4 – A Melhor Ordem

28 de março de 2016

No quarto episódio da série O Coração do Mundo, voltamos no tempo para aquela manhã do dia 11 de Setembro de 2001, quando o mundo parou e mudou. Reviveremos a sucessão de fatos daquele dia, as dúvidas e as certezas que iam surgindo, e começaremos a acompanhar a história de Francesco Tessitore, brasileiro que ingressou nos Marines dos EUA na década de 1990 e foi lutar no Iraque e Afeganistão. Nesta primeira parte de sua história, conheceremos a guerra pela visão de um soldado, os protocolos militares, como é a Guerra ao Terror e, por fim, saberemos mais sobre uma das batalhas mais importantes do século XXI: a Batalha por Fallujah.

AVISO: Altamente recomendável o uso de fones de ouvido.

Arte da capa por Amanda Menezes
Crédito da Foto: Arquivo pessoal de Francesco Tessitore
Lettering por Luiz Amorim

Transcrição

Ivan (narração): 8h46 da manhã…

(INÍCIO DE MONTAGEM DE CLIPES DE ÁUDIO)

(OUVE-SE UM LONGO RASANTE DE AVIÃO,  ALGUÉM GRITA “HOLLY SHIT”, IMPACTO E COLISÃO, PESSOAS GRITAM, DESMORONAMENTO)

(PASSA PARA NARRAÇÃO APÓS A VINHETA DO PLANTÃO DA EMISSORA REDE GLOBO DE TV)

Carlos Nascimento: Você está vendo aí, agora, imagens ao vivo de Nova Iorque, das chamadas Torres Gêmeas do World Trade Center, no sul da ilha de Manhattan. A informação é de que um jato comercial, não se sabe ainda se de passageiros ou de carga, se chocou…

(FIM DA MONTAGEM)

Ivan (narração): O primeiro avião atingiu a Torre Norte entre os andares 93 e 99.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: ENTREVISTA COM ALGUÉM POR TELEFONE, EM INGLÊS)

Voz 1: Did you hear the explosion, from your position?

Voz 2: Oh, yes. Yes, we did. As a matter of fact, we heard it, and… cause I was just, like, standing there, pretty much looking at the window, I didn’t see what caused it, or if there was an impact.

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan (narração): Menos de 20 minutos depois, às 9h03 da manhã…

(INÍCIO DE MONTAGEM DE CLIPES DE ÁUDIO)

(OUVE-SE VOZES ASSUSTADAS, OUTRO RUÍDO DE RAZANTE DE AVIÃO, GRANDE IMPACTO E EXPLOSÃO, SIRENES AO FUNDO, ALGUÉM GRITA “JESUS FUCKING CHRIST!”. OUTRA PESSOA GRITA “HOLLY SHIT, MOM!”. ALGUÉM CHORA EM DESESPERO, OUTRO ALGUÉM GRITA “THAT’S THE OTHER BUILDING! THAT’S TERRORIST, BRO! THAT’S FUCKING TERRORISM!”, MAIS PESSOAS GRITAM E CHORAM EM DESESPERO, “OH, MY GOD, NO!”)

(Passa para uma CONVERSA AO TELEFONE)

Voz 3: Oh, there’s been another one, another plane just hit. Oh, my god! Another plane has just hit, it hit another building, right into the middle of it…

(PASSA PARA NARRAÇÃO DE REPÓRTERES)

Voz 4: I believe that could be a police helicopter that… Oh, wow!

Voz 5: We Just saw…

Voz 4: Oh, my goodness! You’re looking at…

Voz 5: Another?!

Voz 4: Another live picture, right now… Oh, my goodness! Of what I believe was a plane just hit… Another plane…

(IVAN INTERROMPE O CLIPE, QUE CONTINUA PASSANDO AO FUNDO DE SUA NARRAÇÃO)

Ivan (narração): O Segundo avião atingiu a Torre Sul, entre os andares 75 e 85.

(PROSSEGUE O CLIPE DE ÁUDIO)

Voz 4: Another plane has hit Tower Two, the Twin Towers. Ah, you hate to say the words, but what comes to mind right now, terrorist attack, that is what it looks like at this point.

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

(SOBRE UMA TRILHA SONORA GRAVE, A VOZ DO CLIPE REVERBERA, REPETIDAS VEZES: “TERRORIST ACT, THAT IS WHAT IT LOOKS LIKE”)

Ivan (narração): 9h37, o voo 77 da American Airlines bate no Pentágono, matando 59 pessoas que estavam a bordo e 125 militares e civis do prédio. 9h42, todos os voos nos Estados Unidos são cancelados. 9h45, a Casa Branca e o Capitólio são evacuados em Washington. De dentro das torres, pessoas começam a ligar para parentes e amigos.

(MONTAGEM DE CLIPES DE ÁUDIO: LIGAÇÕES DE TELEFONE, EM GRANDE PARTE INCOMPREENSÍVEIS, DE PESSOAS FALANDO DE DENTRO DAS TORRES, VOZES CHOROSAS E DESESPERADAS. ENTRE Ó RUÍDO DE ESTÁTICA, DESTINGUEM-SE FRASES COMO “I LOVE YOU”, “I CAN’T BREATHE”, “FIRE”, ETC.)

Ivan (narração): Melissa Doyle, uma executiva que estava no 83º andar, liga para o serviço de emergência 911.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: A LIGAÇÃO MENCIONADA. APÓS ALGUNS INSTANTES DE FALAS SOBREPOSTAS, MELISSA CONSEGUE FAZER ENTENDER QUE ESTÁ NO ANDAR 83 DO WORLD TRADE CENTER)

(bip de telefone)

 

Melissa: Holy Mary, mother of sky.

 

Atendente: 8-6-9-5, good morning, have a good day… (incompreensível)

 

Melissa: Oh, my god, I’m on the eighty-third floor!

 

Atendente: 8-6, what?

 

Melissa: I’m on the eighty-third floor!

 

Atendente: Ma’am, (incompreensível). 8-6, what? 8-6-9-5, 8-6-9-5, she’s at the World Trade Center … with a young lady on the eighty-third floor. Ma’am, how are you doing?

Melissa: Is it… Is it… Are they gonna be able to get somebody up here?

Atendente: Of course, ma’am, we’ll come up to you.

Melissa: Well, there’s no one here yet, and the floor is completely engulfed. We’re on the floor, and we can’t breathe. And it’s very, very, very hot.

Atendente: Are the lights still on?

Melissa: The lights are on, but it’s very hot! (ela se desespera)

Atendente: Ma’am, ma’am…

Melissa: Very hot! We’re (incompreensível) … , and it is very, very hot!

Atendente: No smoke, right?

Melissa: Of course there is smoke!

Atendente: Ma’am, ma’am, we have to stay calm.

Melissa: There’s smoke! I can’t breathe!

Atendente: Ok, ok. Stay calm with me, ok. I understand you.

Melissa: I think there is fire, because it’s very hot!

Atendente: Ok.

Melissa: It’s very hot! I see… I don’t see any air anymore. All I see is smoke.

Atendente: Ok, dear. I’m so sorry. How about you stay calm with me? Stay calm…

Melissa: Please!

Atendente: Listen, listen, (incompreensível). Hold on one second, please… (Melissa chora, em desespero) No, no, no…

Melissa: I’m gonna die, aren’t I?

Atendente: No, no, no… Ma’am, say your prayers. (incompreensível) We’re gonna think positive, because we gonna help each other…

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan (narração): Kevin Cosgrove, executivo que estava na mesma torre de Melissa, também liga para o serviço de emergência. Ele estava no 105º andar.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: A REFERIDA LIGAÇÃO. O ÁUDIO É BASTANTE DISTORCIDO, POUCO COMPREENSÍVEL)

 

Kevin: (incompreensível) we’re not ready to die, but it’s getting bad. There’s smoke… (incompreensível) 1-0-5-2-5.

Atendente: All right, sit tight, we get to you as soon as we can.

Kevin: So, hurry up, the smoke is really bad now, I can’t barely view (incompreensível) I’ll be waiting there. (incompreensível) Where are you? (incompreensível) What’s you guys you up to?

Atendente: We’re getting there, we’re getting there.

 

Kevin: (incompreensível)

Atendente: I understand that, sir, we are on the way.

 

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

 

Ivan (narração): No saguão das torres, os bombeiros começam a ouvir sons.

(OUVE-SE O ESTRONDO DE UM IMPACTO FORTE)

Ivan (narração): São os corpos de pessoas caindo.

(OUVE-SE UMA SUCESSÃO DE IMPACTOS, SIRENES, GRITOS, ESTILHAÇOS SE ESPALHAM COM CADA QUEDA)

Ivan (narração): 9h59…

(BREVE SILÊNCIO)

(INÍCIO DE MONTAGEM DE CLIPES DE ÁUDIO)

(ALGUÉM PARECE ESTAR FALANDO EM UM COMUNICADOR, OUVE-SE UM RUÍDO GRAVE MUITO FORTE, A PESSOA GRITA DESESPERADA: “OH, GOD!”, O SEU SEGUNDO GRITO É ABRUPTAMENTE INTERROMPIDO PELO ESTRONDO QUE ENGOLE O ÁUDIO E INTERROMPE A GRAVAÇÃO)

(EFEITO SONORO: APÓS BREVE SILÊNCIO, UM TOM DE PULSAÇÃO GRAVE)

(GRAVAÇÃO: ALGUÉM ESTÁ NARRANDO O QUE VÊ NA RUA)

Voz 6: This is as close as we can get  to the base of the World Trade Center. See the firemen assembled here, police officers, FBI agents… (a gravação é tomada por um urro grave de explosão) And you can see the two towers… A huge explosion! Raining debris all over us… We better get out of the way! (a voz é bruscamente interrompida pela explosão que engole o áudio e interrompe a gravação).

(EFEITO SONORO: UM TOM DE PULSAÇÃO GRAVE)

(APÓS ALGUNS INSTANTES DE APARENTE CALMA, PESSOAS COMEÇAM A GRITAR EM DESESPERO, ALGUÉM REPETE DIVERSAS VEZES “OH, MY GOD!” PASSANDO DE INCRÉDULO PARA CHOROSO. MAIS GRITOS AGUDOS, CHORO, DESESPERO)

(PASSA PARA PLANTÃO TELEJORNALÍSTICO)

Carlos Nascimento: Só um instante, Simone, pra dizer que todo o centro financeiro da ilha de Manhattan, aí, está coberto pela fumaça…

Simone: A torre acaba de desabar.

Carlos: Desabou a torre. Desabou uma das torres do World Trade Center!

Simone: Uma das torres acaba de desabar.

Carlos: Bem, isso que nós estamos vendo…

(FIM DA MONTAGEM)

Ivan (narração): 10h07, o voo 93 cai na Pensilvânia. Minutos após a queda da Torre Sul, o médico Mark Heith vai até o local, oferecer ajuda a bombeiros e possíveis sobreviventes. Ele estava com uma câmera na mão.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: GRAVAÇÃO DE MARK, OUVE-SE SONS DE DESTROÇOS SOBRE OS PASSOS DELE, ESTÁTICA E VOZES EM COMUNICADORES)

Mark: You need anybody with medical experience?

Bombeiro: (incompreensível) we probably lost 200 firefighters…

Mark: Oh, my god.

Bombeiro: And god knows how many thousands of people…

Mark: Ok. So you want me to wait right here? Ok.

Bombeiro: And stay away from any other high-rise buildings.

Mark: Ok.

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan (narração): 10h28…

(INÍCIO DE MONTAGEM DE CLIPES DE ÁUDIO)

(SOM DE PASSOS QUE PARTEM DESTROÇOS AO PISAR, OUVE-SE AO LONGE UM RUÍDO LONGO E CONTÍNUO. NA GRAVAÇÃO, ALGUÉM FALA EM INGLÊS, IVAN TRADUZ SIMULTANEAMENTE)

Ivan (tradução simultânea): Eu espero que eu sobreviva. Está caindo em mim. Aí vem. Estou me escondendo atrás do carro.

(O CLIPE DE ÁUDIO TERMINA COM UM LONGO RUÍDO DE ESTÁTICA, DEPOIS DO QUAL A GRAVAÇÃO ENCERRA-SE ABRUPTAMENTE)

(EFEITO SONORO: APÓS UM BREVE SILÊNCIO, UM TOM DE PULSAÇÃO GRAVE)

(PLANTÃO TELEJORNALÍSTICO)

Carlos Nascimento: Aqui, por um outro ângulo, também o momento em que a torre do World Trade Center… Uma das Torres Gêmeas viria a desabar. Esse é o que restou… Essa é a torre que ainda permanece de pé. (segue-se uns instantes de silêncio) Olha, essa… Essa é a outra torre agora? É a outra torre que está caindo agora? Caiu a outra torre. A outra torre. A outra torre, a segunda torre está caindo. A exemplo da primeira. Imagens ao vivo de Nova Iorque. Está no chão o World Trade Center, um dos maiores símbolos do poder econômico dos Estados Unidos, no centro da ilha de Manhattan. O World Trade Center está no chão. Primeiro, uma das torres, agora a segunda…

(PASSA PARA OUTRA GRAVAÇÃO EXTERNA, TAMBÉM OUVE-SE PASSOS SOBRE DESTROÇOS. IVAN TRADUZ SIMULTANEAMENTE)

Ivan (tradução simultânea): Estou enterrado em fuligem. Me desculpem por ter vindo. Eu tinha que vir ajudar às pessoas. Eu devia saber que a segunda ia cair. (ouve-se o som de  uma buzina) Deus! Está escuro como a noite, e eu estou fora, em plena luz do dia. Eu vim e me escondi atrás de um carro. Posso ver um pouco. Isto é incrível. Eu tenho que ir procurar pessoas que precisam de ajuda. Eu não sou uma delas.

(PASSA PARA O PLANTÃO TELEJORNALÍSTICO)

Carlos Nascimento: O World Trade Center, em Nova Iorque, não existe mais. Depois que dois aviões foram lançados com… Olha ali. Ali você vê o que restou. E as pessoas aqui, a uma distância que não é muito longe. A Ana Paula Padrão…

(PASSA PARA OUTRA REPORTAGEM TELEJORNALÍSTICA)

Ana Paula Padrão: A Frente Democrática para Libertação da Palestina desmentiu, agora há pouco, negou que seja responsável pelo atentado. E certamente as informações sobre a responsabilidade por essa tragédia vão começar a chegar de forma muito desencontrada, inclusive a autoria pelo atentado…

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

(PASSA PARA OUTRA MATÉRIA TELEJORNALÍSTICA)

Fátima Bernardes: Na história recente, os americanos sofreram diversas ações terroristas. Nem todas promovidas por estrangeiros. Mas o maior de todos os suspeitos é árabe.

Heloísa Villela: O primeiro nome na lista de suspeito é o do saudita Osama Bin Laden, considerado o inimigo número 1 dos Estados Unidos. Ele vive no Afeganistão, protegido pelo governo talibã. Em 1998, Bin Laden teria financiado os atentados a embaixadas americanas na África. Foram duas embaixadas do Quênia e da Tanzânia, ao mesmo tempo, 224 pessoas morreram. Terroristas ligados a Osama Bin Laden foram julgados e condenados…

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

 

(fim da montagem)

Ivan (narração): 8h30 da noite.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: DISCURSO DO PRESIDENTE GEORGE W. BUSH)

Bush: Good evening. Today, our fellow citizens, our way of life, our very freedom came under attack, in a series of deliberate and deadly terrorist acts. America, and our friends and allies join with all those who want peace and security in the world. And we stand together to win the war against terrorism. Tonight, I ask for your prayers for all those who grieve, for the children whose worlds have been shattered, for all whose sense of safety and security has been threatened. And I pray they will be comforted by a power greater than any of us, spoken through the ages in Psalm 23. “Even though I walk through the valley of the shadow of death, I fear no evil, for you are with me.” This is a day when all Americans, from every walk of life, unite in our resolve for justice and peace. America has stood many enemies before, and we will do so this time. None of us will forget this day. Yet, we go forward to defend freedom, and all that is good and just in our world. Thank you. Good night, and god bless America.

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan (narração): Estava declarada a guerra ao terror.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Naquela manhã de terça-feira, 2996 pessoas morreram, entre passageiros, bombeiros e policiais. A enorme maioria eram civis. De alguma maneira, o mundo mudou naquele dia. Não à toa, é comum até hoje perguntarmos, “o que você estava fazendo no 11 de setembro?” Eu estava voltando de uma aula. E apesar de ter passado o dia inteiro com a televisão ligada na globo News, acompanhando a cobertura do repórter Carlos Nascimento, que vocês ouviram aqui, o que mais me marcou foi, sem dúvida, o fato de que eu já estava de viagem marcada para os Estados Unidos, para um daqueles intercâmbios de trabalho em hotéis. E em dezembro, eu descia em Nova Iorque.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Ao visitar o local das Torres Gêmeas, fiquei primeiro impressionado com o tamanho do local. E imaginar que tudo aquilo tinha sido real era muito, muito difícil. Os aviões batendo, as nuvens de fumaça, as pessoas correndo, gritando, caindo. Mas o que mais me marcou no local foi uma estrutura de metal que havia sobrado. Ela tinha o formato de uma cruz. À noite, duas torres de luz iluminavam os céus de Nova Iorque, como fantasmas que homenageiam aqueles que morreram no dia. Semanas depois, agora no hotel onde eu estava trabalhando, eu conversava com um amigo estadunidense sobre os ataques. E ele me dizia, “o que você tem que entender é que aquelas pessoas que morreram estavam indo pro trabalho, vivendo suas vidas, fazendo planos. É diferente de quando um militar morre. Um militar, quando acorda de manhã e vai pro trabalho, ele sabe que pode morrer a qualquer momento, por mais improvável que seja.” E, sim, eu argumentei sobre como os Estados Unidos também já mataram milhões de inocentes civis em guerras passadas. Mas, daí, fica a questão, isso justifica?

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Voz 7: Tem uma rede, aqui nos Estados Unidos, que chama-se Einstein Brothers Bagels, né. E eu estava lá dentro, comprando bagel… E eu vi assim na televisão… Tinha uma televisão lá, eu vi na televisão o primeiro… O primeiro prédio, né… Acho que a North Tower pegando fogo e, aparentemente, um avião tinha batido lá, naquilo lá, naquele prédio, e eu falei, “nossa, mas o que que tá acontecendo?” Aí, na segunda vez, que veio o segundo avião e bateu, eu imediatamente, por causa do meu background, tudo, já imaginei, “isso aí é coisa de terrorista”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Voz 7: Assim, depois que o segundo avião bateu, aí eu já fui pra base. E… aí, eu fui pra base, imediatamente eu já tava a caminho da base, mas aí tudo fechou, meu. Tudo, as bases todas ficaram… Depois comprovou que era ataque terrorista, Al-Qaeda, depois o Pentágono foi atacado, depois aquele avião, Flight 93, caiu na Pensilvânia, que também tava mirado… Aquele avião do Flight 93 estava mirado pra ir dentro do Senado, do Congresso. Mas eu… Aí, que nós voltamos na base, tudo ficou fechado, alerta ao máximo de proteção… Foi bem violento o negócio. E até entender quem tava por trás, e até o Governo liberar todas as partes, né, que… Al-Qaeda que tava envolvido, Bin Laden, tudo… Aí, começou a pancadaria depois.

Ivan: O que que tava passando na tua cabeça, enquanto você tava saindo da loja e indo pra base? O que tava caindo na tua cabeça?

Voz 7: De verdade?

Ivan: De verdade.

Voz 7: “Agora, vou conquistar meu sonho de meter bala em alguém.”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Então, você ficou eufórico, digamos assim?

Voz 7: Total. Não via a hora de ser o primeiro a ir pra lá.

Ivan: Você se sente mal ao dizer isso?

Voz 7: Não. Não, porque sempre foi um objetivo que eu tive, eu… Veja bem, num… eu num… Eu não… Eu nunca quis lutar e tive sonho de lutar por lutar, pra tirar uma vida. Lutar em virtude de uma coisa nobre.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Voz 7: Ok, eu… meu nome é Francesco Tessitore. Eu… 46 anos de idade. E a minha profissão… Eu sou, hoje, trabalho como apoio de Counter Intelligence.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Nasci em São Paulo. E fui para São José dos Campos com 11 anos de idade. Meu pai tinha uma fazenda, já desde a época que eu tinha seis, sete anos. E nós íamos nos finais de semana pra fazenda, em São José dos Campos. E ele se aposentou, e depois nós mudamos, ele quis sair da cidade. Cidade grande, né.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Eu tinha… Eu acho que eu tinha… Ah, meu, eu acho que eu tinha uns oito ou nove anos de idade. Eu sempre fui fascinado com a área militar. E eu colecionava uma revista, eu nem lembro o nome da revista. O equivalente aquele… ah… aquela revista, aqui nos Estados Unidos chama-se Soldier of Fortune. Onde vem uma revista com várias coisas de vários países, várias tropas de elites do mundo, tudo. E os Marines era o top do top de sempre, né. E eu colecionava essa revista. E, mas nem imaginava, assim… Eu viajava, né, com nove, dez anos de idade, imaginar, pô, usando aquela roupa de combate, indo pra guerra, foi uma coisa que sempre me atraiu. Não sei, é uma coisa muito karmática pra mim.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Comecei a estudar porque eu queria entrar na AMAN, na Academia Militar das Agulhas Negras. E é justamente isso, essa época do Figueiredo, foi a época da… dos militares. Eu viajava, eu era fascinado. Eu era até meio ignorante assim. O pessoal que metia o pau nos militares, eu morava em São José dos Campos, e, tinha o CTA ali, tem o CTA, né? E eu era muito assim, servir tiro de guerra. Eu fui voluntário para o tiro de guerra. Enquanto todo mundo estava tentando ser desligado, eu estava lá na frente querendo servir e servir, entendeu? Os caras falavam, “cê é maluco!” Não sei o quê…Aí, eu… eu comecei a estudar mais, né. Eu comecei a ver o negócio da AMAN. E eu falei, “puta, mas… cara eu vô… ” Eu… eu comecei a ver uns caras que fizeram carreira na AFA, para fazer o CTA e tudo. E eu falava assim, “mas, meu… É simplesmente mais um… um trabalho assim. É uma… Não é uma carreira”. Uma carreira, pra mim, tinha que ser combate. Tem que ser assim… Alguém que vivencia algo que possa trazer algo a mais (Francesco ri) do que simplesmente vestir uma farda. Eu vou… Se eu entrar… se eu tentar entrar numa AMAN, qualquer coisa aqui no Brasil… Mais uma vez, eu não vou ter uma perspectiva. E não… Por favor, isso não é, mas nem é… como é que chama… uma coisa que eu realmente, é… eu acredito. Mas é uma coisa assim de ser prepotente. Mas eu falava assim, “eu acho que eu tenho mais potencial dentro dos meus sonhos, daquilo que eu quero. Eu quero entrar em combate. Eu quero ir para um país onde vai me colocar, e vai me preparar, vai me treinar e vai me dar valor. Eu acho que eu tenho mais potencial do que, simplesmente, ser um cara do exército, da aeronáutica, na marinha, no Brasil. Eu nunca vou… Vou simplesmente fazer uma carreira, vou aposentar e nunca vou… treinar ao nível do que é necessário de ser treinado aqui. Mas eu nunca vou participar de um combate, nunca vou participar de uma coisa internacional!”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Eu sou muito focado na parte internacional, sempre fui. Tanto que a minha… Eu fiz ciências políticas, com foco em política internacional, né. Me formei e depois fiz mestrado em Estudos e Inteligência Estratégica. Então, eu falava assim, ”poxa, nunca, no Brasil…” Eu via assim, na… E com todo o respeito, mas é parte do… Foram poucas, uma porcentagem muito pequena. Eu estive aí no Brasil em março, por exemplo. Meu, coisa estourando da Rússia invadindo a Crimeia, né, Crimeia lá… Mas, meu, é, assim, uma reportagenzinha, uma palavrinha assim no Jornal Nacional “Rússia invade a Crimeia, blá blá blá.” Mas não existe um comentário forte político, sabe? Não tem… político se manifestando, não existe uma manifestação política, de um político chegar e falar assim, “Meu, isso que está acontecendo é…” Não tem… É tudo doméstico.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Eu lembro, desde do meu… de ser criança, sempre, né… vendo minhas… coisas de militar, e eu sempre fascinado pelos Estados Unidos, pelos Marines, US Marines e mais nada! E eu falei, “meu, eu vou pros Estados Unidos e vou ser marine!” E vim. Vim com 21 anos de idade, mas isso já era uma coisa minha que estava crescendo há muito tempo. Ah, tanto que eu não tinha… eu pensei… a única opção além de Marines que eu tive, mas eu não pude na época, era de ser… Eu pensei e eu iria ter feito se eu pudesse, era de ser US Seals, né, Navy Seals. Eu não podia porque para você ser Seal, já de cara, pro treinamento, você tem que ter cidadania americana, porque você é exposto a certos tipos de treinamento que já são top secret. E para ser top secret, você tem que ser americano, pra você ser exposto a esse treinamento. E eu não tinha, eu era… eu passei a ser residente legal, porque a minha primeira esposa… eu casei e minha primeira esposa era daqui. Coincidentemente eu a conheci e nós vivemos vinte anos juntos, e o pós-guerra acabou com tudo isso.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Navy Seals e Marine. Marine e Navy Seals são as únicas opções. Eu nunca quis saber do Army, do Navy, do… de mais nada! Airfoce, muito menos. Meu negócio é US Marines ou Navy Seals. E Navy Seals estava fora e US Marines. Eu entrei na… Eu lembro que eu entrei no centro de recrutamento e falei com o recrutador. E eu falei assim, “I wanna be a marine!” Aí, você faz o teste lá, tem um teste, né, pra você ver que nível acadêmico você está e tem um certo número lá. E eu me qualifiquei pra vários trabalhos, mas eu não queria mais nada a não ser infantaria, porque eu acreditava que com seis anos na infantaria iria me dar uma base, o que é verdade, uma base muito forte de liderança. Você não ganha nunca liderança, você nunca desenvolve sua liderança e quem você é e como você lidera, até que você entre na infantaria.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Eu… eu lembro que o recrutador falou, “Meu, você sabe que você tem uma…” Eu não podia entrar na área de inteligência naquela época também, porque eu não era US citizen, não cidadão americano ainda. Então, eu tinha várias opções de trabalho: Avionics, Engineer , não sei o quê. Eu falei, “meu, eu quero pintar minha cara e ir pro meio da floresta Eu quero meter bala!” (risos) “eu quero infantaria!” (risos) E ele dava risada e falou, “ok, ok! Mas você sabe que, meu, a infantaria é meio pesado, eu não vou mentir para você. Nós tamos… Não é essa vida que você está…” E falei, “não tem problema, eu quero fazer, no começo, infantaria e acabou!”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Quando Francesco terminou o ensino médio, no Brasil, entrou em duas faculdades: educação física e direito. Em 1991, com 21 anos de idade, largou as duas graduações e foi para os Estados Unidos, com a ajuda de amigos. Assim que chegou, conseguiu dar entrada na papelada para ser residente, graças à ajuda de uma mulher que o contratou como Au Pair para seu filho. Pouco tempo depois, conheceu uma mulher que se tornou sua primeira esposa, como ele mencionou há pouco, e ficaram 20 anos juntos, e tiveram duas filhas.

Ivan: Você… Vocês casaram rápido, então, assim, tipo…

Francesco: Foi mais ou menos, ah, um ano. Sete meses… Oito meses a um ano. E durou 20 anos.

Ivan: Oito meses namorando e, daí, já casaram.

Francesco: Exato, exato.

Ivan: Que é uma coisa que é mais comum nos Estados Unidos, inclusive, né? O pessoal não demora tanto para casar, né?

Francesco: Sim. Não, mesmo os daqui, normal. Isso, na realidade, você vê muito nas Forças Armadas, porque o cara fica muito solitário, né. Ele vai para o primeiro boot camp e tudo, depois vai para escola que ele optou pra o que quer que seja, logística, infantaria e tudo. Aí, ele é colocado em uma base. Mas aí, normalmente, o cara fica muito solitário. E normalmente tem a namorada que namora faz um tempão, que está lá na cidade de Missouri, não sei aonde… Aí, o cara fala, “meu, não faz sentido nenhum cê tá aí, vem pra cá”, né? Aí, vem, casa… E é uma coisa natural!

Ivan (narração): Quando ele conheceu sua então namorada, ele já estava nos Fuzileiros Navais, os Marines. Ele estava lá desde 93. Graças ao casamento, ele conseguiu residência oficial e pode migrar da infantaria para a contra inteligência, onde acabou fazendo sua carreira. E se você não sabe o que são os Marines, é importante deixar claro que o treinamento deles é bem diferente do Army, o Exército Americano, já que são uma espécie de força de elite militar, onde poucos entram.

Francesco: Não quero colocar o Army para baixo. Special Forces do Army são excelentes: Delta, Green Berets, né. Mas o Army, no geral, o Big Army, né, o Grande Army convencional, eles não têm a mesma disciplina e as mesmas regras que nós temos. Os Marines são muito strict, né, restrito. São muito… Eh, nós somos muito, assim, disciplinados. O Army já é mais… putz, é uma… meio zona. Sabe, o jeito que eles operam, às vezes.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Em relação a mim e em relação com essas pessoas que entraram depois no… depois do September 11th, eu acho que a diferença é… é nítida, porque alguns de nós, antes… Que nem eu, eu me juntei em 1993. Em 93, você não poderia imaginar que em menos de dez anos ia estourar uma guerra mundial de terroristas. Tinha os sinais, mas… né? A presidência do Clinton e essas coisas, ninguém quis dar muito ouvido a isso. Mas a diferença é que eu me juntei em 93, com o ideal de continuar fazendo as minhas campanhas e viajando o mundo em busca dos meus ensinamentos dentro da área militar, que é uma coisa que sempre me fascinou. E a diferença nítida é que você vê que aqueles que se juntaram por um impulso patriótico, que foram muitos, serviram o contrato mínimo, às vezes de quatro, cinco anos e saíram fora. Enquanto aqueles que já estavam antes ou alguns que se juntaram depois, continuaram carreira, entendeu? Mas você vê uma grande entrada e saída, entendeu? De… de pessoas que entraram pra servir e falaram, assim “Agora, eu servi no Iraque ou eu servi no Afeganistão”. Eu conheço cara que entrou só pra servir no Iraque e falar, “ó, eu servi no Iraque…”. Pra que alguém pudesse virar pra ele e falar assim, “o que cê pelo país?”, “eu servi no Iraque”. Entendeu? É uma questão… foi uma questão, assim, de patriotismo e de falar assim, “agora eu vou dar um tempo no que eu tô fazendo e vou fazer isso pelo meu país”. E isso foi grande, isso foi grande. Mas não teve uma longevidade muito grande daqueles que entraram só para isso e continuaram pra servir uma carreira. Eles entraram, serviram o tempo mínimo, que são quatro anos, e saíram fora.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: E os Marines são responsáveis pelos… Chama-se east coast e west coast deployments. Como nós somos, por doutrina, transportados pela Marinha, nós somos a força anfíbia de ataque da… da água pro mar, da… do mar pra terra, certo? Então, por doutrina –  doutrina -, os Marines são transportados pela Marinha e nós paramos e atacamos, fazemos exercícios da água pra terra. O exército não, o exército chega depois que a gente conquistou, chega, ocupa e a gente sai fora, certo? E… então, eu em 96, 97, existe… agora, nós estamos falando agora, amanhã, depois de amanhã, daqui a seis meses, continua existindo, ah… chama-se MEU, Marine Expeditionary Units. São forças anfíbias de ataque que patrulham o mar Mediterrâneo e o Pacífico. Todos seis meses, é feita uma rotação e nós somos transportados pela Marinha. Então, nós temos agora, no momento, existe a vigésima quar… vigésima segunda, vigésima quarta e vigésima sexta MEU, que é do East Coast, Camp Lejeune, North Carolina, aqui em North Carolina. E tem a décima primeira, décima terceira e décima segu… décima quinta forças expedicionárias anfíbias, que saem da Califórnia em San Diego e vão pro… pro oceano Pacífico. O que que eles fazem? São frotas de navios que transportam Marines em… expedições… unidades expedicionárias, que qualquer crise do mundo, de um dos lados do mundo, nós temos forças pra responder em menos de 24 horas.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Então, a minha primeira que eu fui, foi de… foi 96, 97, na twenty-fourth MEU, a vigésima quarta, eu estava estacionado aqui em Camp Lejeune, North Carolina. Então, eu passei seis meses dentro do navio, e a cada duas semanas a gente parava em vários países, na época, e fazia treinamentos de cooperação, treinamentos de instrução, treinamentos de partnership, né, com países. Então, eu parei no Egito, parei na Albânia, parei na Grécia, parei na Itália, França, é… Portugal, Espanha…

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Mas essa foi a primeira, assim, operação que eu fiz, fora de combate, foi… isso é tudo operação que você é… mais ou menos estado de alerta. Eu lembro que, numa das nossas operações, que nós estávamos lá, nós tivemos um chamado pra aquele país, Burundi. Burundi, lá na África, que começou a ter uma crise e nós fomos responsáveis por todas as embaixadas do mundo inteiro, consulados, se alguma coisa acontecer, nós temos que evacuar os cidadãos americanos na embaixada. Então, vai estourar uma guerra civil em algum país, essas MEUs, né, essas expedições, nós somos chamados, que nós tamos na área local. Digamos que vai estourar uma na Sumatra. O pessoal da costa oeste que está lá de prontidão já é chamado, já vão tudo pra lá. Aí, temos operações pra tirar a galera americana de lá porque vai estourar uma guerra civil. Então, nós somos responsáveis por esse tipo de coisa. Somos responsáveis por, é… operações humanitárias, qualquer… lembra o… agora recentemente, teve um… na Filipinas, teve um terremoto, um negócio assim. Então, aí o que que acontece, aquela unidade da costa oeste, que tá lá na costa oeste, que tá flutuando lá, primeira coisa… comida, saúde, médico, parte… é, de… de socorros é tudo os Marines que fazem, Navy e Marines. Então, nós fazemos muitas operações humanitárias, coisa que o mundo não fala, né, mas nós fazemos muita operação mili… muita operação humanitá… humanitária (Francesco tosse).

Ivan: Uhum… é mais… você diria até que, em proporção, é mais operação humanitária do que militar?

Francesco: Muito mais, muito mais, porque a guerra, por exemplo, tá acontecendo muito, né, constantemente. Ali nós já saímos do… voltamos mais ou menos por causa do negócio da Síria, tudo, mas nós não temos tropas no chão ainda, né. Mas no Afeganistão, nós temos poucas tropas. Agora, os MEUs, né, Marine Expeditionary Units, essas coisas, nós estamos constantemente levando comida, nós levamos assistência dentária, assistência médica, tudo. Países da África, a gente tá sempre fazendo isso.

Ivan: É muito parecido com o que o Brasil faz, então, no…

Francesco: No Haiti, no Haiti, só que… só que nós fazemos no mundo inteiro.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Apesar da declaração de guerra do governo Bush a Osama Bin Laden, na época protegido pelo governo Talibã, no Afeganistão, o Francesco não foi imediatamente para lá, pois havia outras operações em andamento para a captura de Bin Laden, especialmente por parte da CIA. E de repente, em 2003, uma nova guerra parecia surgir no cenário internacional.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: DISCURSO DE GEORGE W. BUSH)

Bush: My fellow citizens, events in Iraq have now reached the final days of decision. For more than a decade, the United States, and other nations have pursued patient and honorable efforts to disarm the Iraqi regime without war. That regime pledged to reveal and destroy all its weapons of mass destruction as a condition for ending the Persian Gulf War, in 1991. Since then…

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Francesco: O que aconteceu foi um problema muito grande, político. Infelizmente, eu acho que o que aconteceu na época do Bush, ele… ele tirou o foco do Afeganistão, que era o número 1, e entrou no Iraque com aquela percepção de guerras de… armas de… né, weapons of mass destruction, ah… links do Saddam Hussein com Al-Qaeda, coisas que acabaram sendo provadas que não eram verdade.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO)

Bush: The United States, with other countries, will work to advance liberty and peace in that region. Our goal will not be achieved overnight, but it can come over time. The power and appeal of human liberty is felt in every life and every land. And the greatest power of freedom is to overcome hatred and violence, and turn the creative gifts of men and women to the pursuits of peace. That is the future we choose. Free nations have a duty to defend our people by uniting against the violent. And tonight, as we have done before, America and our allies accept that responsibility. Good night, and may God continue to bless America”

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO)

(AO FUNDO DA NARRAÇÃO, BARULHO DE EXPLOSÕES)

Fátima Bernardes: Imagens ao vivo de Bagdá, nove horas da noite. Começou realmente a maior ofensiva aérea à capital do Iraque. Bombas explodem na capital iraquiana. As baterias antiaéreas tentam se defender, interceptar esses ataques. Ataques que estão sendo feitos, além de mísseis Tomahawk, com bombardeiros B-52. Mas você vê aí a fumaça já tomando conta do céu de Bagdá. Explosões muito fortes começaram a ser ouvidas. O ataque começou aproximadamente há uma hora (barulho mais alto de explosões), mas a parte mais intensa realmente, aí você vê fortíssimas explosões, fogo, fazendo rolos de fumaça. E a gente consegue já ouvir o barulho das explosões e das baterias antiaéreas. Até agora, não se tinha (barulho mais alto de explosões) visto realmente um ataque tão forte. Essas são imagens ao vivo, 9h01 em Bagdá. O Pentágono já tinha…

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Dezembro de 2003.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: MATÉRIA TELEJORNALÍSTICA)

Pedro Bial: Novas informações sobre a captura de Saddam Hussein. Vamos à Nova Iorque,com a correspondente Cristina Serra.

Cristina Serra: A Casa Branca se mostrou aliviada com a captura de Saddam Hussein. O porta voz da Presidência, Scott McClellan, disse que o povo iraquiano pode enfim ter certeza que Saddam não voltará ao poder. Segundo a Casa Branca, a mensagem para o povo iraquiano é que a era do medo está acabando. O presidente George Bush fará um pronunciamento daqui a pouco, na Casa Branca, sobre a captura de Saddam Hussein. Ao meio dia, hora de Washington…

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan (narração): Diferente da guerra do Afeganistão, a invasão ao Iraque não possuía massivo apoio da comunidade internacional. As operações militares lá se resumiam a dois países, Estados Unidos e Inglaterra. A captura de Saddam Hussein, primeiramente comemorada pelos países ocidentais, acabou gerando uma sucessão de problemas que não haviam sido calculados. Além da presença já conhecida de grupos terroristas no país, a queda de Saddam Hussein resultou num alto grau de instabilidade política, especialmente da chamada Insurgência Iraquiana, composta por grupos de combatentes fortemente armados que lutavam contra as forças militares estadunidenses e britânicas. Esses grupos eram muito diversificados e eram formados especialmente por inúmeras milícias e com apoio de células terroristas mais desenvolvidas, entre elas a Al-Qaeda iraquiana, um ramo da Al-Qaeda de Bin Laden, mas diferente em vários sentidos. Este ramo iraquiano é o que hoje nós conhecemos como o autointitulado Estado Islâmico.

(EFEITO SONORO ALUSIVO A SUSPENSE)

Ivan (narração): A Al-Qaeda iraquiana era liderada pelo número 2 na lista de mais procurados do FBI, atrás apenas de Bin Laden. Seu nome era Zarqawi.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: ENTREVISTA TELEVISIVA)

Voz 8: How close were you to killing Zarqawi yesterday?

Voz 9: I don’t know, we… we know that during the operation there were a number of vehicles at that location. Once the building went down…

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan (narração): Ainda em 2003, uma série de informações apontavam que Zarqawi estaria numa cidade chamada Fallujah, que fica a setenta quilômetros da capital, Bagdá. O período entre março de 2003 e março de 2004 foi de enorme instabilidade política na região, com uma série de confrontos armados entre milícias e forças militares formadas por militares americanos, britânicos, e o exército iraquiano.

(EFEITO SONORO DE IMPACTO)

Ivan (narração): O cenário piorou muito quando, em 31 de março de 2004, insurgentes iraquianos mataram quatro empreiteiros americanos que trabalhavam na região. Logo em seguida, em abril, os Marines invadiram a cidade, buscando encontrar membros da Al-Qaeda e outros insurgentes. As forças iraquianas, em princípio, deveriam ajudar, mas desertaram no meio da operação. E com isso, essa batalha em Fallujah foi cancelada, e novos planos começaram a ser feitos. Uma nova invasão passou a ser desenhada para novembro daquele ano. Essa segunda batalha de Fallujah, que durou sete meses de planejamento, ficou conhecida como Operation Phantom Fury, e é uma das campanhas militares mais importantes da história contemporânea.

(EFEITO SONORO DE IMPACTO)

Ivan: Você que… você entrou no Marines em 93 e… quando foi a primeira vez que você foi a campo?

Francesco: A campo, como você fala? Assim, de… combate?

Ivan: É, combate. Isso.

Francesco: Combate mesmo foi, é… Fallujah.

Ivan: Foi Fallujah.

Francesco: 2004.

Ivan: 2004.

Francesco: É, 2004, Fallujah.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: E Fallujah foi uma coisa, foi uma das ma… foi a maior batalha desde a… de Vietnã, onde casa por casa, quarto por quarto foi varrido, porque o Al-Qaeda estava completamente com o controle total de Fallujah. E nós fizemos uma campanha durante sete meses mandando panfletos, tudo, cercamos a cidade e quem… mandamos panfleto de avião, de tudo, para que esvaziasse a cidade, se você não fosse parte da Al-Qaeda, porque nós íamos entrar. E Fallujah foi… Fallujah foi uma das maiores massacres também da… em combate, né, hoje. Nós perdemos, de cara, mais de trezentos marines, entre mortos e feridos, entendeu? Foram mais de quatro semanas de combate intenso. E muito Al-Qaeda de todos os lugares, né, tinha Al-Qaeda de todos os lugares do mundo, tinha cara do Sudão lutando lá, tinha da Síria, tinha Jordânia, tinha… do Tchetchênia, cara do Tchetchênia, lá da Rússia, que é predominantemente… muçulmana, né, a região do Tchetchênia, que tentou se separar da Rússia. E… os caras são muito hardcore. Então, foi uma batalha muito forte. Tinham snipers pesados. Tanto que, você assistiu o filme American Sniper? Então, o começo… Chris Kyle, o começo do filme é tudo isso em Fallujah. Eu cheguei a conhecer, num briefing que nós tivemos, depois nós trabalhamos com Navy Seals, porque eles tavam dando apoio a nós Marines, né, que nós Marines limpávamos as casas, né, como você viu no filme. Quando eu falo “clear the house” é clear lá, que entrava na casa e limpava. E eles, os snipers dos Seals, estavam em varias posições da cidade. Então, a gente tinha que saber mais ou menos onde que eles estavam, né, que é pra poder fazer… poder saber, por exemplo, posso entrar nessa área que nós estamos tendo nossas… nossas costas olhadas aqui.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Dia 7 de novembro de 2004 foi o dia que nós fizemos o que a gente chama… broke the line of departure, né, quebrou a linha de saída. Recebemos o comando, já tava todo mundo em posição, e eu lembro que eu tava junto… eu era marine, com outro marine junto ao exército americano, que nós estávamos todos misturados, e… eu não vou esquecer porque nós entra… eu entrei no Humvee e nós estávamos na linha, entrando, e os engenheiros, eles explodem, né. Chama-se “breach”. O perímetro da cidade é todo minado, a gente explode tudo, que é pra causar… pra se tiver qualquer tipo de mina deles, do inimigo, é tudo explodido, que é pra gente poder entrar. Então, a cidade foi cercada. Então… isso do meu ângulo, né, do meu ângulo eu tava dentro de um Humvee do Army e a primeira coisa, depois de mais ou menos uns dez minutos, que a gente começou a invadir a cidade, nós recebemos uma ligação no rádio, você escuta na rede do rádio o… Sargeant Major, da unidade que eu tava junto, do Army, depois de trinta e três anos de serviço, tinha sido acertado na cabeça e morreu no local.

(EFEITO SONORO DE IMPACTO)

Francesco: Então, isso foi foda, porque… você tá entrando num combate e… eu não tava muito acostumado a lutar com o Army, né, eu tava sempre com os Marines. E eu e o meu amigo, nós fazíamos inteligência humana, coletânea, então, nós estamos assim, nós estivemos com eles porque eles não tinham quem suportasse eles, quem apoiasse eles.

(INSERÇÃO DE ÁUDIO: EXPLOSÕES AO LONGE)

Francesco: E… Então isso, pra nós, foi ruim porque… nós ficamos com medo de que causasse uma desestruturação na… na moral deles, porque eles acabaram de perder o cara mais antigo do grupo deles. Acabaram, assim, no momento, saiu pela… pela… falou, (efeito de rádio) “Sargeant Major just got shot, he’s dead!

(INSERÇÃO DE ÁUDIO DE EXPLOSÕES, SEGUIDA DE EFEITO SONORO DE IMPACTO)

Francesco: Então falei, “puta merda!” Aí… entrou.

(INSERÇÃO DE ÁUDIO: MAIS EXPLOSÕES)

Francesco: Isso foi à noite, começou meia noite. E você via a cidade inteira iluminada, né, Fallujah inteira de… artilharia, a gente mandando artilharia, air

(INSERÇÃO DE ÁUDIO: TIROS E EXPLOSÕES)

Francesco: O cheiro, é… o cheiro, até hoje. Cheiro de… pra mim, é um cheiro de combustível de helicóptero e combustível de tanque. É um cheiro distinto, que tava sempre no ar. E isso, até hoje, qualquer lugar que eu sinto, se eu tô passando na base, assim e eu sinto, se eu tô passando lá perto do airfield e tem um helicóptero levantando voo, alguma coisa, e eu sinto aquele cheiro, imediatamente vêm todas essas imagens na minha cabeça, é uma coisa inacreditável. Tanto isso como operações no Afeganistão. É… as imagens me traziam assim, um momento assim de, que nem eu falei, surrealista, eu ficava imaginando, meu, todos esses anos, todo esse treinamento tá aqui, ó. E eu na época já falava, essa batalha vai ser uma batalha histórica.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Imagine… imagine, é, fogos de artifícios, final de ano no Brasil, mas os mais fortes que você possa imaginar.

(INSERÇÃO DE ÁUDIO: TIROS E EXPLOSÕES)

Francesco: Imagine aquilo, só que… é… com uma iluminação, sem sacanagem, pelo menos umas cem a cento e cinquenta vezes mais forte, e com explosões, é… que… você até à noite chega a ver a fumaça, a intensidade é tão grande que o que sobe pro ar, mesmo que seja a noite, com a iluminação da… do fogo, né, do bombardeio, você vê a poeira subindo. À noite. E é uma intensidade assim, ah, enorme, porque você vê… assim, a cidade, onde a gente tava, a gente tava numa parte mais alta da cidade, da parte do perímetro da cidade. Então, você vê assim, basicamente assim, imagine uma… se você vai pra São Paulo e você olha assim, do Pico do Jaraguá, né, todas aquelas luzes. Mas imagine você ver todas aquelas luzes, bem menos, mas tudo um monte de flash, com toda essa intensidade que eu descrevi e com poeira subindo que você dá pra ver à noite, e com aquele cheiro de gasolina de… dos helicópteros, dos aviões passando. Aviões passando é uma coisa que não dá pra descrever, meu, (efeitos de gritos, aviões voando, tiros e explosões no fundo) e é uma coisa, assim, que te dá uma segurança enorme. No apoio aéreo, quando passa F-16, F-18, e solta altas bombas, porque te dá uma segurança de… Meu, a gente pode ir avançando agora, porque…é uma… chama-se “close air”, é… close… “close air support”, que te dá uma segurança, uma… não só segurança, mas te dá um pique de você ir pra cima, sabe. Porque quando você vê tudo isso acontecendo, por exemplo, uma pessoa que nem eu, eu não tô querendo recuar, eu tô querendo ir pra cima. Então, quanto mais eu via esses flashes… e são flashes, assim, enormes, porque eu sei o que tá atingindo, eu sei que tipo de arma que tá pegando ali naquela região… então, você imagina uma cidade do topo… do todo do Pico do Jaraguá, uma sessão, né, uma cidade lá não é grande, pegamos uma cidade assim do tamanho de Perus, Franco da Rocha, em São Paulo. Santo André… E, meu, vários flashes em todos os cantos da cidade, tremores muito grandes. A terra… a terra balança, né, a terra balança (ao fundo, ouve-se vozes de comando e explosões, tanques passando e soldados gritando). Os impactos são tão fortes que… e uma das coisas que eu escutei no rádio que o general passou pra nós, o general que tava em comando, ele falou, “meu, a partir de agora, tudo que vocês verem que se mexer é pra matar”.

Ivan: O que passou na sua cabeça quando você ouviu o general falando que se mexer é pra matar?

Francesco: Ah… eu… foi a melhor ordem que eu escutei na minha vida (ele ri).

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Porque o que eles… o que o pessoal em Fallujah tava fazendo, sob o comando de Zarqawi, Abu Musab al-Zarqawi, ah, foi justamente o que o al-Baghdadi hoje faz, que era o braço direito de Zarqawi, que é o comandante, o líder do ISIS, do ISIL. É, em Fallujah, você via na… nos satélites, né, nas imagens que nós pegamos, você via execuções nas ruas, todo dia. Decapitação. Entendeu? O que você viu no filme, ali, do American Sniper, que quando aquele cara pega aquela criança, pega o pai e o butcher, né? E vai o açougueiro lá e vai botar, a…como é que chama? A furadeira na cabeça do cara, porque ele tinha, né, conversado com a gente, tudo. Aí, a gente via aquilo lá pela… pelas imagens de satélite, meu. Então, era uma coisa que nós távamos que o cara tava aprontando com quem praticamente poderia ter algum relacionamento, não só conosco, mas com o governo iraquiano, entendeu? Tava execuções, execuções em massas na rua. Então, quando essa ordem chegou, meu, é… e nós sabíamos quem ficou lá dentro eram hardcore diehard Al-Qaeda. O cara que ia, tava pronto pra morrer, porque morrer lutando pelo islã – islã… islamismo… é uma, é um martírio… você vira um mártir, né, é uma… não um martírio, é uma honra. Então, quem tava ali era… E tem outra. Isso… (risos) Tem mais um detalhe, isso, sabe quando aconteceu? Na época do Ramadã. E, de acordo com o distorcido islã que eles pregam, se, na época do Ramadã, você matar um infiel, né, um americano, por exemplo, equivale a 100 que você mataria. Então, eles, na época do Ramadã, se você conseguir lutar, matar ou morrer pelo islã, é uma glória maior do que você simplesmente morrer pelo islã numa outra época qualquer.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Mas, não tinha medo de, de repente, matar algum civil que, por algum motivo, ainda tava lá? Não conseguiu se deslocar, algum homem, alguma coisa assim?

Francesco: Na… na verdade, a esse ponto que chegou, se eles… tanto que nós encontramos 20, né. Encontramos 20 que tavam sendo torturados e iam ser executados. Mas… Não. Num… num passava isso pela nossa cabeça, porque nós sabíamos que isso era chances pequenas, número 1. Número 2, se existisse alguém que, na verdade, tínhamos conversado com alguém, existisse alguém que estava inocente ali, é porque estava capturado pelo Al-Qaeda e ia ser executado de qualquer forma. Porque nós fizemos uma campanha de sete meses, né. E nós tínhamos visualização aérea, de satélite, tudo, 24h por dia, das pessoas saindo, né. Então, não tinha mais mulher, não tinha mais criança. As pessoas, as pessoas… é… fugiram de Fallujah. Quem ficou lá dentro, quem tava monitorando todos os chekpoints, né, os pontos de entrada e saída, era o Al-Qaeda. E nós víamos eles nítidos, com arma, com roupa tradicional preta, eles deixavam as pessoas ir embora, mulher e criança. Alguns homens eles não deixavam. Mas mulher e criança eles deixavam ir embora. E eles tavam prontos pra batalhar. Ah, uma das melhores concentrações de lutadores do Al-Qaeda tava concentrado em Fallujah. Entendeu? Então, as chances de, de, de repente… nós capturamos pessoas também, nós só… não só matamos porque simplesmente se mexia. Nós chegamos a capturar. Eu lembro eu interrogando um cara, 4 ou 5 que nós pegamos, que se renderam, nós pegamos. Ah, mas, é… é difícil, ao ponto que chegou a campanha, os sete meses de campanha, quando chegou no momento da invasão, que foi anunciado o dia que nós íamos pra lá, e quando ia… Só nós sabíamos que era secreto, obviamente. Quando nós nos deslocamos pra começar, é difícil você pensar nisso, porque são sete meses de campanha muito grande e nós víamos muita gente saindo de lá. Quer dizer, é… é quase impossível. É a mesma coisa que falar para você… se você falar pra mim, “ó, você vai entrar naquele palheiro de… tem um palheiro ali no silo e vai ter algumas agulhas no chão, cuidado para você não pisar nelas”. Porra! Num dá (risos). Se a maioria foi removida, é… é muita, muito azar se eu pisar em uma delas, né? Mas tem a chance, tem a chance.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: E mesmo assim, ao mesmo tempo, eu pensava, “meu, nós tamo lutando com cara que… que são… estão usando guerrilheira”, né, princípios de guerrilheira, de guerrilha. E mesmo assim, com todo esse nosso arsenal, nós vamos ter problema aqui. E nós tivemo. Nós tivemos problemas, né. Nós perdemos várias pessoas, comparado à potência que nós temos com o que eles têm, era pra ser uma disseminação total, né. Mas, pra você ver como o princípio de guerrilha é uma coisa forte, olha.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: E nós fizemos assim, durante à noite, artilharia, ataque aéreo. Aí, chegava o dia de manhã, nós entrávamos com infantaria e iam lutando. Por quê? Porque a gente amaciava a cidade inteira com ataque de artilharia e ataque aéreo, pra, no dia seguinte, poder minimizar, né, é… ou encarar esses caras, porque esses caras, a vantagem que eles tinham é que eles tiveram sete meses pra preparar a cidade, tanto que as casas tinham buracos nas paredes de uma casa para outra, de onde eles corriam de uma casa pra outra, entendeu? Eles tinham rotas de escapatória tudo, que a gente não sabia. E eles estavam escondidos em lugares que eles tinham criado. E nós tínhamos que invadir casa por casa. Então, pra nós, nós tínhamos a desvantagem de não conhecer o… a arquitetura do local, e eles já estarem lá há mais de sete meses preparando pra isso.

Ivan: Tipo um labirinto, assim, na cidade?

Francesco: É um labirinto, exatamente, é exatamente um labirinto. Então, nós perdemos muita gente por causa disso. Porque, às vezes cê entrava numa casa e a casa estava rigged. Rigged é quando tá cheio de explosivo. Então, você abre uma porta, detona a casa inteira.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Nós capturamos, capturamos não, resgatamos 20 caras que tavam sendo prontos pra serem executados pelo Al-Qaeda, que tinham sido torturados, iraquianos. Nós entramos numa casa… (suspiro). Sorte que nós bombardeamos um local, acertou a casa do lado, e causou um pânico grande. E os caras do Al-Qaeda tentaram sair pra combater esses caras que tavam amarrados. Aí, nós chegamos, esses caras do Al-Qaeda escaparam, nós encontramos esses caras, tinham sido torturado e estavam prontos para ser executado no dia seguinte. Então, eles estavam só de cueca e todos, eh, chicoteados nas costas. Torturados mesmo. E, então, nós conseguimos resgatar esses caras e tratar deles, tudo. Lembro isso aí nitidamente, foi, foi uma grande coisa pra inteligência humana nossa é muito grande, né. Ajudar a pegar essas pessoas, porque eles passam a ser fontes de informação de tudo o que viram, quem era, sotaque, quem que tava falando. Porque é muito importante identificar, tinha tanta gente, de tanto lugar, com sotaque árabe. Através do sotaque, eles sabiam se o cara é sírio, se o cara é iraquiano, mesmo que a língua é a mesma, mas eles sabem o sotaque, entendeu? Então, isso era muito importante pra nós.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

(INSERÇÃO DE ÁUDIO: SOM DE VEÍCULO ACELERANDO DEVAGAR, UMA VOZ AO FUNDO DIZ “WE’RE HERE, IN THE CITY OF FALLUJAH”.)

Francesco: Eu estava num Humvee com… nós estávamos passando numa rua de Humvee, né? E eu tava sentado atrás do motorista. O cara… dentro do Humvee, o cara … tem motorista, o passageiro da frente, eu atrás do motorista e outro passageiro do meu lado.

(INSERÇÃO DE ÁUDIO: SOM DE VEÍCULO ACELERANDO)

Francesco: E, de repente, nós recebemos fogo.

(INSERÇÃO DE ÁUDIO: GRITARIA EM INGLÊS E SOM DE TIROTEIO)

Francesco: Eu recebi… nós recebemos fogo do meu lado.

(INSERÇÃO DE ÁUDIO: SOM DE TIROTEIO)

Francesco: Do lado do motorista, que eu tava atrás, eu e o motorista. O motorista parou e conseguiu sair. Porque uma das primeiras coisas que você faz é desmount. Quando você recebe fogo, a primeira coisa… que se você ficar dentro do Humvee, você vira um sitting duck, né? (vozes em inglês ao fundo) Um pato sentado ali pra ser acertado. Então, eu… eu não consegui sair, cara. Porque o fogo tava muito intenso, o motorista conseguiu sair, os caras do lado direito automaticamente saíram fácil. E todos correram pro lado direito do Humvee, né? E eles começaram a abrir fogo de volta. E os outros Humvees atrás também.

(INSERÇÃO DE ÁUDIO: GRITARIA EM INGLÊS E SOM DE TIROTEIO)

Francesco: E… o meu medo, ali, naquele momento, eu falei, “meu, se eu tomar um RPG agora, já era.

(EFEITO SONORO ALUSIVO A SUSPENSE)

Francesco: Lança mísseis de fabricação russa, bem típico de… sempre brinco que… (risos) é o estereótipo do terrorista segurando um RPG, né?

(EFEITO SONORO ALUSIVO A SUSPENSE)

Francesco: Eu tava, eu tava, eu tava esperando o impacto de um RPG. Falei, meu… Porque RPG é uma coisa, assim, comum, lá na… em Fallujah, no Iraque. É uma coisa, assim, é… como, sabe, encontrar água. RPG é a arma número 1 deles, de opção. E, normalmente, eles começam… Uma tática deles, eles começam firefight pequeno (som de tiroteio ao fundo). Eu falo pequeno assim, bala pra cima, pra trás, pa pa pa. E aí, aparece alguém com um RPG pronto pra… porque você começa a se distrair na luta, se proteger, e vem alguém com um RPG de algum canto (som de explosão), entendeu?

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: E naquela hora, eu lembro perfeitamente que o meu melhor amigo saiu do lado direito e ficou, “meu…” Ele falava pra mim assim, “fica aí, fica aí, fica aí, fica aí, fica aí!” E ele metendo bala. E eu falava, “meu, RPG man, RPG man, I’m gonna fucking get hit by RPG!” ele falou, “não, fica tranquilo, fica tranquilo!” E ele tava tentando me acalmar, e eu só tava esperando o impacto, meu.

(SOM DE EXPLOSÃO SEGUIDO DE EFEITO SONORO DE PULSAÇÃO)

Francesco: Foi o único… Única vez que eu mais fiquei com medo foi justamente essa vez, em Fallujah. Eu… O que passou pela minha cabeça era receber o impacto. Aí, eu (risos) ficava… A viagem era tão grande que eu imaginava o impacto, quais seriam as possibilidades da capacidade do RPG de explodir e eu sobreviver. Eu comecei a… eu comecei a viajar na… nas partes técnicas do RPG. Tudo que era de RPG que eu tinha aprendido de RPG começou a passar pela minha cabeça. Quais… onde vai ser o impacto maior, onde que eu posso virar, entendeu? Aí, você começa a viajar nisso. Pra se proteger, né. Eu acho que isso é autodefesa do corpo, né. Então, eu… da mente. Aí, eu falei assim, meu, eu tô do lado esquerdo, se o RPG pegar na frente, pô, vai dar uma puta duma explosão, ainda eu tenho chance. Mas, se o RPG pegar embaixo de mim aqui, já era, porque vai explodir pra cima. Eu vou explodir pra cima, não tem… Nossa! Dentro dum Humvee, eu sou grande também. Dentro dum Humvee, eu que nem uma sardinha, entendeu? Aí, eu falei, “meu, se pegar um RPG aqui…” aí, eu fiquei pensando também na hora. Tudo isso passou na minha cabeça. Se eu tomar um RPG agora, eu vou morrer sem ter a chance de lutar. Eu prefiro lutar e morrer, do que morrer e não ter a chance de lutar. Tudo isso passa na sua cabeça, mano, pelo menos na minha passou.

Ivan: E chegou a pensar em família nessa hora, também?

Francesco: Não.

Ivan: Não.

Francesco: Não. As meninas, não pensei nada. Eu só tava pensando o impacto, a falta de eu poder lutar de volta e, de repente, matar um e ser morto. E eu falei, meu, vou morrer aqui como um sitting duck, aí vai ser foda (risos).

Ivan: Mais uma questão de… de orgulho mesmo, assim, eu diria, então?

Francesco: Sim, sim, sim. De orgulho, posso falar de orgulho, porque uma coisa é você morrer em combate, lutando. Outra coisa é você simplesmente ser um alvo, né. Eu era um alvo. Era um alvo que eu não podia reagir em nada. Tava tudo, tava com tudo na mão, ali, a minha arma, tudo, tudo pronto, mas não podia nem abrir a janela.

Ivan: Mas você sentia, sentiria vergonha se isso acontecesse?

Francesco: Não vergonha, mas eu me sentiria impotente, né. E você, como treinado pra… nós marines somos… nós marines somos treinados pra várias coisas dentro dos Marines, certo? Inteligência, infantaria, tudo. Mas existe um ditado nos Marines que é o seguinte, “marines são treinados para matar”. Ponto. Então, obviamente, porque marines são treinados para matar, e você se sentir como sitting duck… É, me sinto completamente uma… olhando pra trás, agora, eu pensaria, não é o jeito que eu queria morrer (risos). Preferia… eu preferia morrer tomando bala de alguém que teve uma oportunidade melhor e uma mira melhor, mas que eu tava lutando por mim mesmo do que tá sentado num lugar, sem poder usar qualquer tipo de defesa que eu tenho.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Uma imagem que eu nunca tiro da minha cabeça é… nós tínhamos um centro, dentro de Fallujah, que era um centro médico, né. Que, depois que nós invadimos uma certa área, você vai montando postos médicos, que chamam-se, eh, field medical… and… (ele hesita) You knowis called field medical. Ou seja, meu, são centros de tendas, né, acampamentos, tudo assim, é… médicos do Army, né? Super, com maquinário e tudo. Porque, meu, não tem tempo de… não tem tempo de tirar gente dali que tá com perna explodida, com tiro no peito, de chamar o helicóptero. Tem que ser tudo feito ali. Chama-se field medical. E eu lembro um cara, meu, eu tava lá no centro médico, porque nós tínhamos passado por ali, e tava chegando um cara na maca, e você vê que ele… eu lembro, eu lembro perfeitamente, assim, dá… os caras correndo e ele dentro da maca, ele na maca e ele com a perna pra fora, sem farda, né. Mas balançando, assim, numa forma sem vida, entendeu? Então, naquele momento, assim… quer dizer, era, passou a ser mais um, porque a hora que isso aconteceu, já tinha visto vários… É, já tinha escutado de vários e vários, vários negos sendo evacuados. Mas aquela imagem, assim, basicamente, que vem na minha cabeça e nunca saiu, e que, coincidentemente, é, tem a ver com a sua pergunta de sentir sublime, é o fato de que na minha cabeça, na hora passou assim, “puta, podia, pode ser eu, poderia ser eu”. E a… do jeito que a perna dele tava balançando pra fora da maca, que o pessoal tava correndo com ele, é, sem vida, né? Já tava sem vida. Sabe, você fala assim, “pô, o cara já tá lifeless”, né. Tipo, num tem mais vida. Não tem… Pode ser que ele tava inconsciente, mas não tem mais vida. E um dos Chaplains, né, do Army. Eh, Chaplain, eh, são os caras da parte religiosa, né, que vai dar o último… como é que chama? The last rights, o último… extrema unção. Então, isso aí entrava direto, meu. Chegou um ponto que era, puta que pariu, era muito, assim, coisa comum, como se você tivesse entrando num restaurante e saindo, entendeu? Para você, você entrava, passava, pegava, às vezes você levava um. Eu ajudei a levar alguns pra lá, não pra receber extrema unção, mas ferido. E deixava o cara lá dentro e tava lá o Chaplain, lá já com um ou outro. Eu lembro… eu lembro o Chaplain, meu, o Chaplain, chegou ao ponto do cara tá com um tiro na cabeça, e ele já não tava… já tava inconsciente, dando extrema unção pra ele, com o dedo no… o dedo no crânio dele, entendeu? Pra segurar o sangue, pra que ele pudesse ainda dar o… the last rights, né, a extrema unção, porque já não tinha mais nada pra fazer. Então, são só imagens que a gente tem na cabeça, de, tipo assim, sublimes. Exatamente. Eh, você imagina nós marines somos treinados a um nível físico e psicológico extremamente forte, mas, a qualquer momento, naquela posição, naquele momento, a gente podia tá, assim, acaba, né? Acaba, a luz apaga e acabou. E, então, eu acho que, da sua pergunta, o momento sublime são esses assim, de… vendo que vários… E tinha caras ali de forças especiais, os Marines, Recon, né? Reconnaissance. Ah, nós, eu fiz parte Reconnaissance, nós somos altamente físico, a parte física treinada, assim, de super-herói, super… Tem que tá em cima de tudo, tem que tá pronto, tem que tá em forma total. Mas nenhum de nós somos invencíveis, né? Mas isso… isso é interessante que (pigarro), é, passa, né, pela cabeça no momento, mas você não fica lembrando até a época do… até quando vem o pós-guerra (risos). Aí, cê nunca sabe quando é que é.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Você… tem ideia de quantas pessoas você matou?

Francesco: Não tenho, é difícil. É difícil, é diferente de… (pigarro) Ah, para nós, é diferente de você ser um sniper, porque um sniper você pode confirmar através de… Um sniper tem confirmed kills e não confirmed kills. Confirmed kills é quando você acerta alguém que você já tá em busca e tá pronto e já tá autorizado, ou você ter a própria discrepância sua de matar, que nem você viu no filme, lá, o moleque pegou o RPG, ia mandar nos caras e ele tava pronto pra puxar o gatilho e não tinha… ele tem simplesmente que proteger as tropas. Ah, mas um confirmed kill, você sabe, porque tem tropas suas ao lado, entendeu? Então, quando você tem um confirmed kill, você acerta e você já passa o rádio que você acertou tal pessoa, em tal posição, tantas… tantos metros de distância. E as tropas vão lá e, “confirmed!” É, tá confirmado. Bom, então, você vai marcando ali quando você sabe. E o Chris Kyle, por exemplo, ele não… ele teve o maior número de confirmed kills, né? Mais de 160 confirmed kills. Mas, ah, na realidade ele teve muito mais de 300, porque mais da metade do confirmed kills que ele teve não foi confirmado, entendeu? Não, pra nós é diferente, pra nós você tá num firefight, você tá num combate, você tá um cara mandando bala de um lado, você mandando bala do outro. Às vezes, você sabe que você acertou alguém, o seu amigo acertou alguém ou o seu amigo vê que você acertou alguém, mas a intensidade da luta é constante, entendeu? Na hora que você vai fazer o que chama-se BDA, BDA é Battle Damage Assessment, avaliação de danos da batalha, né. Nós temos que fazer isso. Então, nós vamos lá e pegamos os corpos do inimigo também, coloca no body bag, enterra, né, manda pro necrotério lá, depois enterra. Ah, tudo isso nós fazemos também. Então, você tem uma noção, porque se você tá atirando naquela direção, você tem uma noção de quantos caras morreu, mas pra confirmar quantos, não sei.

Ivan: Uhum. Mas, é… você já tinha… Eu vou te fazer uma pergunta, pode ser meio incômoda. Não tô querendo dizer nada, tá, mas é só pra ter certeza. Você  já tinha matado alguém antes?

Francesco: Não. Fallujah foi a primeira vez.

Ivan: Foi a primeira vez. Você…

 

Francesco: É.

 

Ivan: Você lembra da primeira morte?

Francesco: Foi uma dessas de firefight.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O que mais me espanta num relato de um soldado como o Francesco é justamente como é uma realidade tão distante da minha. A gente imagina que matar alguém deveria ser algo extremamente chocante, especialmente na primeira vez, que você lembraria de todos os detalhes, se chocaria com isso, sentiria culpa. Mas a realidade é que num campo de batalha, num cenário de guerra, as coisas mudam de figura. Por isso não é incomum não lembrar das mortes que você foi responsável. Além disso, eles não estavam lutando contra qualquer um. Estavam lutando contra a Al-Qaeda iraquiana, base do que hoje é o auto intitulado Estado Islâmico, cujas ações terroristas chocam o mundo, especialmente nos dias de hoje. Por sinal, é sabido que o próprio Bin Laden divergia das ações de Zarqawi, especialmente as decapitações promovidas contra muçulmanos em praça pública. Ainda assim, é impossível não imaginar que após ter matado alguém numa guerra, você não ficaria pensando sobre isso quando fosse dormir à noite. E mais uma vez, a realidade é mais complexa do que imaginamos.

Ivan: Pergunto isso mais pela questão mesmo de… Porque eu sei que depois da guerra, é outra coisa, né. Mas eu imagino que no meio da ação, mesmo quando você vai dormir, você não consegue nunca relaxar 100%.

Francesco: Não, não. O… Na realidade, você relaxa 100%. O… Em relação a depois, que nós vamos conversar, acho que no pós-guerra e tudo. O pós-guerra é uma coisa que não, ele não incide até, estatisticamente, entre um mês a seis meses depois que você sai do ambiente que você já está acostumado. Lembre-se que todos esses ambientes de combate passam a ser a sua realidade. Quando você está dentro da sua realidade, na realidade, esta é sua realidade, é o que te torna forte e que te faz sentir com vontade de querer voltar. Quando, todas às vezes que eu tive o pós-guerra, que um dia nós vamos conversar, ou ainda hoje, ah… você não vê a hora de voltar praquele ambiente, porque é o seu ambiente de segurança.

Ivan: É como naquele filme, Guerra ao Terror.

Francesco: Exato. Ou o próprio American Sniper, né, O Sniper Americano, que você vê que o Chris Kyle tá sentado… Meu, aquilo que aconteceu com ele… Somos, tem vários Chris Kyle no mundo, né. Hoje, aqui nos Estados Unidos, inclusive eu, em relação a isso. E ele foi simplesmente feito um filme. Mas aquele de sentar na televisão e você não tá sabendo o que tá rolando em volta de você, meu, várias vezes aconteceu comigo. Pós-guerra te faz isso. Te isola no mundo, onde você só quer voltar na sua profissão. Você quer voltar naquilo, porque você tá pensando, você não tá pensando mais em filho, você não tá pensando mais em mulher. Você tá pensando nos seus amigos, você tá pensando na missão, você tá pensando nos caras que você ainda tem que pegar porque você sabe que tão lá, fazendo coisa ABC e D, e tem outros marines lá, que vão ter a vida deles arriscadas. Meu, é outro mundo.

Ivan (narração): O que estamos chamando de pós-guerra aqui refere-se ao chamado PTSD, post traumatic stress disorder, estresse pós-traumático. Uma das enfermidades mais comuns entre soldados que retornam da guerra. Todas às vezes que o Francesco voltou de campanha, ele passou por isso. Sempre agravando o quadro anterior. E foram três vezes quando voltou para casa. Em 2005, 2007 e 2012. Da última, diferente das outras vezes em que esteve no Iraque, ele havia voltado da sua primeira campanha no Afeganistão.

(EFEITO SONORO: TURBINA DE AVIÃO)

Francesco: Quando eu cheguei no Afeganistão, por ter lido tanto, a minha vida inteira, sobre Alexandre, o Grande, e as campanhas que ele fez. O Alexandre, o Grande passou pelo Afeganistão, tanto que ele descreve um grupo de guerreiros que era basicamente impossível de combater. Ele nunca tinha perdido nenhuma batalha, mas ele também chegou no stalemate, né, o stalemate, um… um empate. Ninguém ia pra frente, ninguém ia pra trás. Contra um grupo de guerreiros do Afeganistão que hoje, acredito, que são os descendentes, né, dos Pashtuns. Pashtuns é a grande maioria étnica do Afeganistão, que são os Pashtuns, que é o Talibã, entendeu? Então, cara, quando eu cheguei no Afeganistão pela primeira vez, o impacto que eu tive foi completamente diferente do que eu tive no Iraque. Eu juro por qualquer coisa nesse mundo. Eu pisei no Afeganistão, cara, e eu, no Afeganistão, eu iria e passaria 10 anos e não ficaria 6 meses no Iraque de novo. O Iraque eu não gostei, não era uma coisa que me atraía, a cultura. Mas, meu, no Afeganistão, eu… quando eu passei de avião por cima ali do Hindukush, aquelas montanhas, eu imaginei as histórias que eu li, de Alexandre, o Grande atravessando aquelas montanhas a cavalo, com as tropas dele, cara, é uma coisa que hoje, com toda a modernidade nossa, é difícil de fazer. Eu ficava imaginando com… com neve, com tudo, eu passei várias vezes ali da área do sul do Afeganistão, viajei pra Kabul, na área de… da área de Kabul, né, que ia lá no… interrogar lá num presídio grande lá nosso, onde tinha os maiores detentos lá do Talibã. Cara, eu… quando a primeira vez que eu pisei, eu vi essas imagens e eu pisei no Afeganistão, eu lembrei dessas histórias… Cara, eu não queria sair do Afeganistão, eu senti uma energia completamente diferente, completamente diferente.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: É uma energia que parecia que nada ali, juro, juro pelas minhas filhas. Primeira vez que eu pisei no Afeganistão, é como se eu sentisse uma energia que nada ali era moderno. Que eu tava pisando pela primeira vez naquele solo, como se eu pertencesse a um… a um exército da Antiguidade e que ali no Afeganistão eu não tinha… eu nunca tive problema de combate nenhum, no Iraque, nada. Eu tava na operação em Fallujah, uma das maiores operações da história moderna, foi a Battle for Fallujah, eu tava lá no meio. Nunca tive problema nenhum. Mas no Afeganistão, eu tinha menos medo de tudo, meu. É como se eu já tivesse tido naquele local e conhecesse tudo ali. O deserto do Afeganistão. E eu sentava sempre na cauda do helicóptero pra tirar foto do… a gente ia nas missões, pra tirar foto da geografia, das montanhas, né. Meu, as montanhas do Afeganistão, é uma coisa que me fascinam total. Então, é uma energia como eu já tivesse tido naquele local, como se já tivesse… eu sempre andei no Afeganistão como tivesse muita dominância, entendeu, do terreno. Nunca tive problema nenhum de, meu, de pisar em qualquer lugar, de… É como se eu tivesse tido, estado ali já várias vezes. E toda vez que eu voltei pro Afeganistão, eu voltava com confiança maior.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Nesses relatos do Francesco, nós pudemos ter uma visão do que foi a guerra do Iraque de dentro, através dos olhos de um soldado americano. Contudo, há uma parte do seu trabalho que não abordamos ainda. Que ele desempenhou tanto no Iraque quanto no Afeganistão. Além da infantaria, ele operava também no setor de inteligência, buscando informações atrás dos cabeças de membros da Al-Qaeda e do Talibã. Nessas missões, sua função era de interrogador.

Francesco: Por exemplo, ah… é comum quando eu vou e converso com pessoas, especialmente do Brasil, de outros lugares e eu falo, né, a pessoa sabe que eu sou interrogador e, “poxa, mas então aquela tortura?”. Não existe tortura. Ah, existiu? Existiu. Existiu métodos. Mas não é tortura, mas existiram métodos para conseguir informações? Lógico que existiram. Mas porque nós conseguimos chegar a conclusão de que quando você usa certos métodos de dor, o… de tortura, que pode ser chamado, você sabe que pessoa vai falar aquilo que você precisa escutar. E que necessariamente não é verdade, não é preciso a informação. Quando você entra na cabeça da pessoa, com o tempo, psicologicamente, você recebe muito mais informação válida e quase 100% correta, do que se você tentar machucar alguém.

 

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): No próximo episódio, como era a rotina de Francesco como interrogador de guerra? Quais são as ações que são permitidas para um soldado obter informações de um prisioneiro e como isso é afetado pela política e mídia internacional? Aqui, no Projeto Humanos, “O Coração do Mundo”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Se você gosta de nosso trabalho e gostaria que ele continuasse, você pode contribuir através do link na postagem. Agradecimentos especiais a Francesco Tessitore, que me concedeu uma entrevista de 5 horas para que esse episódio fosse feito. Nos vemos no próximo programa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição por Sidney Andrade, Mariana Diello, Matheus Souza, Zé Roberto, Eduarda Severo. Edição por Sidney Andrade. Revisão por: Zé Roberto