, preparei… eu tomava Coca-Cola com uísque. Credo, ui, se eu vejo hoje me dá ânsia.

Tia 2: Eu achava que era café que ela tomava, sabe?

Dalva: Pensava. Mas era Coca-Cola com uísque. Eu peguei e preparei um pouco de Coca-Cola, uísque, pus lá um gelinho, e fui tomando, dentro daquele meu normal, assim. Devagar. Um copo dava quase pro dia inteiro, porque eu bebericava. Nunca fui assim de… eu bebericava, bebericava, não sei se é a palavra correta, bebericava ou bebericar. Eu bebericava. Pronto, é.

Ivan (narração): Esse ato de bebericar é significativo. O alcoólico se engana, achando que está bebendo pouco. A família ignora porque acha que é pouco. O problema é a constância com que isso ocorre, mas lá no fundo sabe-se que há um problema maior.

Pai: Mas se a pessoa tem esclarecimento, ela sabe das coisas, ela só não quer ter esse tipo de esclarecimento.

Dalva: Não, a pessoa não quer aceitar, né.

Tia 1: Quando a pessoa não quer, não quer. Meu Jesus.

Ivan (narração): Minha avó se separou de meu avô antes de eu nascer. Ela se casou novamente e ela e seu marido dormiam em quartos separados, pois ele gostava de ler de madrugada e ela não conseguia dormir com os sons das páginas das revistas virando.

Dalva: E eu queria me acomodar pra dormir e não conseguia, porque ele ficava com a luz acesa e lendo. E virando e virando revista. Mas então, tudo bem, ele que faça o que ele quiser. Dorme separadinho, se ama se for necessário, na hora de amar… e pronto, né, daí acabou a discussão.

Ivan (narração): O que é algo curioso, tendo em vista que, anos depois, ela se tornou a madrugueira da família. Seus hábitos eram os mais inusitados para uma idosa. Ela gostava de acordar às 4h da tarde, e dormia lá por 7h, 8h da manhã. Quando eu morei com ela, era assim, eu estava saindo para trabalhar e ela estava indo dormir, sempre. Mas isso foi muito depois de o seu marido falecer. Nesta época, enquanto ainda estava casada e dormindo em quartos separados, ela começou a sentir dores por conta do seu vício.

Dalva: Daí eu quis andar…quem disse que eu ando? Não ficava em pé. A dor não deixava, não deixa.

Pai: E o que é que você fez?

Dalva: O que eu fiz? Eu esperei até 6h da manhã… mesmo com aquela dor miserável, terrível, insuportável. Aí, eu me arrastei lá, pelo carpete, né. Era forração no chão, assim… Eu me arrastei até a suíte, arrastada até a suíte dele, me puxando com as mãos assim, sabe? Porque força com as pernas eu não tinha nenhuma, zero, zero força. E dor, muita dor. Aí, ele disse, daí ele chamou o Emerson, daí os dois me levaram carregando por aqui e me levaram pro hospital, pro HPM, o Hospital da Polícia Militar.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Dalva: E lá eu fiquei. Depois de uns dois dias que eu estava lá, ele chegou pra mim, depois que tiraram sangue, fizeram exame, tudo. Daí, acusou HGP, né. HGP é aquela coisa que… aquela coisa… uma enzima que só o organismo do alcoólico forma, cria, né… Que o índice de HGP em uma pessoa que não bebe, ou que bebe socialmente, digamos assim, não aparece. Aparece zero vírgula alguma coisa, então…

Tia 1: Tipo dum bafômetro, um etilômetro…

Dalva: Isso, é isso. Agora, a pessoa que bebe diariamente, essa enzima é que faz com que você beba de novo. A falta dessa enzima causa o tremor. Por isso você tem que repor, né, pra ela fazer de novo o efeito de baixar a ansiedade, sei lá eu.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Dalva: Isso me deu, eu pedi pra Deus me derrubar, Zilda. Eu pedi pra Deus me derrubar. Me derruba, me mostra alguma coisa pra eu sair disso. Porque o álcool, ele… ele ao longo… principalmente do jeito que eu tomava… eu tomava todo dia, pouquinho, sabe? A mesma coisa que jogar uma gotinha de ácido numa coisa que o aço mais resistente, ele fura, se você jogar ácido devagarzinho. Então, o meu… Devagarzinho, o ácido, no caso o uísque, ele desencapa, ele desencapa os nervos. Os nossos nervos têm uma camada, uma camada protetora, como se fosse a nossa pele, assim. Como se fosse uma pele sobre os nervos, e isso vai e desgasta, na continuidade. E aí, você perde a força. Perde a força e a dor é insuportável.

Ivan (narração): Por isso, esse Natal de 2015  será tão diferente para mim. Mesmo já não tendo passado os últimos natais com meu tio e minha avó, será estranho pensar que ceias familiares se realizarão sem eles. Será estranho pensar que o cara que me dava mordidas na testa quando eu era criança não estará mordendo as testas de seus netos. Será estranho pensar que a minha avó, que tinha o coração do tamanho do mundo e foi tantas vezes enganada por querer ajudar os outros, não estará pensando em quem poderá ajudar depois. É estranho pensar que todos morremos, mas que cada morte é sentida de maneira única por cada um de nós. Nos Alcoólicos Anônimos, dizem que você tem que acordar todos os dias com o pensamento “só por hoje eu não vou beber”, e assim viver um dia de cada vez. E neste Natal eu proponho uma certa inversão de lógica para vocês que passarão as ceias com suas famílias. Digam para si mesmos, só por hoje eu vou aguentar discussões sobre política, sobre futebol, sobre como Fulano é insuportável, como ciclano é um vagabundo. Só naquele dia, tentem aproveitar este encontro como algo que vale a pena, pois vale. E se você conhece alguém que está com problemas com álcool, ofereça auxílio, pois mesmo que a pessoa escolha morrer sozinha na praia, pelo menos que ela tenha tido a opção de ser ajudada.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Chegamos  ao ato 2 de nosso programa. Ato 2, “Homem não chora”. Eu não duvido que, até hoje, existam pais que falem isso para seus filhos. Eu mesmo devo ter ouvido isso uma vez ou outra, quando eu era criança, e fico feliz que essa mentalidade esteja mudando, mesmo que seja aos poucos ou muito rápido, eu não sei. A história a seguir nos mostra como mesmo aqueles durões das antigas, às vezes, quebram suas regras. Ela foi produzida e narrada por Diogo Braga, que não, não é do MRG.

(SOBRE EFEITOS SONOROS DE MOVIMENTAÇÃO EM INTERIOR DE AVIÃO)

voz de comissário de bordo: Voo 1843, com destino a cidade do Rio de Janeiro. Durante a decolagem, o encosto da sua poltrona deverá estar na posição vertical e a sua mesa fechada e travada. Em caso de despressurização, máscaras de oxigênio cairão automaticamente. Puxe uma máscara para liberar o fluxo e coloque-a sobre o nariz e a boca, ajuste o elástico em volta da cabeça e respire normalmente. Se estiver acompanhado de uma criança ou alguém que necessite de ajuda, coloque sua máscara primeiro para, em seguida, ajudá-la. Luzes de emergência ao longo da cabine, no piso e no teto indicarão o caminho para as seis saídas de emergência, sendo localizadas duas na parte dianteira, duas saídas sobre a asa…

Diogo (narração): Tá bom, tá bom, eu admito. Eu tenho 28 anos e hoje eu chorei em público. É a primeira vez que choro como um homem adulto. Chorei na rua e por mais que meu pai falasse em minha infância que homem não chora, hoje chorei copiosamente, de tal forma que todas as pessoas que passavam me olhavam e percebiam. Mesmo que eu tenha tentado me segurar, disfarçar, não há situação de fragilidade maior que esta. Uma situação que um homem não deve se sujeitar. A última vez que eu havia chorado, eu devia ter por volta dos meus 13 ou 14 anos. Eu me lembro até hoje, estávamos eu e Rodrigo, meu amigo de infância, indo pro luau de carnaval, todos bem arrumados e cheirosos, cheios das expectativas que uma criança, quase adolescente, possui quando sai para uma festa.

Diogo (narração): Ao nos dirigirmos para o portão, eis que surge o Kojak, o enorme cão de guarda do condomínio de casas que vivíamos. Com as pernas bambas, cambaleou em nossa direção, balançando o rabo, com pelo sujo, fedido e com um bafo de morte. Kojak, apesar de agora moribundo, havia sido um cão incrível. Era um pastor alemão enorme, que mesmo sendo um temível cão de guarda, havia tido toda a calma e gentileza de suportar nossas brincadeiras infantis. Tivera uma paciência de Jó pra aturar todas as puxadas de rabo e todas as vezes que o montamos para fazer de cavalo. No entanto, naquele dia, ele não era tão belo como fora outrora. Já possuía seus 12 anos, o que corresponde há uns 84 em idade de cães. Estava tão velho que o simples fato de o ver andando era tão raro que nos assustamos. Naquela hora, ele voltou de súbito, percorreu 5 ou 6 metros com ânimo jovial, sacudiu a cabeça, ensaiou um latido e enfiou seu focinho na minha mão.

Diogo (narração): Afastei rapidamente porque tinha acabado de tomar banho, eu tava limpo e indo para o luau. O enxotei logo, dizendo “sai fora, seu fedido!” Rodrigo o enxotou também, fazendo uma menção de que nossas mãos poderiam até cair caso o Kojak as lambesse. Então, saímos do condomínio e fomos para o aguardado luau. Nos divertimos muito. Passada a noite, voltamos a pé, observando o lindo nascer do sol. Descalços, sujos de areia da praia e da fuligem da fumaça da fogueira. Abrimos a porta do condomínio e chamamos logo. “Kojak! Kojak!” Mas nem sinal dele. Agora que estávamos sujos, poderíamos afagar o quanto ele quisesse, pois a catinga que pegaríamos dele seria logo lavada por um banho, mas nem sinal. Procuramos no canil, atrás da casa de bomba, e o achamos deitado embaixo da caçamba da camionete do meu pai. O cutuquei, mas ele não se mexeu, seu corpo já estava duro, havia morrido logo no início da noite, logo depois de eu negar um último afago, um último adeus.

Diogo (narração): Chorei por todos os dolorosos momentos que se passaram, quando cavamos um buraco no fundo de uma das casas e o tapamos com terra. Chorei tanto que até hoje o Rodrigo me caçoa. Naquele momento, chorar, de alguma forma, parecia permitido. Afinal, eu era uma criança, não um homem. Mas hoje eu chorei de novo e, como você já sabe, chorei na rua. Chorei como adulto, chorei logo após a minha mãe me ligar e me dizer, “já temos o resultado do exame meu filho, seu pai está com câncer”. Não há como estar preparado para uma notícia desta. E eu, que moro em outro estado, estou de viagem de trabalho e não possuo lugar para me esconder. Tudo que passa na minha cabeça são os momentos que fui mal criado, arrogante, respondão. E penso também como ele suportou tudo com a sabedoria de um educador que molda um caráter. Não tenho medo que ele morra, a morte é certeza e a vida do meu pai, de certa forma, foi ótima. Aos meus olhos, ele é um grande homem. E tenho certeza, seu coração estará leve como uma pluma quando sua hora chegar.

Diogo (narração): O que mais me abala é saber que… Que não sinto medo pelo meu pai, mas sinto por mim mesmo. Eu me sinto sujo, vil e egoísta por isto. É engraçado, por vezes mascaramos e escondemos nossos sentimentos para parecermos nobres, corretos, virtuosos. A verdade é que eu tenho medo de chorar, eu tenho medo de parecer ridículo. Tenho medo de chorar, de sentir um vazio, de sequer pensar na hipótese de não ter dado toda atenção que o meu pai merecia, de não ter sido um bom filho e, de alguma forma, fazer o que fiz com o Kojak. De negar um último afago, um último adeus. E essas palavras eu escrevo no avião, indo encontrar meu pai. E no momento, meus olhos se enchem de lágrimas. Me encosto no assento, baixo a cabeça e respiro fundo, engulo o choro, as lágrimas enchem os olhos e turvam minha visão. Chego na iminência de transbordar. Com o tempo, elas somem no ambiente seco do ar condicionado, mas sei que hão de brotar. Porém, da próxima vez, vou chorar como uma criança, com a intensidade que for. Não vou me segurar e não vou disfarçar. Porque meu pai sempre me ensinou que homem não chora. Mas dizia também que, por vezes, não há mal nenhum em um homem agir como uma criança.

Voz de Comissário de bordo: …Para afivelar o seu cinto de segurança, puxe a lateral para ajustar. Para soltar, levante a parte superior da fivela. Cartões com instruções de segurança encontram-se nas bolsas à sua frente. Os acentos de suas poltronas são flutuantes. Em caso de pouso na água, retire-o e leve-o para fora da aeronave. Para a decolagem, reduziremos as luzes da cabine e, se necessário, utilize as luzes individuais de leitura. Tenham todos um bom voo, e muito obrigado.

Ivan (narração): Diogo Braga é um carioca de sangue mineiro, bacharel em direito pela UFRJ, e arquiteto e urbanista pela UFF. Apesar de não ser do “Matando Robôs Gigantes”, também é podcaster, e comanda o excelente “Diário do Menestrel”, que eu recomendo muito que conheçam. Como vocês devem ter percebido, ele adora sound design  e ambientações sonoras, o que faz com que seus programas sejam experiências únicas.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA: “BOYS DON’T CRY” – THE CURE)

Ivan (narração): Chegamos ao terceiro ato de nosso programa. Ato 3, “Sobre janelas e ficções”. Sabe quando você para pra pensar quando foi a melhor época da sua vida? Quando faço isso, eu sempre lembro de uma casa onde morei com meus pais, num bairro residencial, aqui em Curitiba. E sempre que passo na frente dela, eu me pergunto como será que ela está, será que mudaram os móveis, talvez quebraram alguma parede… Um dia, eu ainda toco a campainha deles e peço para que me deixem fazer uma visita. Mas enquanto esse dia não chega, ficamos aqui com essa história narrada por Pedro Ferrari e produzida com a minha ajuda, onde é explorada essa questão da memória dos lugares e detalhes onde vivemos quando crianças.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Pedro (narração): Costumava ficar encarando por horas as estrelas adesivas pregadas no teto. Bastava desligar as luzes do quarto e elas logo se destacavam na escuridão. Um brilho esverdeado e discreto. Sempre fechava a porta. Em parte, para que o brilho das estrelas não fosse atrapalhado pela luz do corredor, sempre acesa; em parte, para abafar os estalos da madeira do piano da sala. Aquilo me apavorava.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Pedro (narração): Tinha uns 6 ou 7 anos. Já fazia alguns anos que havia mudado para Brasília, mas não conseguia me acostumar com os estalos dos móveis, provocados pela secura do ar da cidade. Minha mãe, certa vez, me explicou que fazia a madeira contrair e rachar. O tampo do piano, em poucos anos, ficou cheio de longas e salientes estrias. Para um garoto vindo do Rio de Janeiro, aqueles tantos meses sem uma única gota de chuva eram, no mínimo, desconfortáveis. Por horas, ficava deitado, encarando o teto, insone. Lembro que, a época, passava noites inteiras assim, sem conseguir dormir. Depois que comentei sobre a minha insônia com o meu pai, ele passou a ir sempre ao meu quarto. Quando percebia que eu não conseguia dormir, me tomava no colo e me levava à sala. Passávamos pela luz acesa do corredor e íamos à janela. Ele abria, com certa dificuldade, a cortina, um tecido pesado e sempre enganchando no trilho do teto, me colocava no parapeito e me contava histórias. Apontava para as janelas dos prédios vizinhos e inventava pequenas trajetórias para as pessoas que supostamente moravam naqueles apartamentos. Falava de uma senhora que passava as noites ouvindo rádio no prédio do outro lado da rua. Dois andares abaixo, um garoto que atravessava o corredor nas pontas dos pés para comer alguns biscoitos na cozinha. Uma mulher que chegava tarde do trabalho. Um homem que fechava a porta da sala para ouvir música e não incomodar o sono dos filhos. Aprendi a também contar histórias. Para cada qual das janelas, contribuí com as narrativas do meu pai. A cada noite, histórias diferentes para as mesmas janelas. Sabia que meu pai queria me fazer dormir, e para que ele achasse que funcionava, no dia seguinte, repetia o ritual comigo, diversas vezes fingia dormir no seu colo. Ele então me levava cautelosamente até o quarto, me colocava na cama e lentamente fechava a porta. Eu permanecia deitado, pensando naquelas tantas histórias. Ainda que estirado sobre o lençol, não estava exatamente no meu quarto. Não mais prestava atenção nas estrelas do teto, mas continuava, de alguma forma, olhando por aquela janela.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Pedro (narração): Sem notar, acho que aprendi a amar a ficção e não colocá-la abaixo daquilo que se pode tocar. Tudo isso me fez querer buscar um mundo através daquela janela. Até então, sempre isolado, entretido entre as minhas coisas e o meu quarto, passei a brincar cada vez mais na rua. Durante o dia, jogava com as outras crianças do prédio. À noite, criava histórias para elas, um misto do palpável e da ficção, como se as duas coisas se confundissem. Foi nesse arriscar do quarto e janela à fora que conheci Augusto, que se tornou um grande amigo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Pedro (narração): Sentávamos em um banco em frente à portaria do prédio e, vendo o vai e vem das pessoas, construíamos histórias sobre aquela gente que não conhecíamos. Ou melhor, os conhecíamos tão bem que a cada dia suas histórias ficavam cada vez mais ricas. Augusto me dizia que não gostava das tais estrelas adesivas. Elas atrapalhavam o seu sono ou distraiam. No seu quarto, que tantas vezes visitei, tantas coisas que o definiam. A escrivaninha, sempre com folhas e mais folhas desenhadas; um teclado que adorava dedilhar. Ele morava no andar logo abaixo do meu. O desenho dos cômodos era o mesmo, mas são essas pequenas diferenças, a escrivaninha, a posição do armário e da cama, que faziam daquela casa dele e não a minha. Vivia em meio a suas próprias ficções.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Pedro (narração): Algum tempo depois, eu e meus pais nos mudamos. Ainda visitava o prédio e Augusto. Era pequeno demais para entender o que aconteceu, mas algum problema com o dono do apartamento que os pais de Augusto alugavam os fizeram mudar. Quando saí com meus pais do prédio, Augusto se mudou para a casa onde eu morava. Lembro de visitá-lo algum tempo depois e o quão estranho era entrar num quarto que era meu, mas agora refeito como quarto de Augusto. A velha escrivaninha dele colocada onde antes ficava o meu puff; as estrelas do teto arrancadas. Com o tempo, as visitas ao meu antigo prédio se tornavam cada vez mais esparsas. Algum tempo depois, já não ia mais à casa de Augusto.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Pedro (narração): Ainda assim, alguma coisa daquela janela, com meu pai contando histórias, permaneceu. Cresci. Gostava de escrever, criar personagens. Tive uns dois ou três amigos imaginários. Meus pais, achando que me sentia solitário, decidiram me dar um irmão. E tão logo ele nasceu, passei a contar histórias, as minhas ficções, pra ele. O apresentei para os meus amigos imaginários. Se tornaram grandes amigos.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Pedro (narração): Em cada situação diferente, criava minhas próprias janelas. Decidi cursar história. E então, minha janela se dava entre fontes históricas e bibliografias. Elas eram palpável e eu as misturava com as minhas próprias ficções pessoais. Mais velho, mudei-me para uma quitinete apertada, com uma janela pequena, quase um basculante, que dava a um prédio separado por poucos metros do meu. A vista era estreita e nem um pouco bela. Mas não importava, minha janela era outra, que encontrava entre os livros que lia para o meu doutorado.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Pedro (narração): Desse inquietamento com as tantas histórias que nos cercam, tive a curiosidade de revisitar meu antigo prédio. Já tinha uns vinte e tantos anos e pouca esperança de encontrar meus antigos amigos, ou Augusto. Ainda assim, fui até lá.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Pedro (narração): Depois de tantos anos, descobri que os pais de Augusto ainda moravam em meu antigo apartamento. Me convidaram para entrar. Sentei-me no sofá que nunca foi meu, no canto da sala que mal reconhecia. Mas as pesadas cortinas da janela ainda estavam lá.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Pedro (narração): Como não poderia ser diferente, perguntei sobre Augusto, onde ele morava agora, decorridos tantos anos, talvez uns 18 ou 19. Ele havia se suicidado há uns 10 anos. Aos poucos se isolou em seu, ou meu, quarto. Pouco falava, pouco saía. A certa altura, decidiu correr as cortinas da sala, abriu a janela, sentou-se no parapeito e deixou-se cair. Apropriou-se de outra forma de meu antigo apartamento, de minha velha janela. Tal como as estrelas do quarto, arrancou da janela o olhar que tantas vezes eu lançara no colo de meu pai através dela. Transformou aquele apartamento em outro, a partir de suas próprias ficções. Tudo que me fez me lançar porta afora do quarto, querendo alçar o mundo, foi transformado num motivo para fechar-se. Por muito tempo, creditei à janela de meu velho apartamento essa vontade de conhecer o que está lá fora. Mas não. Eu, assim como Augusto, transformamos aquele espaço no que queríamos, quer seja se inspirando a sair e explorar, quer seja isolando-se e se deixando cair.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Pedro Ferrari é um historiador e professor amante da micro história. Em seu doutorado, estudou a história de Febrônio, Índio do Brasil, um assassino serial carioca da década de 1920. Em 2009, publicou o livro “Entreato: o cotidiano de um praça brasileiro na Segunda Guerra Mundial”, pela Annablume, onde abordou a trajetória de seu avô na FEB, a partir de diários, cartões postais e fotos. Em 2012, participou do finado podcast “Visão Histórica”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Chegamos ao quarto e último ato desse programa. Ato 4, “Uma toalha é só uma toalha”. Fechando nossas histórias sobre perdas, perguntamos, você já se viu perdendo a própria identidade? Será que isso faz bem? Rafael Martinelli nos presenteia com uma linda história, totalmente produzida por ele, que trata desse tipo de perda.

Rafael (narração): É um dia qualquer. A criança está deitada em sua cama de hospital, recuperando-se de uma complicada cirurgia. (vozerio e sons de aparelhos médicos) Ao seu lado, sua mãe dorme, encolhida com uma blusa sobre o corpo improvisando uma coberta. Na cabeceira da cama, um livro de colorir dinossauros, ainda sem cores. O quarto é iluminado por uma TV que a estática insiste em interromper a programação de repetitivos desenhos animados.

(EFEITO SONORO DE BATIDAS À PORTA)

Rafael (narração): Alguém bate na porta. Um homem de jaleco branco pergunta se poderia entrar. A criança acha estranho, está tão acostumada a ver pessoas indo e vindo, enfiando-lhe tubos e injeções, que até esquecera a sensação de dar permissão. Com a pouca força que lhe resta, ela aquiesce. Um sapato totalmente desproporcional ao resto do corpo adentra o quarto. O doutor convida seu parceiro a segui-lo. Este, com seu par de gravatas e chapéu furado, entra tropeçando.

(EFEITO SONORO DE BATIDA)

Rafael (narração): “Silêncio para não acordar a mamãe!”, grita baixo o primeiro. Os doutores notam o livro na cabeceira da cama. “Exatamente o que procurávamos! Um ‘dinossaurista’ profissional.” Eles então passam a consultar a criança sobre diversos aspectos “dinossaurescos”, tentando reproduzir em seus corpos o caminhar de diferentes espécies.

(EFEITO SONORO DE TOSSE)

Rafael (narração): A mãe é acordada pelo som de leves risos e fortes tosses. Mas havia um problema. A dupla de forma alguma conseguia reproduzir o rugido de um tiranossauro rex, então pedem ajuda ao especialista. A criança, com muita dificuldade, solta o maior rugido que consegue.

(EFEITO SONORO DE RUGIDO FRACO)

Rafael (narração): Soa quase imperceptível, mas é o suficiente para assustar a dupla que dispara em fuga. (música de fundo alegre) Na saída, ambos tentam passar ao mesmo tempo pela porta (som de tosse), caindo para trás. Levantam, se ajeitam, disputam no par ou ímpar quem irá primeiro. Uma vez resolvido o impasse, olham novamente para a criança, que repete seu tão perigoso rugido (som de rugido) e voltam a correr, tropeçando um no outro. Se despedem ao som de leves tosses e fortes risos (som de tosses em meio a risos).

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Rafael (narração): Os pseudomédicos fecham a porta às suas costas, se olham compartilhando a sensação de um bom trabalho, retiram seus respectivos narizes vermelhos de borracha e escutam a criança contando para a mãe tudo o que acontecera nos poucos minutos que se passaram. Nem imaginavam que a criança há dias não falava e ficava imóvel encarando a TV. Nem imaginavam que, naquela mesma noite, a criança pintou todos os dinossauros daquele livro de colorir. Nem imaginavam que os olhos da mãe se enchem de lágrimas só de lembrar dessa visita.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Rafael (narração): Quando eu era pequeno, brincava de ser herói. Eu vestia uma toalha como capa, cortava um pedaço de papelão pra fazer uma máscara e estava pronto para salvar o MUNDO! Mas o tempo passa rápido. Alguns anos depois, as responsabilidades aumentam e a realidade bate. Descobri que a toalha é só uma toalha. Que não sou capaz de salvar o mundo. Por isso, minha capa tornou-se uma gravata. Minha máscara, um sorriso forçado. O vilão me maltrata e atormenta mensalmente disfarçado de números, invadindo minha casa por debaixo da porta. Mister aluguel e seus comparsas, luz, água, tributos, etc. etc. E toda vez que me secava após o banho, a toalha tentava se enrolar em meu pescoço. Algo dentro de mim gritava pra eu ir lá, salvar o mundo… E, colocando a gravata, eu respondia, “tantas tragédias enormes, mas não consigo nem salvar a mim”. Toalha contra gravata. Gravata contra as contas. Uma batalha épica! Assim, cada dia que se passava, mais um “idem” escrito no meu diário. E foi numa dessas repetições, caminhando acelerado pelas ruas, que deparei-me com uma estranha moça. Rosto colorido, nariz vermelho, roupas que mal cabiam no corpo. Eu estava atrasado, mas ela me acompanhou. Ao meu lado, perguntou-me se eu poderia ajudá-la. Na verdade, tentava me persuadir, dizendo que seria mais cômodo pra mim ajudar do que ter que aguentá-la enchendo o meu saco. Ok, me convenceu. Me convenceu fácil demais, provavelmente porque parte de mim queria muito ver o que ela ia fazer. Aquela parte de mim que queria esquecer que eu estava indo ao trabalho, cada dia com a gravata mais apertada, prestes a me sufocar. Aí, ela me posicionou diante de alguns objetos no chão. Objetos esses espelhados à minha frente, onde ela tomou seu posto. A moça veste o capacete e sinaliza para que eu também o faça. O mesmo com as cotoveleiras e joelheiras. Em seguida, uma espada verde de espuma. A minha era azul. Enfim, gritou “EM GUARDE!”, e avançou em minha direção.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA DE AVENTURA ÉPICA)

Rafael (narração): Lutamos ferozmente por alguns segundos. Para mim, foram horas. Ela duelava contra um cara de gravata, eu duelava contra meu chefe, contra minhas contas, contra… contra… mim. Até que minha espada atravessa o corpo da minha oponente (som de espada), que cai dramaticamente morta ao chão!

(TRILHA SONORA É INTERROMPIDA SUBITAMENTE)

Rafael (narração): (ele pigarreia) Tá bom, tá bom. Encaixei a espada em seu sovaco. Aos poucos, o mundo foi tomando forma ao meu redor (som de rua). Não estava mais num espaço abstrato de luta. Estava rodeado por transeuntes desconhecidos (vozerio comemorando), que aplaudiam e riam de meu feito. Fiz uma reverência em agradecimento, explodindo de vergonha.

(EFEITO SONORO DE APLAUSOS)

Rafael (narração): Ajudei minha oponente a se levantar, ofereci uma quantia razoável de dinheiro, mas ela se negou a recebê-lo. Disse que o meu sorriso valia muito mais do que qualquer dinheiro que eu pudesse oferecer. Depois disso, eu fui para o trabalho (som de escritório). Aliás, não era mais o mesmo eu que foi para o trabalho. Fiquei incomodado. Para ela, meu sorriso vale mais do que o dinheiro que eu tinha a oferecer. Já eu, troco diariamente o meu sorriso por dinheiro. Aquilo simplesmente fodeu minha cabeça.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Rafael (narração): Hoje, sou palhaço. Para muitos, é difícil ouvir essa frase sem interpretar pejorativamente. Mas sim, sou palhaço, com prazer e orgulho. Palhaço profissional. Um termo que muitos acham ser uma piada, mas não é. Desde que me deparei com aquela estranha criatura na rua, passei a estudar a linguagem e, acredite, não é nada fácil. Existem diversas técnicas, teorias, limites éticos… enfim. Assim nasce o palhaço Doutor Zé Ninguém, que nada mais é que eu. Sendo Zé Ninguém, não preciso ter vergonha dos meus erros ou reprimir minha imaginação. E conversando com a mãe da criança que visitei há poucos dias, aquela especialista em dinossauros, percebi que não preciso de uma máscara de papelão. O nariz de borracha é uma máscara de verdade. Mas calma! Não quer dizer que voltei a ser criança. Sei bem que não vou salvar o mundo ou qualquer coisa assim. Mas posso transformar o momento. E, se isso é tudo que eu posso fazer, darei o máximo para fazê-lo da melhor forma possível. Enquanto homem-artista-palhaço, posso fazer de minha profissão a ideia de transmitir um pouco de subversão. Palhaço não é só piada. Afinal, você está até agora me ouvindo e eu não contei nenhuma. Apenas te apresentei um ambiente lúdico e te convidei a ser mais aberto para isso. Não! Não é uma campanha de alistamento para palhaços. Essa foi a minha trajetória. Cada um que encontre a sua. Sendo assim, é opção sua ouvir toda essa história que te contei e duvidar de cada palavra. Afinal, que credibilidade tem um palhaço? Pois sabemos bem que uma toalha é só uma toalha, assim como uma história é só uma história. Ou então você pode afrouxar um pouco essa gravata aí, erguer uma espada de espuma e lutar contra você.

(FADE IN E FADE OUT DA TRILHA SONORA)

Rafael (narração): Em fim, me despeço, deixo aqui minhas reverências e agradecimentos por ter me ouvido até agora. E peço apenas uma coisa em troca, se não for pedir demais. Seu sorriso! Acredite, ele vale muito mais que seu dinheiro.

(FADE IN E FADE OUT DA TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Rafael Martinelli, o Rafinha, é formado em produção audiovisual e direção teatral, além de palhaço e músico. Ano que vem, começará uma coluna em um podcast sobre videogame, no site indievisivel.com.br; Indie é de “indie” mesmo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. As histórias desse programa foram produzidas por Ivan Mizanzuk, Diogo Braga, do Diário do Menestrel, Pedro Ferrari e Rafinha Martinelli. Lembrando que eles são nossos possíveis colaboradores futuros e seria muito bom que pudéssemos remunerá-los de alguma maneira. Portanto, se você acha que essa galera tem potencial, por favor, contribua no nosso Patreon a partir de um dólar. Sua ajuda será essencial para uma maior periodicidade. O link para a contribuição está no post. Não esqueça de comentar, dizendo se gostaram das histórias, pois assim poderemos melhorar nos programas vindouros. Até semana que vem, com mais crônicas, aqui no projeto humanos.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição por Eduarda Severo, Sharisy Pezzi, Aline Koroglouyan, Zé Roberto. Edição por Sidney Andrade. Revisão por Jean Carlos Oliveira Santos