3 – Uma Jihad

22 de março de 2016

Neste terceiro episódio de O Coração do Mundo, voltamos à história de Paula Zahra, muçulmana de Curitiba que foi aos jornais em 2015, denunciando agressões que sofria diariamente. Através da sua história, entenderemos mais sobre as diferenças entre xiitas e sunitas, nos aprofundaremos na questão da mulher muçulmana, movimentos feministas e, por fim, buscaremos entender o verdadeiro sentido da Jihad na vida de um muçulmano.

 

Arte da capa por Amanda Menezes
Crédito da Foto: Haifeez via VisualHunt / CC BY
Lettering por Luiz Amorim

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Antropologia e Islã – Site da Francirosy Campos Barbosa

Transcrição

Paula: É uma sensação de comprometimento porque, como eu disse, não é fácil. Não é fácil você… você ser muçulmano, porque você tem obrigações, você tem deveres a cumprir, tanto com você mesmo quanto com a sociedade, com as pessoas com quem você convive. Você tem que sair dali com teu coração limpo. Eu tinha muita mágoa de algumas pessoas da minha família adotiva por não me aceitarem, né. Então, você… você renascendo, essas mágoas, elas não têm que existir mais. E quando as pessoas falam, hoje em dia, a mídia fala “ah, porque tem o Jihad”. O Jihad que, pra algumas pessoas, é a briga, né, é a luta física civil que tem dentro dos países, né. E na verdade, a palavra “Jihad”, o sentido da palavra “Jihad” para o muçulmano é o Jihad pessoal, é a luta constante que você tem com você mesmo pra fazer o que é certo, o que é muito difícil.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Como prometido, neste terceiro episódio da série “O Coração do Mundo”, voltamos à história da Paula Zahra, de forma que possamos entender, em termos práticos, como que a Sharia influencia a vida de um muçulmano no seu dia a dia.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Então, a Sharia, como um sistema de leis, é uma mistura de interpretações do Alcorão, de escolhas de Sunas que serão usadas de base, além de jurisprudências e culturas locais. E antes de adentrarmos na questão da Jihad, mencionadas agora há pouco pela Paula, vamos dar um exemplo prático de costumes advindos de diferentes interpretações da Sharia. Como a Francielli mencionou, “Sharia” significa “a senda reta”, “o caminho certo”. Logo, espera-se que um muçulmano viva de acordo com os preceitos de sua religião. E mesmo sabendo disso, como ouvimos no último episódio, a Paula acabou tendo um filho fora do casamento, e não necessariamente porque ela queria isso.

Paula: Quando as pessoas falam porque… olham você usando um véu, eles acham que você é a virgem Maria reencarnada, né. Você não tem defeito, você não fala palavrão, você não tem direito de… de estar de mal humor, de tratar alguém mal. Eu sou uma pessoa normal, eu err… e assim, eu não vou falar “errei”, Deus que me perdoe eu falar que meus filhos são um erro. Não são um erro, eles não são. Eu… igual eu falo, assim, às vezes eu converso muito com Deus e eu falo assim, Deus, eu tava querendo fazer o certo, eu queria casar com o pai do Nicolas, eu fazia o certo, só que o cara é pancada da cabeça. O que eu vou fazer? Eu vou ficar quanto tempo lá, quatro anos e meio? Eu ficaria quantos anos dando murro em ponta de faca? Era um sofrimento… ia ser um sofrimento desnecessário. Mas eu quis, né, eu falo assim, o Senhor conhece meu coração, o Senhor sabia que o sentimento que eu tinha por ele era um sentimento que levaria a um casamento. Mas e aí, se o cara não tinha esse mesmo propósito na vida dele? Tanto que tá aí, com quarenta anos, solteirão, não tem família, não tem… não tem filho, porque o filho dele não convive com ele.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): E como está a Paula hoje? Há cerca de quase dois anos já após ter sido rejeitada no episódio do Cairo, no Egito, ela se apaixonou por um novo homem.

Paula: Eu sou noiva. Ele não é muçulmano, ele é católico. Ucraniano. Já fui na igreja dele, eu achei um absurdo o padre rezar de costas pros fiéis (Ivan ri). Não entendi nada do que eles falaram, a missa deles é duas horas de missa. Mas é muito lindo, é muito bonito.

Ivan: Ortodoxa?

Paula: Ortodoxa. E eles rezam, eu nunca… né, eles rezam de costas lá pro… faz a homilia, enfim, de costa pros fiéis. E eu falo “como assim de costas?”, né, e ele falou “ué, como assim, você fica trinta dias sem comer o dia inteiro!” (os dois riem). Daí, eu, “tudo bem, perdoado”.

Ivan (narração): Mas há algumas coisas da história da Paula que eu não mencionei. Apesar de ter sido dada para adoção, sua mãe biológica nunca saiu de cena.

Paula: Eu vi ela uma vez, é… lá no Carrefour do Campo Comprido, nós estávamos fazendo compras lá, eu tinha acho que uns seis, sete anos, eu lembro. E tem aquelas gôndolas de doce na frente do caixa, e daí tem os de revista, então… eu tava na revista, nos livros, e eu tava… eu lembro que eu tava folheando um almanaque da Turma da Mônica, assim, eu lembro… e ela chegou, uma senhora, essa mulher chegou e botou a mão na minha cabeça e começou a conversar com os meus pais, daí eu só olhei pra cima. Então, assim, eu lembro dela assim: que ela tinha um cabelo preto, curto, e ela tinha uma cicatriz no rosto. Só essa imagem que eu tenho dela. E outra, uma outra situação que ela tava, eu estudava no colégio… naquele Opet da Água Verde. e ela ficava, é… no portão. Aí, foram… disseram pros meus pais que ela tava meio que… rondando o colégio. Daí, foi avisado o colégio. E daí eu vi algumas vezes essa mulher no… na época não era Opet, era Nova Era o nome da escola, e eu estudava ali. E aí, parece que ela foi… ela justificava pro meu pai assim, que ela só queria saber como é que eu tava. Aí, eu acho que eles acabaram até indo na delegacia, né, porque meu pai tava chegando ao ponto de… de repente, fazer até uma… agredir ela, porque ela começou a ser muito incisiva, ela começou a perseguir. Então, eu tinha que ficar mudando de escola… né, a gente não sabia o que ela queria, ela podia… e assim, eu só vi ela uma vez mesmo, eu era muito criança, e a imagem que eu tenho dela é essa.

(ALGUNS INSTANTES DE SILÊNCIO)

Paula: Eu tava brincando, daí chegou essas… brincando no quintal da minha casa assim, na frente de casa, e chegou essas duas mulheres perguntando aonde que morava o Seu Riva, que é meu pai. Daí eu, bem maluquinha, “ah, mora ali”. Daí, falou assim, “ah, você sabe se ele tem uma filha, uma menina?”, e eu falei assim, “por quê?”, né. “Não, a gente só quer saber se… pra saber se realmente é esse senhor que a gente tá procurando”. Daí, eu falei, até lembro, eu falei “senhora, com esse nome, eu acho que se tiver três no Brasil é muito”, né (Ivan ri). E ela falou assim… só que não falei que era eu. Falei “ó, mora ali um casal, o nome do senhor que mora ali é Riva.” Continuei ali, elas foram lá e chamaram a minha mãe. Minha mãe saiu. Elas ficaram muito tempo conversando lá dentro da minha casa. Aí, nisso minha mãe me chamou e falou assim, “ó, Paula, essas duas senhoras aí, elas são amigas da sua mãe.” Eu falei, “minha mãe é você, e se elas continuarem aqui eu vou chamar a polícia.” E daí ela falou… “Eu não quero falar com elas!”. “Elas querem te conhecer, elas querem conversar com você.” “Não, mas eu não quero conhecer elas e eu não quero conversar, eu não tenho nada pra falar”. E eu falei, “eu vou ligar pro meu pai!”, e daí, a minha mãe falou assim, “não, mas converse”. Daí aquela coisa… seja educada, né, seja receptiva e tal. Ok. Eu entrei, assim, mas eu nem olhei na cara delas, eu entrei direto na sala e fui pro quarto. E daí, lá eu comecei a chorar. Não sei o que eu não queria escutar, o que elas tinham pra me falar, porque eu achava assim, elas… eu tinha duas pessoas na minha frente que conheciam a minha mãe, que poderiam me contar tudo o que eu queria saber. Eu só tinha treze anos, professor. E daí elas chegaram, daí a minha mãe vinha conversar, “venha, pelo menos cumprimente”, né. Aí, assim, meio… meio não querendo, eu fui na sala, né, e daí elas começaram a falar “nossa, parece com a sua mãe”. Tudo o que eu não queria escutar era isso, que eu parecia com a minha mãe, que eu lembrava muito a minha mãe. Eu não queria escutar isso. E daí, ela falou, “ah, a gente veio aqui porque… a gente quer contar pra você uma situação chata, né, mas a gente acha que você tem o direito de saber”, e daí, foi quando elas contaram. E eu vou ser bem sincera… sincera mesmo. Eu vou ser bem, acho que… mórbida, no que eu vou falar, assim… mas me deu um alívio, parece que fechou ali. Ela… A morte dela fechou um ciclo da minha vida, assim. Pronto, agora parece que eu renasci. A pessoa que me botou no mundo não existe mais, quem existe agora é meu pai, e eu tenho um apego muito grande com o meu pai, porque foi ele que decidiu me adotar, foi ele que me escolheu. Então… o sentimento que eu tenho… não sei se é feio até, falar uma coisa dessa, mas foi esse sentimento que eu tive. Que na hora que elas falaram “ela faleceu no parto do filho, era uma menina, só que a gente não sabe dizer se a menina…”, não sabe dizer não, desculpa, eu não lembro, né, se a menina que ela teve no parto sobreviveu. Eu não lembro, isso eu não vou confirmar pro senhor porque realmente eu não lembro. Mas o sentimento que eu tive no momento e que eu tenho hoje é isso, que ali fechou um ciclo. Ela morreu, acabou, eu não vou saber de onde que eu vim, quem que era meu pai. E não tem como saber, né, sei lá, na minha cabeça acabou, pronto, agora… a minha vida começa aqui. E aí, foi quando tudo começou a acontecer.

Ivan: Você se sente mal de ter sentido assim?

Paula: Não, pra mim foi um alívio. Não que eu… eu não queria que ela tivesse morrido, mas a morte dela, é… pronto, a pessoa que não me quis não tá mais aqui, não vai poder mais ficar reivindicando nada… eu não sei explicar, assim, mas, pronto, acabou aquela agonia de saber quem é, de querer ver o rosto, sabe? Agora ela não existe mais. Agora ela vai ser uma imagem na minha cabeça, mas eu sei que ela não existe mais. Eu acho que eu tinha muito medo de ela existir e a gente… eu ter que um dia ou outro ter esse encontro com ela. Eu acho que… hoje, com trinta anos, eu acho que é isso que eu tinha medo. De chegar um dia na vida adulta, por um acaso do destino, eu… ter que bater de frente, bater de frente no sentido de ver ela, de conversar e de escutar, de ela querer ou tentar se justificar porque que ela me deu. Que pra uma criança que… eu não sei, né, mas pra quem é adotado é inaceitável. A gente cria filho comendo leite com farinha, e cria e não dá pra ninguém. E eu sou mãe hoje, então eu falo não… eu sou mãe, não tem justificativa você dar um filho. Não tem. Não tem, professor.

Ivan (narração): Anos mais tarde, quando tinha uns 20 anos, com a ajuda da internet e usando um site chamado “Good Angels”, a Paula procurou por informações de seus irmãos. Acabou encontrando um, mais velho, que reside atualmente em Angola.

Paula: Nesse Good Angels, é, você coloca informações ali, e você tem que ir atrás, tem que ir pescando. Daí, eu só sei desse meu irmão mais velho, que o nome dele é Maurício, mas também não sei se ele mudou de nome, porque eu mudei de nome, né, quando eu passei a ser adotada, eu mudei de nome. Ele também provavelmente tem uma outra certidão de nascimento. Tem um outro irmão, que agora deve ter seus 25, 26 anos também. O que a gente sabe é que o nome dele é Juliano, mas também não sabemos aonde ele tá. E tem essa menina, que nasceu no dia que ela faleceu, que eu também não lembro, porque elas falaram dessa criança, só que eu não lembro se ela sobreviveu ou não. Mas eu já fui muito atrás, hoje em dia, não mais. Depois que eu tive o meu primeiro filho, eu não procurei mais, porque acho que a vinda do meu filho na minha vida preencheu aquele vazio que eu sentia na questão de família de sangue.

Ivan (narração): Não saber da onde você veio, às vezes, pode ser uma oportunidade justamente para começarmos uma vida totalmente nova, sem amarras. Contudo, após ter entrado em contato com o Maurício, seu irmão de sangue mais velho, aquele que mora em Angola, ela descobriu que seu pai biológico, com quem nunca teve contato, também era muçulmano. E se antes, seu compromisso com a religião já era forte, a partir dali, sua reversão ganhou um sentido ainda maior.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: E esses dias, eu falei pra minha mãe, “mãe, você já percebeu que eu tô vivendo tudo o que minha mãe viveu?” E a minha mãe falou, “Pois é”. Daí, minha mãe falou, “você já percebeu que cê tá se afastando da sua religião?” Falei, “tô, faz dois anos isso”. “E cê viu a consequência? Veio um outro filho”. Eu falei, “Tá mãe, mas eu…” Eu uso DIU, professor. Eu usava o DIU, tanto que o meu médico falou bem assim, “olha, eu tenho 25 anos de medicina ginecológica, obstetrícia, eu nunca peguei nenhum parto, nenhuma gestante que usasse o DIU e tivesse engravidado.” Daí, eu falei, “tá, doutor, então me explica”. E ele falou, “você quer que eu te explique pelo lado da medicina ou lado religioso? Se eu te falar da medicina, é impossível. Agora, se eu for falar pra você que…” ele falou, “eu sou católico. Se eu for falar pra você da minha religião, de religiosamente falando…”, ele falou, “ah, Deus quis isso pra tua vida, aceita!”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Hoje, eu tenho dois filhos homens, que era tudo que eu queria. E eu posso dizer, eles são a minha família, é sangue do meu sangue, né. Então, depois que eu tive o Nicolas, eu não… deixei isso pra trás e a minha família é ele.

Ivan: Quais são os nomes dos seus filhos?

Paula: Nicolas Augusto e Bernardo.

Ivan: Quantos anos eles têm?

Paula: O Nicolas fez 10 anos, o nome muçulmano dele é Ali. E o Bernardo tem um ano e o nome muçulmano dele é Hassan.

Ivan (narração): Segundo a Paula, o tempo máximo permitido no islamismo para a duração de um noivado é de seis meses. Mas o primeiro contato que teve com o seu atual noivo foi há dois anos. E desse relacionamento, um novo filho veio, o Bernardo. E a forma como ela lida com esse novo filho e sua religião é bastante interessante para entender a diversidade da Sharia na vida de um muçulmano. Afinal, sua reversão, primeiramente, foi numa mesquita sunita. Contudo, aqui em Curitiba, a maior parte da comunidade muçulmana é da vertente xiita. E apesar dos dois grupos conviverem bem, inclusive frequentando a mesquita juntos, há alguns anos ela optou por viver o rito xiita. E nesse ponto, há uma prática interessante nesse meio.

Paula: E aí, o que a gente fez, é, a gente fez a Mutah, que é, aquilo que eu falo. Então, assim, é, eu não estou ilegal com ele dentro do Islamismo. Eu estou ilegal com ele dentro da religião dele. Então, pra religião dele, ele está cometendo adultério, que é um pecado muito grave. E eu falo pra ele, “você tá consciente disso, né? Eu, na minha religião, ó…” (Ivan Ri) “… tô joinha com Allah!” Porque a gente faz a Mutah. O que é a Mutah, professor? É um casamento temporário. É uma permissão lá que você tem pra conviver com aquela pessoa, pra realmente vocês se conhecerem, ver se realmente é aquilo que vocês querem, né. É, dentro da Mutah, tem gente que fala, os libaneses falam “motah”, né. Mas, é, dentro da Mutah você tem um… Quando você vai no civil, o casamento no civil, você faz o Contrato! No contrato de Mutah, você discrimina ali, vamos ter filhos ou não, vou… é, ela pode trabalhar ou eu vou pagar todas as despesas dela.

Omar: Pros muçulmanos xiitas, é permitido a Mutah. O que é Mutah? Mutah é o casamento temporário.

Ivan (narração): Novamente, o jornalista e historiador Omar Nasser Filho.

Omar: O muçulmano deixa seu país e vai para outro. Ele vai ficar um ano nesse outro país. A religião islâmica não é uma religião que sufoca, que esconde ou que põe embaixo do tapete as necessidades do ser humano. O islamismo, ele disciplina a satisfação dessas necessidades. O alimento, a bebida e também o sexo, né. Nós não podemos pressupor que esse homem que fica durante um ano fora de casa, longe da sua mulher, não sinta a necessidade do sexo. Então, o que o… a escola xiita diz, é permitido, nesse caso, a Mutah, ou o casamento temporário. Só que, casamento, ou seja, celebrado mediante contrato, ou seja, isso implica em obrigações de caráter jurídico. Esse homem não pode simplesmente, durante um ano, dispor da companhia dessa mulher, inclusive no aspecto sexual, e ir embora. Vamos supor que dessa relação advenha uma gravidez, um filho. Ele é obrigado a cumprir com as suas obrigações jurídicas, sustentar esse filho, sustentar essa mulher, não pode simplesmente abandonar. A escola sunita não permite a Mutah. Né, quem revogou a Mutah foi o Califa Omar. Quer dizer, era previsto pelo próprio Profeta Muhammad, mas Omar é… concluiu que não era um procedimento correto, mas é um Califa, sucessor do Profeta Muhammad, revogar uma legislação que foi reconhecida pelo próprio Profeta. Então, só pra te mostrar um aspecto da Sharia que tem uma interpretação entre os sunitas e outra interpretação entre os xiitas. O Alcorão não… não… não… não cita esse especificamente a questão do casamento temporário. Pelo menos, até onde eu conheço, né. Eu não sou um sábio jurisconsulto, né. É… o que eu sei é que o profeta Muhammad previu isso e considerou correta a prática, como uma maneira de disciplinar o ato sexual. Quer dizer, o homem não pode, simplesmente, como se diz aqui no ocidente, pular a cerca. E depois a mulher que se lasque (sons de mãos se batendo) pra provar paternidade, né. Quer dizer, o cara vai embora, some no mundo, às vezes deixa essa mulher até com uma doença venérea aí, né. E ela que arque com as consequências. Não, o islamismo, pelo menos na escola xiita, disciplina essa questão.

Paula: Às vezes as pessoas falam, “ah, mas mora junto, não sei o que”. Eu falei, “ah, eu tenho união estável”. Eu falei, “que que vocês tão falando aí de casamento temporário, criticando os árabes aí, se vocês fazem o casamento estável?” Pronto! Cabou a conversa! (Ivan ri)

Omar: Poxa, mas a mulher, então, ela viaja, ela fica muito tempo fora, ela não tem o direito também de ela se relacionar com outros homens? A gente tem isso acontecendo. Isso acontece. Quer dizer, a figura do corno, na nossa sociedade, é até uma figura jocosa, de brincadeira, né, de piada, mas ela traz no seu íntimo um fato que é um fato da realidade. As mulheres, também, hoje, estão fazendo isso. O problema que eu vejo, Ivan, é que é… isso acontece sem regramento nenhum. Nós temos a multiplicação das doenças venéreas, nós temos a multiplicação de uma série de traumas de ordem psicológica, não só para ela, mulher, mas também pro homem, também pros filhos, né. Ou pros filhos que vêm sem querer, muitas vezes. O Brasil é um país que tem um índice enorme de maternidade infantil. Meninas de 14, 15 anos, 13 anos, 16 anos engravidando, um dos índices mais altos do mundo.

Paula: Por isso que eu falo, professor, né, eu não recebo críticas, porque o meu casamento dentro da minha religião é legalizado. Tem a minha Mutah, que vai vencer agora dia… aliás, já venceu dia 15, que é no contrato de seis meses, né. Já tamos indo aí pro sétimo mês. E a gente faz na frente de um Xeique, com o alcorão aberto, e ele vai falar, “olha, tua obrigação agora é isso, isso, isso, isso e isso; isso, isso e isso…” É um casamento temporário. Então, acabou o período da Mutah, você, obrigatoriamente, ou vocês se casam, no casamento civil e na mesquita, né. E no casamento… mas obrigatório no civil, ou acaba. Então, agora, o que aconteceu? Ele foi pra casa dele, né, voltou lá pra casa dos pais dele, e… pra ter aquele conversa com os pais e, quando ele retornar… Ó, vamo falar no português claro, ou vai ou racha! (Ivan ri) Né, eu falei pra ele, “não tem mais conversa, é marcar a data do casamento”. Daí, eu vou casar na igreja e a gente vai casar na mesquita.

Ivan: Vão fazer nos dois?

Paula: Isso, nos dois. E, assim, então, assim, só explicando, que hoje a minha situação conjugal, dentro da minha religião, ela é legalizada. Quem tá cometendo pecado é ele (Risos).

Ivan: Isso porque você é xiita, né? Se fosse sunita, cê não tinha essa não! (Risos).

Paula: É?! Eu não sei! Eu não… daí…

Ivan: O sunismo não, não permite o…

Paula: Ah, não…A Mutah? Não, Deus o livre! Deus o livre! É verdade, não…

Ivan (narração): Esse casamento temporário, sendo parte do rito xiita, é legal no Irã. Já na Arábia Saudita, sendo de governo sunita, não existe. E tendo em vista que é uma mentalidade mais conservadora, focada na necessidade de constituição de família tradicional, e na lógica de que isso é uma forma inclusive de preservar a mulher, o sexo só pode ocorrer depois do casamento, para que não haja o risco dela se tornar uma mãe solteira, entre outras coisas. Ou seja, se quiser transar, tem que casar. Muito parecido com o que acontece, por sinal, em cidades do interior do Brasil, dos Estados Unidos, ou em famílias tradicionalistas em geral, sendo muçulmanos ou não.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Eu me sinto premiada por ter dois filhos homens, porque eu acho que sofre menos.

Ivan: Por que você diz que sofre menos ter filho homem, menino?

Paula: Porque eu, eu sendo… eu falo… quando eu falo de… porque eu falo por mim, assim. Pela resistência que eu sempre é… encontrei por ser mulher. Eu já perdi oportunidade de cargo em empresa por ser mulher. “Ah não, a gente vai… você…” . Eu passei em… fiquei assim, fazendo um mês processo seletivo… montando apresentações, fazendo case pra mostrar pra presidente não sei da onde, pra fulano não sei da onde. Passei em todas as fases, aí você chega na última, “é, mas a preferência, é que seje homem pra essa função, porque a equipe é formada por homens. Então, homem é assim, né… é mais incisivo, a gente pode fazer alguma grosseria. E mulher é mais frágil…” Então, a justificativa que me davam era assim, tipo, homem é o poderoso e mulher é banana. “Se ele bater na mesa, cê vai sair correndo. Ele vai ser teu chefe, se brigar, você vai chorar. Homem não tem paciência pra mulher que chora.”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Já perdi umas três oportunidades de trabalho assim, de… tando numa empresa e de mudar de setor por ser mulher. E não era nenhum trabalho braçal não. Era por ter uma resistência, “não, mulher é muito… Ah, mulher tem TPM, aqui não pode existir isso”. Entendeu? “ah, que se eu falar mais alto com ela, ela vai chorar!” Então, assim, pra… não… né, não que mulher sofra menos, porque eu conheço grandes mulheres aí, grandes exemplos de mulheres, mas eu falo pra mim assim, “eu sofri tanto por ser mulher”, né. Daí eu falo, “ah, eu não quero ter filha mulher não, porque eu acho que filha mulher sofre muito”, mas é uma opinião pessoal minha, pelo que eu vivi.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Na entrevista mesmo, eu já falava, “olha, eu tô entrando aqui, mas o meu objetivo é chegar nesse setor, pra deixar bem claro. Eu quero que vocês me desenvolvam pra eu chegar nessa função”. Aí eu ia. Tá, tá tá tá…quando chegava lá, “a equipe é formada só de homens, Paula, então, o coordenador ou não sei quem decidiu deixar você em stand by”. Eu não gostaria que uma filha minha, tipo assim, ia doer…dói, né. Uma filha sua chegar, “ah, mãe, eu quero ser, eu quero trabalhar no Exército, mas eu vou…” Vai encontrar uma resistência, você vai encontrar resistência. Aí… posso dizer assim, “Ah, mas, ó, você é muito fraca, você não pode achar barreira nisso, você…” Daí, eu falei, “tá, mas é que eu já lutei tanto, sabe?” Então, eu acho que, hoje em dia, professor, eu me poupo, sabe? Tanto que eu falei, acho que até pro professor Omar, que eu não tinha falado das situações que aconteciam, meio que diariamente, com a gente na rua, porque eu já passei por tanta coisa lá atrás, que eu acabo querendo me poupar. Porque daí você vai contar, você vai reviver aquilo que você passou. Então, na questão… pra me poupar mesmo. Aí, minha mãe fala, “ó, pra você morder a ponta da sua língua, você ainda vai ter uma filha mulher”. Eu falei, “tudo bem! Insha’Allah, se Deus quiser, ele me dê uma filha mulher, mas, que ela não vai ser como eu. Ela não vai ter medo de ter filhas mulheres, né. Eu posso… Deus pode me dar uma filha mulher, vai ser bem-vinda, mas ela não vai ser como eu, ela não vai ter medo de ter filhas mulheres.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Aquilo que a Paula mencionava sobre as coisas que já tinha experienciado como mulher, que tinha certa resistência em contar ao Omar, por desconforto em reviver tudo, refere-se ao caso que mencionamos no primeiro episódio, sobre as agressões que ela e a Luciana, outra muçulmana de Curitiba, tinham sofrido na cidade. E o que leva essas mulheres a serem identificadas como muçulmanas é justamente o fator de suas vestimentas. No caso, o uso do véu. E aqui, novamente, entram as diferentes interpretações da Sharia.

Ivan: É, você o que tá usando é um…?

Paula: Hijab.

Ivan: Hijab?

Paula: Hijab.

Ivan: Hijab.

Paula: Hijab. (ela está enfatizando a pronúncia)

Ivan: É, eu sei que… vamo lá, hijab, chador…

Paula: Burca…

Ivan: Burca. Tem mais algum?

Paula: Niqab.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Na surata 24, versículo 31, o Alcorão diz. Abre aspas: “Dize às crentes que recatem os seus olhares, conservem os seus pudores e não mostrem os seus atrativos, além dos que normalmente aparecem; que cubram o colo com seus véus e não mostrem os seus atrativos, a não ser aos seus esposos, seus pais, seus sogros, seus filhos, seus enteados, seus irmãos, seus sobrinhos, às mulheres suas servas, seus criados isentos de necessidades sexuais, ou às crianças que não discernem a nudez das mulheres; que não agitem os seus pés para que não chamem a atenção sobre os seus atrativos ocultos.” Fecha aspas. Sobre a agitação dos pés, um comentário é feito. Abre aspas: “Constitui um dos truques de mulheres espetaculosas ou licenciosas o ato de tilintarem os ornamentos de seus tornozelos, para chamarem a atenção sobre si.” Fecha aspas. O que altera, de uma cultura para a outra, é o que é exatamente esconder seus atrativos. E por isso, temos toda essa variedade de vestimentas femininas.

Paula: Esse é o hijab, que ele cobre só a cabeça. Qual que é a… as regras para quem usa hijab? Ele tem que cobrir todo o cabelo, todo fechado e cobrir o colo, né. Tem que cobrir o colo. Por quê? É não é recomendado que a mulher use roupas que modelem o corpo dela, porque o atrativo visual vai ser isso, né. É, e o homem tem que se interessar por ela não pela estética. Também, porque uma das escolhas quando, dentro da religião, é que a mulher também tem que ter uma beleza, não precisa ser aquela beleza de Miss. Não! Mas a mulher, se ela quer se cuidar, ela pode, né, usar uma maquiagem, enfim. Mas aí, esse é o… ele cobre o colo, né e tapa. É o hijab, é o véu. O véu islâmico que falam. A burca, que é… ela foi imposta pelo regime talibã, no Afeganistão, né. Ela é toda fechada, que é aquela que tem só aquela tela nos olhos, né. Então, é toda fechada ali, né. Essa é a burca. O chador, ele é usado no Irã, né. Ele é mais comum no Irã, que é só o preto, aquele pano preto que elas jogam desde a cabeça e tapa todo o corpo. Esse é o chador, que é mais comum você ver no Irã. O niqab é aquele que cobre…  e deixa os olhos à mostra. Sem a tela, preto também, cobre até as mãos… então, ele vem aqui e cobre a mão. Esse é o niqab, os olhos, eles ficam à mostra.

Ivan: Corpo inteiro?

Paula: Corpo inteiro, só que os olhos ficam a mostra. O homem consegue visualizar os olhos. Já o chador… Já a burca não, mal consegue ver, o que você vê de mulher caindo (Ivan ri). Você senta naquela estação de trem, o que tem de mulher caindo e tropeçando, porque não enxerga mesmo. Eu já coloquei aquilo, falei, “é um absurdo isso”. Você não vê, você não vê. Você parece um cavalo assim. E aqui você não consegue ver o chão. E o niqab, ela fica com os olhos. Tanto que, nossa, aí que elas pintam tudo, assim e tal… principalmente quando é mocinha. Elas querem fazer o atrativo, elas querem chamar a atenção.

Omar: Eu, eu visitei o Irã. Assim, a gente já não foi com aquela ideia pré concebida de que é um país atrasado, que você vai encontrar camelo na rua, né. É, porque as pessoas pensam isso. Não, todo mundo me perguntava, “e a guerra?”. “Mas que guerra?” “A guerra no Irã!” “Não, o Irã não tem guerra.” É um país extremamente moderno, belíssimo. Mas a gente passava no centro das cidades, de qualquer cidade de médio e grande porte. As vitrines das lojas, os manequins com minissaias, sapatos de salto, vestidinho curto… A gente não vê as mulheres nas ruas assim, mas a gente sabe que elas compram isso e usam essa moda por baixo de seu chador, por baixo de sua abaya. Aí, chegam na casa da amiga ou chegam mesmo no celular, aí usam… Então, é uma sensualidade muito voltada para o próprio indivíduo. Então, ele quer se satisfazer, ela quer se satisfazer bonita. E voltada para o cônjuge, porque o casamento é coisa algo muito sério dentro da cultura islâmica, ao contrário do ocidente. Nós exercemos uma estética corporal, uma moda, muito voltada pro outro. Nós queremos ser bonitos, bem vestidos, com a barba bem feita, para que o outro nos perceba bonito. Não pruma satisfação pessoal e não pra satisfação do meu companheiro e da minha companheira.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: O que que mudou na sua vida como muçulmana, depois do 11 de setembro?

Paula: Tudo! Sendo muçulmana, tudo. Porque, eu perdi algumas amizades. Não eram amizades né, mas posso dizer assim, algumas amizades. Os olhares que antes eram de curiosidade para poder entender, passaram a ser olhares “ah, ela é terrorista também, ela faz parte daquele povo.” É, a questão da vestimenta, a gente procura ser mais discreta. Por exemplo, eu usava muito véu preto, né. Então… hoje em dia, mais… a gente usa mais, procura usar véu mais colorido. Porque você pode ser confundida, e vou falar de forma bem sarcástica, ou que você tem câncer, né. Você está usando véu, ou você quer se proteger do sol, ou é uma moda que surgiu na Europa. Então aí, meio que pra dar uma camuflada no véu colorido. E nas vestimentas, né, a gente procura assim… Lógico, que as mulheres casadas e as libanesas jamais vão usar uma calça assim. Elas não usam, porque elas não conseguem, elas não têm essa cultura. Então, como eu sou brasileira e moro aqui, a gente teve meio que se desconfigurar para acabar sendo aceito. Tanto que, na minha última entrevista de emprego, eu fui de véu, né, passei, fiquei três meses… como eu falei para o senhor, era uma empresa de um israelense, fiquei três anos nessa empresa, fui muito feliz lá. Mas, agora, para buscar outro emprego, eu não tive essa mesma coragem. Por necessidade, eu tinha que arrumar um emprego. Então, eu não tinha… não poderia mais me dar o luxo de ficar em casa com dois filhos. Assumindo a responsabilidade de ter um companheiro. De trazer ele pra cá, sendo que lá ele mexeu vida inteira dele na agricultura, que ele teria que começar a vida dele. Então, eu teria que ter um trabalho para poder dar esse suporte para ele também. E aí, eu falei… Minha mãe falou, “Olha, não vai de véu.” Eu falei, “…mas mãe, uma hora eles vão ver no Facebook, eles vão saber.” “…mas não vai, você precisa do trabalho.” Aí, foi… essas mudanças que pra mim são mudanças bem radicais. Sabe, de você pegar, professor, as minhas roupas e eu ter que comprar roupa. Eu não tinha roupa. Roupa que eu falo assim, que a sociedade hoje diz que a mulher tem que usar roupa assim. Eu não tinha, porque eu tinha mais saia longa, umas roupas, né… Então, eu tive que me adaptar para poder ser aceita.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Eu tava numa conversa informal, aí, a irmã pegou e começou a… perguntou para mim, “Ah, mas, e as pessoas têm muito preconceito?” E tal, e tal… e tava nessa conversa, daí, ela falou assim, “eu preciso te mostrar uma coisa.” Daí, eu falei, “ah, pode falar.” “Mas eu não quero que você fale para ninguém.” Eu falei, “ah, tá bom.” Nisso, ela me mandou uma foto no WhatsApp. Eu falei, “o que é isso?! Alguém te agrediu, alguém te bateu?” Ela falou, “Não. Me tacaram uma pedra, perto da minha casa, hoje.” Eu falei, “Como assim?” E ela, “me tacaram uma pedra.”

Ivan: O que mostrava na foto?

Paula: A… a perna dela, assim, roxa. Depois ela me mostrou, né. Daí, como ele atacou a pedra, acho que de longe, a tendência dela foi ir para baixo. Daí, foi e atingiu bem na panturrilha da perna dela. Daí, ela me mostrou, também, depois, quando a gente se encontrou, ela me mostrou. Daí, ela colocou lá que ela tava… ela foi na panificadora, eu não sei onde que ela foi, e daí, passou um senhor e ela ficou olhando. Ela até… ela cumprimentou, né, no… esse senhor que tava com essa criança, a criança ficou olhando para ela e ela mexeu com a criança, né, eu acho que ela mexeu com a criança. E ela falou que quando ele falou alguma coisa para ela e atacou a pedra nela.

Ivan (narração): Esse fato aconteceu com a Luciana, sua colega de mesquita.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: “Aconteceu isso com você?” Daí, eu falei, “nem vou te contar o que aconteceu já comigo aqui em Curitiba, porque você vai ficar assustada”. E ela faz pouco tempo que ela é revertida. Então, assim, eu não falo, né, professor. Vou falar e a pessoa vai se assustar. Daí, ela pegou, eu falei, “não, isso não pode acontecer”, eu falei assim, “cê me desculpe, mas eu não posso ficar quieta.” Porque já, nossa, já… Comigo, eu já fiquei quieta muito tempo, eu já tive que desestruturar toda a minha vida, mudar todas as coisas que eu fazia, por causa de ignorância dos outros. Eu não quero mais. E daí, eu peguei e… eu peguei e falei pra ela, “ó, infelizmente, você vai me perdoar, mas eu já acabei de encaminhar para o Gamal essa foto.”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: “Pelo amor de Deus!” E dali, já foi indo, disseminando. Aí, chegou na mão do professor Omar, aí, o negócio fedeu. (riso) Porque daí ele ficou muito brabo. Ele ficou muito brabo e daí ele deu… E quando eu comecei a falar, “Professor, mas isso não é de hoje.” Daí, eu comecei a relatar as coisas que aconteceram desde o 11 de setembro. Comigo, com o meu menino… Daí, ele falou, “mas como você deixou chegar num ponto desse?” Aí, foi quando ele pegou e falou, “vamos chamar a imprensa, isso tem que parar, porque vai chegar o ponto deles agredirem. Tem muita irmã de fora aí, que não fala um ‘a’ em português.” Foi o que eu sempre falei, “tem irmã que não fala um ‘a’ em português, professor. O que vai acontecer com essas pessoas?”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: E daí, eu peguei o… esse dia, eu peguei o ônibus. Eu sempre sentava atrás do motorista. Sempre, até hoje é assim. E daí, eu sentei. Sabe, tava ali quietinha. E quando foi… ele ali, quando ele saiu da 24 de maio, que ele pegou a Getúlio… A Avenida Iguaçu, entrou uma senhora. Uma senhorinha, senhorinha mesmo, de bengala. Ela… eu vi que ela já me olhou. Daí, eu já meio que olhei, fiquei olhando… meio que virei… fiquei olhando pra fora. Na hora que ela entrou, ela sentou do meu lado e o banco de especial tava vazio. Aí, eu virei de lado, meio de lado, assim, né. E daí, ela me cutucou, assim, “ei!”. Daí, eu olhei e sorri para ela, porque pensei que tava me cumprimentando. Daí, ela me cutucou assim e falou, “Volta para o teu país e para de ficar roubando o nosso dinheiro.”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Aí, eu virei… A cobradora escutou e fez um gesto de, tipo, “ah, tá maluca”. Aí, eu continuei quieta, nem respondi ela. E foi, foi, foi… não, nem isso, ela desceu logo dois pontos depois, assim. Ela desceu… ela pegou ele já no primeiro e já desceu acho que em dois pontos, porque ela desceu perto do Pequeno Príncipe, assim. E quando ela foi descer, antes de descer ela falou pro motorista assim, “ah, posso…” E uma senhorinha, mas muito esclarecida, também não justifica por ser senhora, uma senhora já de uma certa idade. Bem esclarecida, porque ela falou muito bem com o motorista, assim, a forma de ela falar você vê que era uma pessoa esclarecida. Ela falou assim, “ah, motorista, eu posso descer aqui na frente, sem necessidade de passar a roleta?”, “não, claro, senhora, pode”, “ah, muito obrigado”. Então, assim, só pela forma de ela falar, não era uma pessoa ignorante de conhecimento, era uma pessoa esclarecida e totalmente lúcida. Mas uma senhorinha, professor, uma senhorinha mesmo. Eu vou… vou jogar aí que ela já tinha quase seus setenta e poucos anos, sabe, de bengalinha. Antes de ela descer, ela me deu um soco no braço. “Escutou o que eu falei pra você?”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Quando ela me deu o soco no braço, ela pegou e desceu. Eu falei…A cobradora falou, “o que é que isso, senhora?”. Aí, ela desceu, o motorista não entendeu nada e falou, “o que aconteceu?”, “a senhora acabou de bater na menina aqui sentada!”. Nisso, uma moça que tava lá atrás, ela falou assim, botou a cabeça na janela e disse todos os palavrões imagináveis pra essa senhora (Ivan ri). Um rapaz, ele falou, “moça, quer que eu chame a polícia? Segura essa velha louca!” e não sei o quê. Daí, eu não… tipo… aí, te bloqueia, sabe, cê não consegue falar, cê não consegue pensar, cê não consegue revidar, cê fica totalmente sem reação nenhuma. Aí, eu passei meu cartão, fui lá pra trás. Eu tremia, assim. Aí, a moça, “onde cê mora?” Daí, eu não conseguia falar. Eu tremia, assim, mas não de medo da mulher, é… o sentimento tipo de “por que isso?”, sabe? Daí, tipo, tu engasga, você tem vontade de chorar, mas, ah… de você não conseguir reagir, sabe? E aí, as pessoas… essas pessoas que tiveram, assim, uma reação… Daí, a moça, ela desceu comigo no ponto perto da minha casa. Ela me acompanhou até a minha casa, essa moça. Nunca mais eu vi ela também, assim, mas ela teve esse gesto humanitário, assim, sabe? Então você encontra.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Novembro, novembro foi… dezembro, né, quando eu tava participando do processo seletivo pra trabalhar na empresa que eu trabalho hoje, eu fui tirar… fazer uma conta num banco, e… eu tinha que vir, eu ia vir na aula de religião na mesquita. Então, eu falei assim, “eu vou com véu já”. Só que, assim, estava garoando, e daí eu peguei o véu e eu puxei bem pra frente e fiquei… Daí, quando fechou o sinal, eu desci do ônibus, né, pra ir no banco… não, eu já tinha ido no banco, já tinha ido no banco e tava indo pegar o ônibus pra vir até aqui, até a mesquita. Eu esperando o biarticulado passar e tinha mais umas duas, três pessoas, e eu parada, assim. Aí, passou… aí, o biarticulado veio, né, e parou no semáforo, e ficou bem na minha frente, e nisso eu já escutei um… umas, é… essas pessoas falarem, né. Aí, eu… ah, pra mim… Aí, nisso já começaram a… a falar “olha a mulher do Bin Laden!” e não sei o quê e não sei o quê. Aí,  na hora eu pensei, “ah, deve ser essas pessoa de colégio”, né, porque ali tem próximo, tem dois colégios ali. Falei, “ah, deve ser essa garotada de colégio”, nem dei muita atenção. Aí, eu olhei, assim, eu vi que era um grupo de rapazes já com uma certa idade, não eram adolescentes, eram rapazes, assim, duns vinte anos. E daí, tá, eu olhei assim e eles continuaram, continuaram falando e tal, e botou… um deles botou a cabeça pra fora, falou um monte de coisa assim… piadinha, fazendo piada, tirando sarro, né.

Ivan: Que tipo de piada?

Paula: Ah, é… “quantos camelos?”, “quantos camelos que… que teu pai quer?”, essas coisas assim, sabe? Essas coisas de… não era nada assim, tipo, de xingar mesmo, né. E aí, é… com a cabeça pra fora da janela. E aí, abriu o sinal. Quando abriu o sinal, foi… eu não vi quando… se foi esse que falou, quem foi desses rapazes que estavam no ônibus. Eu não vi também, quem viu foi a mulher que tava do meu lado aguardando o sinal abrir, né. No caso, fechar, pra gente poder passar. Passou e tal, e “tchau!” e não sei o quê, e foi embora. Daí eu… Quando eu fui botar o pé pra atravessar, a moça pegou no meu ombro e falou, “moça…”, aí, eu falei, “oi”, daí, ela falou assim, “ele cuspiu em você”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Daí, eu falei, “ai, moça, eu não acredito”, e ela, “tá tudo sujo o teu véu, moça”. Bem atrás, porque ficou bem aqui, né, eu tava assim, ele passou e ficou bem aqui. Aí, eu passei, quando eu puxei assim, eu não quis nem ver, professor. Aí, eu peguei e já tirei também. Não pude vim na minha aula, porque daí eu não… vou falar, eu tenho vergonha de chegar ali, quando eu chego aqui perto eu uso véu porque eu tenho vergonha de encontrar alguém mais velho, por respeito mesmo, né. Eu falei, eu não tenho véu, eu não vou até a mesquita, eu sei que tem lá, mas eu não vou. Né, o… o administrador  da mesquita, ele nunca me viu sem véu, eu não vou lá, tenho vergonha. Tive que cancelar uma coisa positiva, bacana que eu ia fazer, por causa de um cidadão desse.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Era uma apresentação de festa junina na escola nova dele. Daí, ele viu eu me arrumando, né, e daí eu tava com… os véus jogados na cama, assim, eu tava me arrumando. Aí, ele falou assim, “você vai de hijab?”, daí eu falei “ahn?”, “você vai de hijab?”, daí, eu falei assim, não… Entendeu? “Eu queria que você não fosse”. É que se não vão começar a fazer piadinha, mãe, ou tirar sarro, e eu não vou aguentar, eu não aguento mais nada. Eu vou responder, aí, já vão falar que eu sou briguento, né.” Daí, comentário de criança, né, que ele fez. Mas ele me pediu pra eu não ir, pras crianças não ficarem fazendo piada. Daí, eu falei pra ele, “você tem vergonha da tua religião?”, ele falou, “não é a minha religião, é as pessoas que ficam tirando sarro e falando que a gente é terrorista”.

Ivan: Ele já… ele já foi chamado de terrorista alguma vez?

Paula: Filho de… filho do Bin Laden, ele falou, que falaram que ele era filho do Bin Laden e que a mãe dele era a mulher bomba.

Ivan: Quando que foi isso?

Paula: Eu fui buscar o boletim dele, e aí as crianças me viram. E daí, daí, ele “mãe!”, né, ele veio e tal, e daí “quem que é?”, escutei as crianças falar. Daí, ele falou, ele chegou em casa, no outro dia, e ele falou, “ah, mãe, falaram pra mim que você é a mulher bomba. Quem que é mulher bomba?”, que ele era menor, né. Eu falei, “ah, é brincadeira, é coisa de criança, Nicolas”, daí, ele, “é, eu sei…”, porque ele é muito esperto. Mas, assim, eu falo pra ele, falo pra ele assim que ele tem, é… uma escolha dele, mas Deus o livre, ele adora a mesquita, é… a família que… igual eu falo, né, ele aprendeu a andar ali dentro. Então, ele tem referências, né. E tá muito bem claro, acho que pra ele, assim, eu percebo, assim, que ele tá ficando mais velho e tá muito bem claro, e eu acho que ele vai… ele vai por esse pensamento, ele vai por esse caminho. Se falarem pra ele assim… Tanto que ele fala pra mim que ele… Hoje… esses tempos, esses dias, ele falou pra mim, ele falou, “ah, por que você não usa mais o hijab, mãe?”, e eu falei, “ah, por causa de uma questão de… de várias coisas”, ele me pergunta. “Eu não vejo você… por que a gente não vai na mesquita mais?”, ele me pede muito isso, “por que a gente não vai na mesquita mais, cê ia todo dia”, porque a gente tipo morava ali. Eu falei, “ah, porque a mamãe trabalha, porque daí fica… o horário das rezas não bate, você tem que ir pra escola, fica mais corrido”. “Mas nos domingos, nos domingos a gente pode ir, por que a gente não vai mais?”. Então assim, ele me cobra, e as pessoas da comunidade também me cobram de ele não estar indo na mesquita com frequência mais, porque consequentemente ele vai se afastando, né, professor? Ele vai… ele vai esquecendo, ele é criança. Mas ele já… ele já me pediu sim, uma… algumas vezes ele pede sim pra não usar, pras pessoas não ficarem tirando sarro dele.

Ivan: O que você sentiu da primeira vez que ele disse que te chamaram de… que as crianças te chamaram de mulher bomba?

Paula: Ah, eu fiquei muito triste, porque atrás dessas crianças existem adultos, né.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Eu escutei um comentário dentro do ônibus, vindo pra cá hoje. Uma senhora falando pro esposo dela, eu do lado dela, né. E daí, ela falou, “eu? Eu prefiro ter uma filha garota de programa!”. Ela não usou esse termo, ela usou um termo bem mais… mais chulo. Mas, “eu prefiro ter uma filha da vida do que ter um filho gay”. Eu olhei pra ela, eu olhei pra ela assim e fiz uma cara, mas fiquei quieta, né. Sou minoria aqui, né, então vou ficar quieta. Mas, é… o meu filho, ele… infelizmente, ele tem acesso à internet, ele vê televisão, vê novela, ele vê homem beijando homem, mulher beijando mulher, e ele vem me perguntar. “Ui, mãe, que nojo!”, mas isso foi uma vez também. Então, da mesma forma que o meu filho chegou pra mim e falou, “ah, mãe, que nojo” porque ele viu uma mulher ou um homem lá trocando carinho, enfim, é… e eu cortei ali, nunca mais ele falou, professor. Então, é inadmissível um pai ou uma mãe aceitar que um filho faça um comentário inocente porque ele é uma criança, mas se ele não cortar ele vai achar que é normal ficar falando que uma mulher que usa um véu na cabeça é mulher bomba. E eu cortei, no dia que o Nicolas falou, “ah, mãe, eu vi, o homem…” falando, “ai que nojo”, eu falei “nojo por que? É uma forma de amor que eles têm um pelo outro. Essa é a forma de amor que eles têm”, “mas eles são dois homens!”, “mas eles tem sentimento de amor, e o que importa é isso, é esse sentimento de amor. Porque, se você não amar teu próximo, o que você vai fazer? Maldade pra ele. Então, se os caras são assim, deixa os caras”. Igual, é… coisa básica, assim, que eu acho que o pai ou a mãe tem que fazer hoje. “Ai, o preto”… opa, não é preto. É negro e aquele negro tem nome. E eu falo, “eu não admito que você faça esse tipo de comentário aqui dentro de casa, e nem lá fora, porque você é meu filho e você lá fora é conhecido como filho da Paula. E você…”, e cobro ele, “você é muçulmano. Um verdadeiro crente muçulmano, a atitude dele não é essa, ele tem que defender. Porque nem um animal, ninguém você num… você não pode tratar dessa forma”. Igual, tem muitas pessoas, algumas escolas que pegam a questão do… do cachorro, né. Não sei se o professor já sabe…

Ivan: Sim, sim.

Paula: …que tem alguns muçulmanos que eles não tem cachorro por causa da questão da bactéria que tem na boca dos cachorros. Mas eu já fui pesquisar, já fui ler. Um próprio professor mesmo dali, ele tem três dentro da casa dele, e ele mora num apartamento (Ivan ri). E, daí, eu fiquei pensando. Aí, ele começou a explicar, então… então assim, essa questão de tirarem sarro, de falarem pra ele, ele já me pediu e me deixou muito triste sim, porque eu vejo que a falha tá vindo desde quando é criança, né. Então, esse menino que falou isso pro meu filho, ele vai crescer com esse pensamento, até que chegue alguém pra ele e fale. Então, assim, ou esse alguém que vai chegar pra ele, vai falar pra ele com educação, ou…  ou não. Se ele pegar um aí meio… estressado, não vai ficar legal a situação. Mas você pode ver, né, que já é desde pequenininho, ele já tá crescendo com esse pensamento que árabe, né. E ele tinha o que na época, cinco anos. Então, o senhor imagina, uma criança de cinco anos crescendo na cabeça dela que árabe é terrorista, árabe é terrorista, quando ela tiver adolescente, adulto, é isso que ela vai sempre entender na cabeça dela, até que alguém chegue pra ela e fale, “opa, a história não é bem por aí, existe todo um contexto”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Se…se aquele dia que eu tava na rua, e que aqueles, eu sei quem, eu sei não, eu vi quem eram as pessoas que botaram a cabeça pra fora do biarticulado e cuspiram. Eu vi! Não era criança, eu vi! Se você repudia uma situação daquela xingando, gritando, não ia sair na gazeta do Povo, “Muçulmana se defende de agressão física ou verbal em Curitiba”, ia sair “Muçulmana agride verbalmente pessoas dentro do ônibus”. Então, assim, a gente acaba perdendo o direito de se defender, porque a… vai se voltar contra nós. Então, na hora que… eu esqueço totalmente disso. Eu falei assim, “olha, você me desculpe, mas você mora num país aonde que teve que se criar uma lei chamada Maria da Penha que né, foi em 92 eu acho que foi criada essa lei, não sei dizer né, mas é uma lei recente, para que os seus direitos de mulher fossem é… respeitados”. Então… que exemplo tem seu país pra falar que um país do Oriente Médio, o homem é… ele usurpa a mulher de estudar, tira o direito dela de dirigir. A cada quinze minutos, tem uma mulher que é morta e agredida no teu país. Porque daí você já toma as dores, né, professor. Então assim, é uma faca de dois gumes o que você tá, o que você tá querendo bater de frente ou tá querendo criticar é a realidade do teu país hoje. Teve que se criar uma lei, né… pra, pra, pra… pra te cuidar, pra… pra que as pessoas que fizessem um mal pra você, elas sofressem algum tipo de penalização. Então, hoje existe a Maria da Penha pra quem? É pra mulher que é agredida pelo marido, que todo mundo acha, ah, Maria da Penha é só agressão física. Não, Maria da Penha também é agressão psicológica, dano material. Então, eu falo, “ó, aproveita a oportunidade de que tu tá numa faculdade de direito e vai estudar a Maria da Penha”. E levantei e saí fora. (Ivan ri).

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Como pudemos ouvir, os problemas que a Paula enfrenta no seu dia a dia não estão limitados à sua religião. E curiosamente, as agressões que sofre por conta de sua vida religiosa não acontecem dentro do círculo islâmico, mas justamente fora dele, pelo resto da população.

Paula: Mas assim, de… mas assim… a cada ano que passa, professor, eu vejo que as agressões, elas ficam mais graves, até o ponto que chegar de uma agressão física e te tacarem pedra. Ah, de tacarem as coisas sim, é… de chutar, às vezes tu tá passando, assim, ali no centro, e eles chutam copo, nos teus pés, assim, faz a piada e tem o… o chutam alguma coisa. “Ai, desculpa, não vi”, né. E essa resistência que tem quando você vai em comércio, né. Quando você vai em comércio, você sempre vai ficando meio de lado assim, se você não chegar e for firme e eles ver que você fala português assim, você não é atendido, né. Mas aí, a gente acaba tendo que ser receptivo, já pra quebrar essa ideia, é… eu falo assim, pra ir no shopping tranquilo cê tem que ir meio disfarçado, porque você acaba virando… ponto turístico. As pessoas querem tirar foto. Aí, cê vai no shopping e eu vejo gente tirando foto de celular… Ih, isso é o que eu mais vejo! Quando cê passa, você só escuta. Então, tiram foto de celular… Até então, a gente não se incomoda, né. Mas aí, quando vem as piadinhas, mas se eu sair daqui agora pra eu atravessar pra ir pra casa, um ou dois comentários eu… vai, vai existir. Esse tipo de comentário, sempre. Agora, como é moda, Estado Islâmico, é sempre voltado pra isso, “ó, o integrante do Estado Islâmico”.

Ivan: Quantas vezes por dia que você ouve?

Paula: Professor, é assim, eu tô na rua, eu saí pra rua, eu estou passível a escutar comentários. Então, eu posso dizer assim que, como eu falei, se eu sair daqui agora, vai ter comentário, até eu chegar na minha casa. Aí, amanhã se eu for trabalhar e tiver usando hijab, comentário também. Então, é uma coisa que diariamente acontece. Eu não… não vou dizer que eu vá sair é… e nunca ninguém vai falar nada. Ou tem as piadinhas, né, que te falam, ou é alguém sempre vai ser, tipo restaurante, restaurante é o lugar que assim, não dá pra ir, porque você vira ponto turístico, você vê toda hora alguém filmando, você vê as pessoas filmando, você vê as pessoas tirando foto. Aí, você vê assim, tipo, o que você pensa na tua cabeça? Salvou lá, pegou um grupo do WhatsApp, mandou tua imagem pra lá e você tá virando chacota. E é a primeira coisa, eu não vejo mais o lado positivo, de que achou bonito a cor do meu véu e tá tirando uma foto porque achou bonito. Automaticamente eu já me levo pro lado negativo. Pronto, tirou foto agora vai… minha imagem vai ser vinculada nesses grupos de WhatsApp, e pronto, virei chacota. E é verdade, porque já chegou pra mim, né. Tanto que esse negócio de grupo, eu nem participo, porque eu não aguento ficar recebendo mensagem: “Porque o Estado Islâmico”, porque não sei o quê, porque não sei o quê, porque não sei o quê. E uma vez, chegou uma foto minha. Tiraram a foto da Gazeta do Povo, lá. Acho que foi na Gazeta do Povo que eu saí. Não, foi na Tribuna que eu saí, na capa do Tribuna. Tiraram a foto da Tribuna e colocaram, “o Estado Islâmico dominando Curitiba”. E aí, passando de grupo, de grupo, de grupo, chegou em mim a minha foto. Nem eu sabia que eu estava na Tribuna na capa, professor. Nem eu sabia.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): No episódio passado, eu apresentei todo o debate existente em torno do conceito de Sharia, justamente para mostrar que ela não é necessariamente um regime de leis fechado, de um país que defende o corte de mãos de ladrões. Acima de um regime estatal, a Sharia é a prática da fé diária de um muçulmano com Deus. E é neste ponto que podemos entender melhor, através da história da Paula, um dos conceitos mais mal entendidos por aqueles de fora do islamismo. A jihad, ou “Guerra Santa”.

Francielli: A jihad, ela precisa ser muito bem esclarecida.

Ivan (narração): Novamente, a advogada Francielli Morêz Gusso.

Francielli: No Alcorão, nós temos aquilo que se concebe como a Grande Jihad. A Grande Jihad é aquela que aponta para o sentido da palavra “islã”, pra paz, que é basicamente a seguinte premissa. Tem diversos trechos, mas a gente pode, a partir dessa interpretação mais literal do que eles dizem, concluir o seguinte, “não faça aos demais o que você não gostaria que fosse feito a ti”. Então, nós temos a premissa universal da reciprocidade de tratamento. E a partir do momento em que você anseia um quadro de paz, de harmonização, de convivência íntegra, você só vai conseguir isso praticando isso. Então, nós temos, por exemplo, aqui a jihad das mulheres, que é a sabedoria, né. Dentro do islã, se coloca a mulher como… A família como centro da sociedade e a mulher como centro da família, porque é a mulher quem educa, é a mulher quem tem o controle do que acontece dentro de casa, por incrível que pareça, por incrível, por mais incrível que possa parecer, ali o que se divulga, e eu te digo isso como alguém que esteve, que vive dentro do contexto de uma mesquita e que vê isso na prática. Eu nunca vi uma mulher lavando a louça, é… na maioria  das vezes, nos dias festivos, eu não vejo as mulheres fazendo comida. Então, tem umas coisas muito sutis, muito tênues no dia a dia, que só quem tá lá vendo que pode perceber, que apontam pra isso. Eu nunca vi uma mãe sendo desautorizada pelo pai na frente do filho, e nem pelas costas do filho, né. E acerca da educação da criança, é ela quem vai dar a última palavra. E daí por diante. Mas… poxa, até esqueci o que eu tava mencionando…

Ivan: Você… era a questão da jihad.

Francielli: Da jihad! Então, nós temos a grande jihad, que é aquela que aponta para a… a consecução da paz como objetivo primordial do islã, ta? Aí, vem aquilo que a doutrina concebe como pequena jihad, que é aquela que é enaltecida por estes grupos. Não há menção expressa no Alcorão à pequena jihad, ela é produto da interpretação posterior. E essa vem a ser o quê? A instrumentalização do objetivo da paz, através de meios não tão pacíficos. Né, ou seja, a declaração de guerra a quem quer que… esses que represente uma ameaça para a consolidação daqueles objetivos. E aí que o termo guerra santa acabou sendo enaltecido, mas no Alcorão a jihad existe, mas não é essa jihad no sentido de guerra santa que a gente vê pela mídia.

Francirosy: Eu vou te dizer, existe um hadith do profeta Muhammad, que ele vai dizer o seguinte…

Ivan (narração): Novamente, a antropóloga Francirosy, professora da USP.

Francirosy: Alguém vai perguntar pra ele, “ah, é um conselho, se eu tiver que, que você me dá um conselho, é… profeta, que conselho você me daria?”  Ele vai dizer, é… “não fique nervoso, não fique nervoso, não fique nervoso. né. Não tenha raiva, não tenha raiva”, não lembro qual é a palavra em árabe especificamente, mas é “não tenha raiva,  não tenha raiva, ou não seja agressivo, não seja agressivo, não seja agressivo”. Então, isto é uma… uma resposta do profeta a alguém que queria, obviamente, que ele dissesse qual era o comportamento dele. Então, o… quando você tá falando de batalhas, que os muçulmanos enfrentaram, eram quase sempre batalhas de defesa pessoal. Quase sempre eles tiveram que se preparar pra defesa. Porque no islã, assim, as passagens, elas são muito claras. Quer dizer, quem mata o inocente, é como matar a humanidade inteira. Você não pode atacar o outro. Você… Primeiro, você tem que esperar ser atacado, porque tem a questão da legítima defesa, né. E aí, você pode responder a isso. E o profeta, ele era perseguido, né. No período da Revelação, ele começou a ser perseguido. Então, ele começou, de certa forma, as pessoas começaram a lutar… Cê poderia dizer, “ah, porque eram clãs, porque eram tribos, porque era naturalmente assim”. Cê pode até dizer, mas cê pode dizer também que todas as falas do profeta nesse período, e as revelações, eles incidiam em relação da… do respeito aos presos, por exemplo, você não… no islã, é proibido ter escravos, por exemplo. Então, quando a pessoa se convertia ao islã, naquela época, a primeira coisa que o profeta dizia à pessoa, assim, “vai lá e liberta seus escravos, não dá pra ser muçulmano e ter escravos”. Então, isso é história islâmica, história da vida do profeta. Então, quando você lê a história da vida do profeta, e eu li várias biografias da vida do profeta, você começa a comparar o comportamento dele, né. Eu li da Karen Armstrong até o Lings. Então, assim, tem várias histórias que vão contar desse islã de paz. Então, faz sentido. E aí, o conceito de jihad, por exemplo, é um conceito que tem… Você tem uma jihad grande e uma jihad pequena. A jihad grande, que é a principal, é a jihad que o muçul… porque jihad significa “empenho, dedicação e esforço”, em árabe. Então, o muçulmano tem que se dedicar, se esforçar em ser um bom muçulmano, e construir o seu adab. O que é o seu adab? É o seu comportamento, em ser generoso, em repartir aquilo que ele tem, em glorificar a Deus, né, em dizer “subhan Allah” a todos os momentos da sua vida. Tudo se referenciar a Allah, né. Deus seja soberano, Deus seja glorificado. Então, a partir do momento que você se dedica a ser um bom muçulmano, a sua jihad é essa. A outra jihad é a de expansão do islã, e não tá dito que você tem que matar as pessoas para que elas sejam convertidas. Tá dizendo que você tem que se defender se você for atacado. Então, eu acho que quando você começa a entender o que é o conceito de jihad, começa a… consegue entender o que é ser muçulmano. Você vai olhar, não é só uma questão tribal, né, porque eu sempre digo, o tempo de Jesus também continuava tribal. né. Vai dizer que não? Jesus Cristo foi crucificado, segundo os cristãos. Pros muçulmanos, não foi crucificado. Mas pros cristãos, Jesus foi crucificado, que é penalização, né. Que a gente pode dizer, “ah, é tribal”. Hã.

Francielli: Eu vejo como completamente aberta a possibilidade, não do islã se secularizar no sentido de trair os seus princípios religiosos básicos, mas no sentido que seus adeptos possam ter uma convivência harmoniosa com outros indivíduos em qualquer local do mundo, né. E eu também discordo com essa gênese violenta, porque o contexto e o local de surgimento do islã foi o mesmo do judaísmo, o mesmo do cristianismo, né. O que é a bíblia? A bíblia nada mais é do que uma compilação de diferentes relatos, né, do Antigo Testamento e de evangelhos, né. O Novo Testamento, sobre a vida e a obra de Cristo, feita por apóstolos que estavam fugindo de perseguições religiosas, no âmbito do Império Romano. Então, também os evangelhos foram produzidos num contexto de perseguição e violência, né. O que que é o discurso das Cruzadas, senão uma ode à violência e à perseguição, né, ao extermínio? Então, ambas tiveram um surgimento muito doloroso, né. E eu digo doloroso, porque tanto Moisés como Cristo, como Muhammad foram revolucionários. À sua maneira, foram… foram pessoas transgressoras na ordem que vigorava no período em que começaram a se manifestar, né. Então, fazendo esse paralelo entre essas três e considerando que cristãos podem ter uma convivência harmoniosa, que judeus podem ter uma convivência harmoniosa, muçulmanos também podem. E eu te digo isso por conta própria. Eu consigo ter uma convivência perfeitamente harmoniosa com outras pessoas. Um dos meus melhores amigos no trabalho é um judeu cujo pai é sobrevivente do holocausto, né, que serviu em um kibutz, em Israel. E eu sou completamente pró-Palestina. Então, eu realmente discordo dessas afirmações, né. O gene da violência não está plantado no islã, ele está plantado na sociedade onde ele surgiu, no período onde ele surgiu e, infelizmente, ainda hoje. E a gente precisa avaliar fatores como geografia, como geopolítica, né, nos locais onde o islã se desenvolve com maior ênfase. Mas não significa dizer que o islã, ele se predetermine à violência, né. Muito pelo contrário.

Francirosy: Então, eu acho que é muito arriscado usar essas categorias que a gente entende nos dias de hoje, e não entender como é que foi feito, né. O profeta migra pra Medina. Medina, todos eram muçulmanos, e o profeta vai preferir morrer em Medina e vai ser enterrado em Medina, porque diz assim, “eu amo a minha cidade, que é Meca, mas Medina me deu tudo o que Deus me mostrou de bom”. Então, eu acho que, é… o entendimento de ser muçulmano ele perpassa pela história do profeta, né. Ele foi exemplo disso, né.

Ivan (narração): Essa passagem na vida de Muhammad é relevante para o que estamos levantando aqui, especialmente quando a mídia divulga jihad como uma guerra santa contra todos os que não são muçulmanos. Afinal, se a Sharia é lei islâmica, interpretada especialmente à luz dos atos do profeta em vida, é importante citar que em sua mudança para Medina, no ano de 622, ele redigiu uma constituição chamada hoje de Carta de Medina. Diferente do Alcorão, que na crença islâmica ele foi ditado pelo arcanjo Gabriel, este documento foi de autoria do próprio profeta, e entre tantos artigos, prega-se que todas as religiões devem ser respeitadas, com citação especial aos judeus. Logo, se este princípio fosse seguido, o atual conflito entre Israel e Palestina talvez não existisse atualmente. Contudo, se por um lado o profeta falava que nunca se deve atacar a um inocente, mas apenas defender-se caso seja atacado, entramos aqui novamente no problema da interpretação. Os terroristas radicais, por exemplo, entendem que o simples fato dos Estados Unidos exportarem seus filmes para o resto do mundo já poderia ser visto como uma forma de opressão. De qualquer forma, radicais por radicais, eu, Ivan, não consigo ver grandes diferenças entre esses malucos e membros da Ku Klux Klan, que é cristã. Todo grupo radical é muito seletivo em suas leituras sobre o que é uma ideologia religiosa. O islamismo não é exceção neste caso. E por mais que há histórias de guerra na biografia do profeta, estas não compõem a sua totalidade. Depende do que você vai escolher como modelo.

Francirosy: De não-ataque, de não responder. Por exemplo, tem uma história muito bonita do Profeta Muhammad, que ele passava sempre na frente de uma casa, acho que era de um judeu, se não me falha a memória, e toda vez que ele passava em frente a esta casa deste homem, esse homem jogava lixo no Profeta. Jogava lixo, todos os dias, né, jogava, falava bobagens pra ele, e o Profeta não respondia. Teve um certo dia que ele passou pela mesma rua e ele não foi agredido. Num… Esse rapaz não jogou lixo nele. E aí, ele parou e perguntou pra pessoa que tava na porta, “Ué, mas cadê o Fulano?” “Ah, ele tá muito doente”. Aí, ele foi, “Bom, posso visitá-lo?” “Pode”. Então, o Profeta foi à casa da pessoa que jogava lixo nele, que xingava ele, pra ver como é que ele tava. Então, esse é o comportamento. Tem várias biografias do Profeta, essa história e outras histórias dele, de como ele respondia às agressões. Então, o que foi transmitido, obviamente, porque ele era um homem de batalha, que enfrentou várias batalhas, Badr, que é a famosa, depois a morte dele, Aisha enfrenta a batalha do camelo. Então, enfim, você vai ter várias histórias de guerra, porque naquele tempo se viviam nisso, mas as partes do comportamento dele as pessoas não narram. Isso que eu acho engraçado, né. Você conta o lado bélico, como se só existisse esse lado. E esse lado, dentro do próprio islã, ele é muito pequeno perto do comportamento que o Profeta ensina. Da forma como ele ensina as mulheres, como ele ensina a Khadija, como ele ensina o próprio Ali, né, que ele criou, dentro da casa dele, né, porque tinha ficado órfão, assim como o Profeta ficou órfão. É, então, a gente tem que remontar a história, contar a história completa, não dá pra contar a história pela metade.

Ivan: Essas linhas de interpretação mais radicais, elas são aquelas derivadas do wahabismo?

Francielli: O Estado Islâmico é de raiz wahabista, né. Al-Wahhab, que foi um líder religioso, diz-se religioso, né. Extremamente ortodoxo. Tá? Até os sunitas mais ortodoxos se assustavam, já naquele período, com a concepção dele. E enfim, acabou resultando em movimentos como o Estado Islâmico que nós vemos na atualidade, né.

Ivan: A própria noção de Estado Islâmico, eu tava vendo também que ela tem uma certa flexibilidade, assim, tirando agora toda… qualquer referência ao grupo terrorista… É, mas que, por exemplo, o fato de um país seguir a Sharia, ele seria um Estado islâmico.

Francielli: Sim!

Ivan: E haveria essa tentativa de você criar um grande Estado islâmico na questão, que tem a ver com com quando teve a Guerra Mundial.

Francielli: Sim, exatamente, com o fim dos pactos de protetorado das nações européias no Oriente Médio, nós tivemos gradualmente os movimentos de independência, e aquilo que não foi na verdade um pan-islamismo, foi um pan-arabismo, né, com Abdel Nasser no Egito, né. Mas isso efetivamente causa uma grande confusão, porque se concebe como Estado islâmico um país que segue a Sharia. Poxa, quer dizer que esse Estado Islâmico está em franca expansão e consequentemente ele segue a Sharia? Não necessariamente, né. A nomenclatura, ela foi infelizmente escolhida.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Então, é aquilo que eu falo, você… é uma luta. É muito difícil, eu vejo assim, hoje no meu trabalho eles tavam combinando de ir pra uma chácara, fazer um churrasco, entre todo mundo da empresa, que tem piscina, que tem isso. Professor, cê acha que eu não tô me coçando? (Ivan ri) Eu quero ir!

Ivan: Uhum.

Paula: E aí? Daí, agora.. daí cê vai pra casa e você bota teu joelho no chão e fica, “Deus, me ajuda, me ajuda, me ajuda”. Esse é o verdadeiro jihad do muçulmano. Por isso que eu falo pro senhor: existe muçulmano, existe o crente muçulmano. É muito difícil você ser esse crente muçulmano.

Ivan (narração): A verdadeira jihad é, então, essa luta que o muçulmano deve ter diariamente consigo mesmo. E tendo isto em mente, seria muito fácil para a Paula deixar de usar o véu, para que as agressões diárias parassem. Mas ao abrir essa concessão, ela estaria indo contra aquilo que acredita. De qualquer maneira, eu a perguntei sobre isso.

Ivan: Pensou em deixar de usar o hijab?

Paula: Já. Já. Justamente por causa disto. Tanto que a gente… nós somos aconselhadas, na mesquita, a usar cores mais coloridas, né. No meu caso, principalmente, o irmão Jamel já me falou, “Paula, não use mais o véu preto”. Falei, “Tá, Jamel, mas é discreto, pro meu trabalho, não posso ficar indo lá toda fantasiada, de véu colorido. Eu trabalho, eu trabalho com órgão público, eu trabalho pro Estado, né.”. E ele falou assim, “É pra te poupar”. Então, a gente evita não usar tão fechado mais, a roupa mais ocidental. Na verdade, as roupas não tinha nada de diferente, professor. Não é nada diferente, eram as roupas normal. Mas só que parecia que tava na cara, sei lá. Então, a gente, né… Daí, só que eles falaram tanto no Facebook e… e eu já… Faz o quê? Faz uns dois anos que eu já mudei bastante coisa. Assim, na questão da minha vestimenta, questão de véu também. Tipo, quando eu saio com o meu noivo, eu não uso ele fechado, só jogado na cabeça, aqui e… Não é mais como eu usava, que tem várias fotos minhas lá no Facebook mais. Mas por instrução mesmo de… do sheik, dentro da mesquita mesmo. Pra evitar esse tipo de situação.

Ivan: Eu tenho visto justamente muito essa questão do papel da mulher no Islã e primeiro notando que, dependendo do país, isso é diferente, bastante diferente, né. Então, já quebra aquela noção de uma nação árabe ou muçulmana unificada, enfim. Você vai ver grandes diferenças no Irã, no Iraque. Arábia Saudita, nem se fala. Mas, é… Mas mesmo assim, nos países mais liberais, e eu vou citar aqui, por exemplo, Síria, mesmo assim, o que eu tenho notado e queria te fazer essa pergunta, é que as noções que a comunidade muçulmana tem sobre a liberação feminina me parece ser diferente daquelas que a gente discute no Ocidente. Dando exemplo, por exemplo, no Ocidente, falaria-se muito numa agenda… e também, feminismo, eu entendo que também é esse movimento, super diferente entre si, né, tem várias discussões dentro dele, mas no geral, por exemplo, diria-se, assim, quanto à questão do uso do lenço ou do véu, que seria “a mulher tem que vestir o que quiser”, direito ao aborto, direito a trabalho, querer ter família ou não. E o que eu tô vendo é que a questão da liberação feminina no islã parece cuidar… a agenda parece ser diferente, parece ser outro tipo de feminismo, pra forçar aqui um conceito. Eu queria, saber a tua leitura sobre isto, como é a questão da liberação da mulher, principalmente nas comunidades muçulmanas?

Francirosy: Então, na verdade, são outras agendas mesmo, porque são outras mulheres. São outras concepções de humanidade. São outras concepções de homem e mulher, de família. Então, assim, não dá… Eu acho que é o grande problema do Ocidente, dito Ocidente… Eu nem gosto desta divisão Ocidente/Oriente, mas, acho que o grande problema que eu vejo é a gente tentar impor determinadas questões que foram, germinadas dentro de uma determinada sociedade pra ser colocadas em outra, né. Então, as mulheres muçulmanas têm suas agendas sim, têm suas reivindicações sim. Assim como outras tantas mulheres. É, o que a gente não pode, é imaginar que o que as mulheres querem, as mulheres muçulmanas, seja a mesma coisa que outras mulheres desejam, né. Então, isso não passa. A questão de liberdade, o conceito de liberdade não é exatamente o conceito que nós tamos acostumados, né. Não é… Não passa essa questão da vestimenta, não é uma questão pra grande maioria. Por quê? Por que a determinação religiosa, ela é clara. A mulher muçulmana tem que se cobrir. Ela tem que usar o hijab, né. É, mas é uma determinação divina, religiosa e não pode ser uma imposição dos homens.

Ivan: Você se sente oprimida por não poder usar o hijab?

Paula: Ahã, isso pra mim é opressão. Isso sim é opressão. Eu falei exatamente essa palavra. Você sabe o que é opressão? Eu ter que mudar a minha vida, toda a minha vida, reestruturar toda a minha vida, porque vocês não me aceitam. Isso é opressão. Então, eu ter que deixar de…“Ah, mas porque usar o véu?” Eu falei “Mas qual que é o problema de você usar um pano na cabeça, o que que te incomoda?” Sabe, é isso que a gente não entende, o que que te incomoda? Ah, o que eu mais escuto, “Você está no Brasil. Você não precisa usar isso, você não vai ser”. Não vou tirar razão, “Você não vai ser menos, você não vai ser mau caráter, o caráter não vai diminuir, a tua convicção religiosa não vai diminuir, a tua fé no teu Deus, em Allah, não vai diminuir, se você não usar o véu”. Eu falei, “Claro que não, você está super certa, não vai mesmo.” Só que, se o meu Allah recomenda que eu me cubra dessa forma para que eu possa me resguardar, não é uma escolha minha, não é uma decisão minha? Porque… é porque, eu falo assim, hoje em dia, os rapazes se interessam pelas moças por quê? Por que elas estão todas tapadas? Não, porque elas tão mostrando o que elas têm. E você acha, hoje, que você vai lá na balada, as meninas, elas vão… Elas se arrumam pra elas? Não, elas se arrumam pra as outras mulheres e pra chamar a atenção dos meninos. Porque, pra você aproveitar a vida, você não precisa expor seu corpo. Você não precisa ficar mostrando pra todo mundo, “ah, eu sou especial ou eu sou inteligente”. Você tem que ser o que você é. Então, assim, o que eu mais escuto é isso, “ah, mas você tá no Brasil. Ah, mas não sei o quê, não sei o quê; ah, mas não sei o quê, não sei o quê…” Falo, gente, pelo amor de Deus, que mal faz meu véu pra você? Não vai diminuir nada a minha religiosidade, digamos assim, ou recobrir os meus erros. Porque os meus erros… os meus erros, assim, digamos, né, os meus erros são palpáveis, são visíveis. Tá aí o Nicolas, tá aí o Bernardo, se eles forem encarados pela sociedade, eles são erros. Por quê? Porque eu não sou… Eu não namorei, não noivei e não casei, né. Então, filho fora do casamento é um absurdo. Mas eu não escondo disso. Quando eu tava grávida, todo mundo na mesquita sabia. Quando meu filho nasceu, sete dias depois, ele tava sendo apresentado na mesquita. E com muito orgulho. E, como eu falei e vou falar de volta, eu, Paula, eu estou legalizada dentro da minha religião (ela e Ivan riem). Quem tá pecando é o fulano lá.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francirosy: Então, o meu esforço, até, nesse diálogo com as mulheres, é dizer, “bom, qual é a regra?” Né, o que tem sido feito com essa regra? Se a regra é que as mulheres é que têm que decidir em que momento da sua vida tem que colocar o hijab, o lenço, então por que, em alguns momentos, as mulheres são impostas esse tipo de vestimenta? Então, a vestimenta, o recato é uma coisa esperado. Mas também é esperado do homem, né. Também é esperado uma série de coisas do homem. Mas a mulher muçulmana, por conta de estar coberta, outros olham pra ela e já olham como uma mulher assexuada, né, como se fosse uma mulher que não pensa, que não raciocina. E não é a vestimenta que vai apagar o pensamento, que vai diminuir a sexualidade. Ao contrário, né. É, eu conheço muitas que são extremamente efetivas na sua profissão e que têm uma vida sexual tão ativa quanto outras pessoas. Só que, assim, o sexo dentro da religião é o sexo do casamento. Não é um sexo fora do casamento. Então, a gente acaba rotulando determinadas comunidades porque a gente quer impor as nossas próprias regras. Então, não passa, pra elas, esse tipo de questão, né. A Síria também é um modelo muçulmano, né, islâmico. As pessoas são educadas, desde pequenas, a serem assim. Então, não adianta chegar com as nossas ideias revolucionárias e, como diz Lila Abu-Lughod, tentar salvar essas mulheres, porque a gente não salva ninguém. A gente não salva nem a gente mesmo, quanto mais salvar o outro, né. O que a gente pode ser, no mínimo, é um exemplo, né, e quando alguém te pergunta alguma coisa, você diz.

Ivan: Você gostaria que isso ocorresse no Brasil? Que a lei fosse assim?

Omar: Você diz no sentido contrário, então, de proibir as mulheres muçulmanas de usar o hijab?

Ivan: Não. No sentido que, no Brasil, de repente, fosse lei que mulheres deveriam usar o hijab, independente da religião.

Omar: É um exercício muito difícil, né, Ivan. Porque nós vivemos num outro contexto, né. Veja, se o Brasil tivesse uma história, né, de uso da vestimenta com recato, de proteção do corpo, de não demonstração do corpo – a gente vive num país em que a cultura age no sentido exatamente oposto – eu não veria mal nenhum. Eu veria mal hoje, no Brasil de hoje. Nós não temos direito nenhum de impor aos brasileiros o modo islâmico de ser e de agir, né. Então, no meu entender, seria uma extrema violência com relação ao povo brasileiro, as mulheres e os homens não entenderiam. Isso geraria um conflito terrível e uma grande aversão à religião islâmica. Nós não temos condição nenhuma de impor o nosso modo de ser e de pensar, porque somos minoria no país. Agora, como eu te falei, vamos supor que, daqui a 2 mil anos, o Brasil se torne um país de população majoritariamente muçulmana, eu acho que seria coerente impor uma legislação dessa.

Ivan: A justificativa, então, que você me diz, que no Irã deve tá certo de ser assim, é porque a maioria é islâmica?

Omar: A maioria é islâmica e existe um acordo tácito, né, entre os vários grupos que estão ali, as minoria zoroastristas, até mesmo os cristãos, de usar o véu. Mesmo porque o véu, Ivan, ele não é algo restrito à religião islâmica. A religião cristã, os católicos, as católicas, durante muito tempo, usaram o véu. As mulheres, até hoje, que vão em audiência com o Papa, elas devem usar uma manta cobrindo a cabeça. A Virgem Maria mesmo, né, em todas as representações, ela está coberta pelo véu. Então, o véu não é algo tão estranho à cultura ocidental e à religião cristã. Claro, em função dessa evolução histórica, dessa dicotomia que se criou entre o mundano e o espiritual, no Ocidente, até mesmo a vestimenta de caráter religioso, ela acabou cada vez mais ficando restrita aos círculos religiosos. Hoje, só as freiras se cobrem e usam o véu. As cristãs católicas, normalmente, não usam. E não usam nem mais na igreja, apenas senhoras, e tem que ter  realmente muita idade, né, pra ir a uma missa usando o véu. É… É algo que, de certa forma, ainda se manteve no ritual do casamento. Quer dizer, o véu da noiva, ele se mantém, mais por uma questão de tradição, do que por uma questão religiosa. Então, veja que ecos dessa determinação religiosa de que a mulher se vista com recato, assim como o homem, ainda persistem. Mas são só resquícios, né, são só ecos dessa determinação. O Ocidente, há muito tempo, perdeu essa referência.

Francirosy: Por exemplo, a questão do aborto. A questão do aborto nunca foi uma questão pro islã, até 94, quando, no Cairo, foi escrito um documento de líderes religiosos muçulmanos junto com os cristãos, junto com os católicos, né, contra o aborto. Até então, os muçulmanos nunca tinham se posicionado nem contra, nem a favor, nem… Não passava por uma questão. Por quê? Porque, no islã, é vida a partir de 120 dias, né. O islã, ele autoriza o aborto… O islã sunita, né. Ele autoriza o aborto a partir do momento que você descobre que a mãe corre risco de vida, né, com aquela gestação. Então, assim, tem uma série de questões que não passam, né, e que hoje, por questão dessa avalanche de ideias e discussões, e tal, alguns sábios muçulmanos têm se posicionado. Mas também não é um consenso. Porque o islã sunita, ele não tem uma hierarquia, no sentido de que você tem o Papa, o representante… Por exemplo, no xiismo, você tem lá os representantes, você tem o Khomenei, né, que é o líder religioso em (incompreensível), e tem os Aiatolás. Então, você tem uma certa hierarquia visível, né. O sunita não tem essa hierarquia visível. Quer dizer, a hierarquia tá sempre em relação do sheik e dos fiéis. Mas, mesmo assim, vai ter fiéis que vai dizer que essa relação é entre ele e Deus. Então, é bastante complexo pensar as comunidades muçulmanas. E tem uma outra questão que, muitas vezes, os brasileiros comuns não sabem, por exemplo, há cinco jurisprudências islâmicas, né. Então, há cinco escolas de jurisprudência. Então, cada escola vai dizer coisas muito diversas entre si, coisas próximas, coisas semelhantes. Então, a escola egípcia, que é a Maliki, ela tem uma forma de conceber determinadas questões. Na Arábia Saudita, a Hanbali, tem uma outra questão. A Ja’fari, no Irã, tem uma outra questão. É, então, a gente não pode fazer uma análise uniforme da comunidade muçulmana, no mundo, né. Porque eu vou sempre te perguntar, qual é a escola que rege este país? Qual é a escola, é… que rege determinada cidade, ou esse sheik tá falando a partir de que conceito? A partir de qual compreensão? É, então, isso tudo muito difere. Então, as agendas, de fato, são muito diversas, né. Por exemplo, teve um rivalismo islâmico no Egito, que as mulheres passaram a assumir aulas de religião dentro da mesquita, coisa que não existia há 30 anos atrás, 40 anos atrás. Então, você tem mulheres que são Duas (pronuncia-se “dawas”), né… Que fazem Duas, que dão aulas dentro da mesquita para as mulheres.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: O que mais te incomoda na questão de mulheres muçulmanas? O que mais te motiva, na questão da tua pesquisa, e o que você gostaria de ver acontecendo?

Francirosy: Cara, eu acho que as mulheres muçulmanas, elas vão fazer a revolução. Elas são do balacobaco, entendeu? (Ivan ri) Elas são danadas. Elas… Eu acho que vem uma galerinha aí, eu tô falando de mulheres aqui do Brasil, assim,, muito espertas, muito safas, muito independentes. E elas vão, tipo… Acho que o poder tá nas mãos das mulheres. É o que eu disse ontem pra essa TV do Oriente Médio, eu acho assim, quando as mulheres conhecerem bem a sua religião, né, todos os direitos que foram dados a elas no século 7, e quando elas começarem a praticar isso, a reivindicar isso, oh, tô com dó desses homens, viu… (ela e Ivan riem) Tô com dó desses homens muçulmanos, eles vão ter que se espiritualizar muito, ser muito profeta Muhammad, pra aguentar essa mulher com conhecimento. Porque o machismo não é uma coisa do árabe, ou do muçulmano. O machismo, hoje, é impregnado em todas as sociedades. Então, eu acho que essas meninas muçulmanas, elas vêm com tudo. Como as mulheres, hoje, né. Esse foi o ano da grande revolução feminina, né. Porque as mulheres não querem se calar mais. Elas não querem ser as coitadinhas. Então, acho que há todo um processo, aí, de individuação, de respeito, de conhecimento da sua religião, dos seus direitos, que as mulheres tão sendo convidadas a fazer cada vez mais. Então, eu acho muito positivo isso. E eu quero ver muito mais mulher muçulmana na academia, muito mais mulheres muçulmanas falando em congresso islâmico, sentando do lado dos ditos doutores, sendo convidadas a falarem publicamente sobre o seu papel, sobre a sua religiosidade, sobre a sua profissão. Serem respeitadas, não porque estão de hijab ou sem hijab, mas porque são mulheres e porque são seres humanos, então tem que serem respeitadas. Então, eu quero ver muito mais mulher aí, despontando e fazendo coisas bacanas, porque tem muitas mulheres bacanas por aí, muçulmanas… Muitas, muitas…

Ivan: Mas quando você diz que elas já têm direitos atribuídos desde o século 7, quais são esses direitos, e por que a gente tem essa percepção, daí, de que elas são tão restringidas?

Francirosy: Ah, porque a gente constrói as imagens que a gente quer, né. Mas elas têm direito ao divórcio, elas têm direito a escolher o marido que ela quiser casar, ela tem direito a prazer sexual. Ela pode pedir o divórcio, se o marido não comparecer sexualmente, por exemplo. Ela tem direito à herança. Tem direito à busca do conhecimento, ao conhecimento. Ela tem direito de que o marido pague as suas contas, porque o dinheiro que ela ganha é dela, e não do marido, né. Ela divide as atividades se quiser. Então, ela tem vários direitos, entendeu, que são atribuídos desde o século 7. Só que, assim, os homens manipularam do jeito que eles quiseram, e as mulheres foram ficando, né, pra trás.

Ivan: É, eu já ia falar que, na Arábia Saudita, eu tava vendo um relato, por exemplo, que a mulher não tem direito a herança, que existem casamentos arranjados ainda…

Francirosy: Então, tá totalmente… Isso não é islâmico. Se você olhar o Direito islâmico, tá tudo lá. Se você olhar a Suna do Profeta, olhar os direitos que tão discutidos dentro do Corão, tá tudo lá. Tá tudo lá. Então, assim, a ausência do conhecimento da própria religião faz com que a opressão aconteça. A partir do momento que elas dominam o conhecimento, a opressão deixa de existir. Então, é isso. Por exemplo, o dote é… O dote é uma obrigação masculina. Ele tem que dar. Por quê? Porque, na questão da herança, o homem recebe o dobro. Por que ele recebe o dobro? Porque é obrigação dele manter a mãe dele e as filhas e as tias e as mulheres sob a responsabilidade dele. Por isso que ele recebe o dobro, porque o que a mulher recebe na herança, é liquido, é dela, ela gasta com ela. Ela não precisa gastar com outros. Os homens, já não. Entendeu?

 

Ivan: Sim.

 

Francirosy: É um pouco por aí…

Ivan: E ao mesmo tempo, ela teria direito também a estudo, ao trabalho, caso assim queira?

Francirosy: Tem sim, sim, sim.

Ivan: Ela tem direito a não querer ter filhos?

Francirosy: Tem direito, mas espera-se que queira.

Ivan: Tá…

Francirosy: Porque, na verdade, a família, a constituição da família é metade da religião. E na família tá incluído filhos, né. Mas não é uma… Isso não  sai… Não surge como uma questão, como não surge a questão do aborto. Porque isso não é pensado, entendeu? O que é pensado é que toda mulher quer casar e ter filhos, como todo homem quer casar e ter filhos. É isso. Mas não tá escrito, por exemplo, que a mulher tem obrigação de ter filho homem. Não tá escrito em lugar nenhum, isso é uma coisa de costume. Não é da religião.

Ivan: Eu até tava vendo que no Iêmen, por exemplo, tá tendo uma revolução grande, de questão de mulheres, né. Tem algum grupo que você tem como modelo, dizendo, “olha só o que essas mulheres estão fazendo”?

Francirosy: Olha, tem vários. Tem na Palestina, na própria Síria, no próprio Irã tem alguns movimentos. Todos os países têm esses movimentos, entendeu? Isso não é uma coisa típica de um lugar ou de outro. É que a gente não ouve esses movimentos, né, a gente não dá ouvidos pra eles, né. Eles acabam saindo como ruídos. Mas existem vários. E certamente na Arábia Saudita deve existir, entendeu? Só que precisava ter alguém lá pra ver onde eles tão, o que eles fazem. Marrocos, tem ONGs feministas. Então, tem muita coisa por aí, né.

Ivan: Mas algum que você usa como exemplo, até pra dizer, “olha só, que foda isso aqui que ta acontecendo”, assim? Tem algum caso?

Francirosy: Ah, eu uso, na verdade, as próprias feministas autoras que eu sigo. Morreu recentemente a Fátima Mernissi. A Saba Mahmood… Então, assim, eu gosto muito das feministas que eu leio, porque são elas que trazem esses instrumentos, né… As questões do Egito, do rivalismo islâmico no Egito, foram muito importantes. E estão em processo ainda…

Ivan: Feministas muçulmanas?

Francirosy: É, muçulmanas.

Ivan: Interessante.

Francirosy: É, essa coisa das Duas, acho que é muito importante, né…

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Paula, eu vou te pedir, então… Que foi uma longa entrevista. Então, eu só tenho a te agradecer por ter falado tanto e exposto a sua vida. Que eu acho que é um exemplo muito bonito, e uma história muito bonita de ser contada. Infelizmente, eu não vou conseguir colocar ela inteira, eu vou ter que cortar um monte, isso vai me doer o coração. Mas eu queria que você desse uma mensagem final, principalmente pra essas pessoas que ainda têm que aprender muito sobre você. O que você diria pra uma pessoa dessa? Uma dessas que te agrediu, por exemplo.

Paula: É… Primeiro, agradecer a oportunidade, né. Pedir desculpas, aí, se eu acabei fugindo do tema, em algum momento. E, assim… É, nós, muçulmanos, temos a obrigação de buscar sempre o conhecimento. Seja no âmbito político, seja no próprio âmbito religioso, filosófico da religião. A religião, ela é muito vasta, tem muita coisa a se aprender. E que as pessoas busquem esse entendimento, que ninguém é obrigado a aceitar o que não te convém, mas você tem que respeitar. E se você desconhece, nós estamos aqui, abertos, a não querer que você se reverta ao islamismo, mas que você compreenda e entenda a verdadeira essência da filosofia do islã. Porque eu vou bater sempre nessa mesma tecla: é uma religião, reconhecida como religião, mas ela é uma filosofia de vida. Porque dentro do nosso livro, do Sagrado Alcorão, ele diz, tudo que você deve ser e tudo que você deve fazer, pra se ter uma convivência saudável nesse mundo aqui. E falar que, tudo isso aqui, pra essas pessoas, que tudo isso que elas tão vivendo, que elas julgam que é uma vida feliz, é tudo passageiro e transitório. Que a verdadeira felicidade mesmo é em um outro estágio. Isso aqui é tudo probatório. E que pecado, pecado é roubar, matar, não respeitar o pai e a mãe, não respeitar o seu próprio corpo, né. E é isso. Que tudo isso aqui é transitório. Isso aqui vai passar, e o que você vai levar pra outra vida, ou pra a eternidade, é as coisas boas que você plantou e as coisas boas que você desenvolveu. Porque é essa a busca que a gente fala, a busca pra ser o melhor. E que o ser humano, ele não muda, mas ele evolui, né. Ele evolui. Então, é isso.

Ivan: Muito obrigado, Zahra (ambos riem).

Paula: De nada. (entre risos) Shukraan. (Ivan ri)

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): No fim das contas, se as leis da Sharia são consideradas machistas por muitas pessoas no Ocidente, talvez sejam assim, mais porque as leis foram feitas mais por homens, do que por conta da religião. Eu não sei se estou certo ao dizer isso. O que eu sei é que, apesar de eu nunca ter dado aula para a Paula, ela me chamou de professor durante todas as cinco horas de entrevista que fiz com ela. E ela me chamava assim por conta de um profundo respeito que tem pela minha profissão. E isso me diz muito sobre o tipo de atitude que ela tem para com pessoas que mal conhece.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Em geral, a história já nos forneceu diversos exemplos de que mudanças de hábitos, comportamentos e costumes são mais eficazes quando partem de dentro de uma cultura, do que se por intervenção externa. Portanto, se desejamos que a cultura islâmica se aproxime dos nossos valores ocidentais e seculares, o melhor que podemos fazer é servir de exemplo, como a professora Francirosy disse. Ou, melhor ainda, respeitarmos as diferenças e construirmos pontes, como o Omar falou anteriormente. E isso já vem acontecendo nos últimos anos, graças ao contato que nossas culturas estão tendo, cada vez mais, a cada dia que passa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): E sobre outras polêmicas que envolvem a vida e os atos do profeta Muhammad, desde suas campanhas militares, a discussão sobre escravos, e até mesmo sobre o casamento que ele teve com Aisha, que era uma criança, na época, eu posso dizer o seguinte: nenhum dos muçulmanos e estudiosos com quem conversei apoiam guerras, escravos, ou até mesmo pedofilia. Todos defendem que cada um desses episódios da vida de Muhammad são muito específicos a um determinado período histórico, numa região que possuía condições bastante precárias de vida, e que o próprio Alcorão jamais deve ser lido em sua literalidade. Novamente, muito parecido com a defesa de que a grande maioria dos cristãos modernos fazem da Bíblia, no que se refere às condições punitivas que se encontram lá. E sobre a Aisha, vale aqui a lembrança de que o casamento com menor de idade não era uma prática apenas de muçulmanos. Durante toda a Idade Média, e especialmente no século 7, a própria Igreja celebrou tais tipos de união. E a nossa noção contemporânea de adultos surgiu apenas no século 18. De forma alguma eu gostaria de, com isso, justificar qualquer ato hediondo, especialmente nos dias de hoje. Mas apenas desejo constatar o fato de que estamos falando de quase 1500 anos atrás, num mundo muito diferente do nosso. Mesmo assim, as biografias sobre Aisha divergem muito, dependendo da fonte que se lê. Tendo sua idade variada, às vezes, entre 6, às vezes, entre 16 anos. Em alguns estudos, inclusive, se defende que dizer que ela era muito nova seria mais uma forma simbólica de dizer que ela era virgem e pura, do que, necessariamente, que ela era muito nova. O que se sabe ao certo é que ela era órfã, e que Muhammad teria se casado com ela, primeiramente, como forma de adoção. Uma prática que não apenas não era incomum naqueles tempos, como também não era de exclusividade da recém estabelecida cultura islâmica. De qualquer maneira, independente do relato em que nos baseamos, todos os muçulmanos com quem conversei condenam veementemente as atitudes do autointitulado Estado Islâmico, quando recebemos relatos de que eles estariam aprisionando e abusando de menores de idade. Ninguém, repito, ninguém considera isso justificável, por mais que se aceite a versão de que Aisha era, de fato, uma criança. Acima de tudo, o Islamismo com o qual eu tive contato demonstra um extremo respeito à pessoa e à dignidade humana.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Ainda sobre a Sharia, eu gostaria de mencionar que, desde que aprendi como ela funciona, ou acho que aprendi, eu passei a desconfiar de todas as pesquisas que aparecem em jornais, dizendo que grande parte da população muçulmana europeia gostaria de viver sob a lei islâmica. Primeiramente, porque cada muçulmano tem a sua noção ideal de Sharia, que pode divergir muito dentro da sua comunidade. Em segundo lugar, porque os motivos que levam um muçulmano a responder que gostaria deste cenário podem ser dos mais diversos, desde ele acreditar que bebidas alcoólicas deveriam ser proibidas, até ele sentir que se responder “não” em uma pesquisa dessas, poderia estar indo contra os seus princípios religiosos. É como se perguntassem para um crente cristão se ele gostaria que uma Constituição nacional fosse formada com base em princípios da sua religião. O que você acha que ele responderia? Nos últimos anos, vários jornais noticiaram a polêmica acerca de que, no Reino Unido, haveria cortes judiciais baseadas na Sharia. De fato, esses locais existem, mas não necessariamente endossados pelo Estado. São mais espaços de consagração dos ritos religiosos, do que necessariamente o fim da civilização Ocidental como a conhecemos. Sem dúvida, isso não nega o fato de que muitos homens, especialmente de origem saudita, se utilizam de tais tribunais pra tirarem direitos de suas esposas. Direitos esses que seriam garantidos pelo país onde residem. Contudo, mais uma vez, devemos notar que não há apenas uma Sharia, e que aquela baseada no que é praticado na Arábia Saudita é objeto de críticas entre muitos muçulmanos, inclusive. Religiões não são produtos culturais presos ao tempo em que surgiram. Todas elas sofrem modificações em suas práticas, com constantes reinterpretações sobre o que o texto sagrado teoricamente defende. À medida que a sociedade avança, a religião também sente e dialoga com isso. Claro, há sempre os mais conservadores, e tensões sempre irão existir. Mas acredito que esse tipo de leitura, que é bastante otimista, eu admito, deve permitir uma maior aceitação de pessoas que possuem crenças e vivências totalmente diferentes das nossas. Por fim, o Islamismo prega que o ser humano é um ser imperfeito. Logo, apesar da instituição estatal da Sharia por parte de alguns países autoritários, o julgamento final sobre o que se determina se uma pessoa é boa ou não será realizada por deus. E com isto em mente, a maior parte dos muçulmanos que conhecem sua religião defendem que, mesmo que o seu estilo de vida não esteja de acordo com o deles, ele não deve julgá-lo. E a base organizacional da religião islâmica, de certa forma, chancela essa noção. Não há um Vaticano islâmico. E isso porque é uma religião idealizada justamente na noção de que o ser humano deve prestar suas contas diretamente com deus, sem intermediários. Eu, como um cético que não possui qualquer inclinação religiosa, só consigo invejar uma visão de mundo assim, que se vê capaz de acreditar numa força ordenadora tão potente. Me sinto um pouco mais egoísta, mais solitário e invejoso. É a vida no mundo contemporâneo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Na história da Paula, nós aprendemos que tudo na sua vida mudou, depois do 11 de setembro. Então, no próximo programa, é para lá que iremos.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: PLANTÃO TELEJORNALÍSTICO)

Carlos Nascimento: Você vai ver agora, pela primeira vez, por um outro ângulo, o momento do choque do avião contra uma das torres do World Trade Center, vista do East River. Aqui, do lado de cá do rio, está o bairro do Brooklin…

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Após o 11 de setembro, um brasileiro que faz parte dos Fuzileiros Navais dos Estados Unidos, os Marines, foi lutar no Afeganistão e no Iraque.

Voz: Cara, quando eu cheguei no Afeganistão pela primeira vez, o impacto que eu tive foi completamente diferente do que eu tive no Iraque. Eu juro por qualquer coisa nesse mundo, eu pisei no Afeganistão, cara… e eu, no Afeganistão, eu iria e passaria dez anos, e não trocaria seis meses no Iraque de novo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Aqui, no Projeto Humanos, “O coração do mundo”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos podcasts continuem acontecendo. Se você gosta do nosso trabalho e gostaria que ele continuasse, você pode contribuir através do link na postagem. Agradecimentos especiais a Paula Zahra, Omar Nasser Filho, Francielli Morêz Gusso e Francirosy Campos Barbosa, por terem conversado comigo para este episódio. Aproveitando, recomendo que entrem no site da Francirosy, para que conheçam mais sua pesquisa como antropóloga, sobre mulheres muçulmanas. O endereço é antropologiaisla.com.br, tudo junto; o link está na postagem. Lá, vocês poderão encontrar uma série de artigos e documentários que podem ser de seu interesse. Nos vemos no próximo programa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição por Matheus Souza, Zé Roberto, Marcelo Biassusi, Sharisy Pezzi, Eduarda Severo, Sidney Andrade. Edição por Sidney Andrade. Revisão por: Zé Roberto