7 – Uma Primavera no Egito
19 de abril de 2016No sétimo episódio da série O Coração do Mundo, acompanhamos a história do pesquisador Aldo Cordeiro Sauda durante aquele ano de 2011, onde o mundo árabe parecia estar entrando em uma nova era. Como se deu a revolução no Egito? O que era a Praça Tahrir? Onde ela acertou? Onde ela errou? E como foi que a Síria começou a entrar em colapso?
Arte da capa por Amanda Menezes
Crédito da Foto: Ali Mustafa.
Lettering por Luiz Amorim
Links
Matéria na Time sobre Ali Mustafa
Remembering Ali Mustafa
Ali Mustafa no mural dos mártires da rua Mohamed Mahmoud
Transcrição
Voz: Foi quando eu fui… fotografado para homem do ano pro… pra revista Time.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Se você estava com a televisão ou o computador ligados em 2011, você deve lembrar das diversas manifestações populares que ocorreram pelo Oriente Médio e o continente africano desde o início daquele ano. O uso de redes sociais para organizações populares em países ditatoriais trazia para o ocidente ares de que as coisas finalmente estariam mudando naquelas regiões do mundo. Era a chamada Primavera Árabe.
(INÍCIO DE MONTAGEM DE CLIPES DE ÁUDIO: MATÉRIAS TELEJORNALÍSTICAS)
Fátima Bernardes: A onda de protestos que balança o governo de Gaddafi fez o mesmo com outros ditadores na África e no Oriente Médio, e também no Golfo Pérsico. E dois deles já tiveram que abandonar seus palácios.
(EFEITO SONORO: SOM DE CLIQUE)
Elaine Bast: O primeiro a cair foi o presidente da Tunísia, Zine al-Abidine Ben Ali.
(EFEITO SONORO: SOM DE CLIQUE)
Elaine Bast: O rei Abdullah II da Jordânia está no poder desde 1999, mas é de uma dinastia que governa o país há 65 anos.
(EFEITO SONORO: SOM DE CLIQUE)
Elaine Bast: O reinado no Bahrain vem do século XVIII. O rei Hamad Bin Isa al-Khalifa tem reprimido com violência as manifestações populares.
(EFEITO SONORO: SOM DE CLIQUE)
Elaine Bast: Outro reinado na mira dos manifestantes é o de Mohammed VI, do Marrocos.
(EFEITO SONORO: SOM DE CLIQUE)
Elaine Bast: O presidente do Iêmen, Ali Abdullah Saleh, no poder há 32 anos, só admite sair em 2013.
(EFEITO SONORO: SOM DE CLIQUE)
Elaine Bast: Os Estados Unidos sempre se mostraram defensores da democracia, mas há DÉCADAS tem como aliados países governados por ditadores e monarcas que comandam com mãos de ferro, mas que oferecem certa estabilidade numa região considerada estratégica pra Casa Branca.
(EFEITO SONORO: SOM DE CLIQUE)
Fátima Bernardes: Também no Irã, as manifestações têm sido reprimidas com violência.
(FIM DA MONTAGEM)
Ivan (narração): O marco simbólico inicial da Primavera Árabe se deu na Tunísia, quando, em dezembro de 2010, um jovem se ateou em fogo como forma de protesto contra o governo do país. Revoltas populares surgiram a partir deste ato e vários países aproveitaram o momento para colocar suas populações revoltadas nas ruas. Em janeiro de 2011, grandes massas populares invadiram as ruas da Argélia, Jordânia e Omã. E no final daquele mês de janeiro, era a vez do Egito. Em pouco mais de duas semanas, o povo teve uma resposta.
(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: MATÉRIA TELEJORNALÍSTICA)
William Bonner: Olá, boa tarde. Pelo horário de Brasília, são 14h55, e o Oriente Médio está vivendo hoje um dia histórico. O presidente do Egito, Hosni Mubarak, renunciou, depois de 30 anos no poder.
(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)
Ivan (narração): Nosso objetivo nesta temporada é chegarmos a uma melhor compreensão do que está acontecendo na Síria atualmente, assim como toda a crise de refugiados e outras consequências. E se o mundo mudou depois do 11 de setembro de 2001, especialmente após a invasão ao Iraque pelos Estados Unidos em 2003, a Primavera Árabe é, talvez, o segundo ponto mais importante nessa história. De todos os países que foram tocados pelo espírito revolucionário de 2011, o Egito é provavelmente o que mais chamou atenção da nossa imprensa ocidental, especialmente tendo em vista que as mudanças lá foram muito rápidas. E neste programa, olharemos de dentro como estava aquele país através dos olhos de um brasileiro que a revista norte-americana Time chegou a querer colocar na capa como um dos revolucionários daquele ano.
Voz: Meu nome é Aldo Cordeiro Sauda, eu estudei relações internacionais e direito na PUC-SP, hoje tô fazendo mestrado na Unicamp em Ciência Política, estudando mais especificamente movimentos sociais. Eu tenho 28 anos, e… aos 24, err… eu fui morar no Oriente Médio, com a ideia de ficar algo em torno de 3 meses, 4 meses no Egito pra fazer uma pesquisa, na verdade, pra preparar o meu… meu mestrado e meu doutorado, como parte de uma pesquisa de campo de etnografia. Err… o que era pra ser 3 meses, acabou virando, na prática, dois anos. O que era pra ficar no Egito, acabou sendo Egito, err… Tunisia, Palestina, err… Líbano, Síria, Jordânia e Turquia.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: A ideia, quando que eu fui pro Cairo, era basicamente, err… digamos assim, aplicar um método de observador participante junto aos movimentos sociais que tavam surgindo, e também tentar puxar uma graninha enquanto jornalista, né. Eu achava que da… eu, antes de ir pro Cairo, eu me… reuni com os meus professores lá da PUC, que eram do… era um editor do… da Caros Amigos, né. E eu falei, “Olha, se eu for pro Egito ficar lá três meses e eu mandar artigos pra vocês, vocês publicam?” “Falou: não, publicamos.” Só que aí, err… hmm… aca… de que surgiu… surgiu um levante em… novembro de 2011, né, que era o… foi um… foi um levante contra a junta militar que você tinha lá, e não tinha nenhum jornalista brasileiro, então, acabei mandando muita matéria pro Estadão e pra Folha, e na época o dólar tava R$ 1,60, e… o Egito tava falido, e algo… um dólar comprava algo em torno de oito ou nove reais, que seria nove reais egípcios. Então você conseguia vender um ou dois artigos por mês, você tinha uma vida muito confortável. Então, eu acabei falando, “Vou ficar aqui até dar”, até… até onde dá. E o que era pra ser quatro meses, viraram seis, que virou depois um ano, e… nesse processo, err… eu conheci uma menina por quem eu me apaixonei e acabei me casando com ela, que era uma exilada síria, que tinha… err… fugido da ditadura Assad e tinha ido pro Egito, se esconder no Egito, tava trabalhando na ONU e a gente teve um caso de amor e acabamos… ela veio pro Brasil e depois a gente… eu decidi que eu ia voltar e morar… err… no Líbano com ela… Ela tinha uma casa no Líbano. Err… na expectativa de que, err… o governo Assad estava prestes a cair e que, depois que o governo Assad caísse, a gente ia junto pra… pra Síria.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Err… eu chego no Cairo em… tsc… em agosto, é, primeiro dia de agosto… é, July pra August. Eu passei… eu passo julho em… junho eu passo na Inglaterra, chego em agosto com a desocupação da segunda ocupação da Praça Tahrir. Então, eu chego, já tinha uma segunda ocupação, e essa segunda ocupação tava sendo derrotada.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Eu tinha um amigo que era um menino chamado Rami Jarrah. O Rami, ele tinha… o Rami tinha uma história incrível, que ele era um… um cara que tinha, acho que ele tinha dois anos a mais que eu, e tinha uma filha de três meses, quatro meses, e o Rami, ele era um cara que tinha… que viveu na Inglaterra, os pais dele, err… tiveram que fugir… err… muito, muito cedo da Síria, por conta da questão da oposição e do massacre que teve na Síria em 1982, que era o massacre de Hama… e ele foi meio criado na Inglaterra, e ele volta pra Síria e arranja um emprego na Síria de comércio exterior e passa a viver na Síria, e conhece uma mulher síria, e se casa com ela e tem um filho. E aí, bum! Estoura a revolução no Egito. E aí o Rami vai assistir, err… esse processo, err… na televisão, e vai participar… da manifestação.
Ivan (narração): As manifestações que ocorreram na Síria durante a Primavera Árabe são bem próximas das que ocorreram no Egito.
Aldo: …vai participar da primeira manifestação e vai filmar, e vai começar a fazer coisas de filme logo na primeira semana, na primeira ou na segunda semana, e ele já é logo preso, o Rami. E Rami é preso, e ele é torturado. Ele não tinha… não era um militante, não era comunista. Os pais dele eram comunistas… e ele tinha voltado pra trabalhar com comércio exterior na Síria, e aí ele foi pra uma, duas manifestações, filmou, colocou no YouTube, foi preso e torturado. E aí, err… a tortura dele foi uma tortura do começo da revolução, e logo na primeira, segunda semana, eles não matavam. Então, eles pegaram ele… err… e fizeram ele ficar de pé quarenta horas enquanto batiam e espancavam ele…
(EFEITO SONORO: TOM GRAVE DE IMPACTO)
Aldo: …e jogavam água gelada… e ficavam espancando ele, e deram alguns choques… pra assustar. Não deram… deram pra assustar. Mas, aí… err… soltaram ele. No que soltaram ele, o Rami virou um animal.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Começou a militar que nem louco, e começou a organizar os filmes que saíram das manifestações na Síria pra passar na CNN, na Al Jazeera, na BBC, e ele fazia isso por quê? Porque ele tinha um sotaque inglês perfeito.
(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: NARRAÇÃO TELEJORNALÍSTICA)
Rami: …still continues to be one of the world’s most media-repressed areas…
(FADE OUT DO CLIPE DE ÁUDIO)
Aldo: Então, ele entrou em contato, sei lá, com a BBC… aí, ele abriu o Google e apareceu um nom… uma palavra, “Alexander Page”. E aí, ele falava que aquele era o nome falso dele, Alexander Page, da Síria. E passava tudo que tinha de filme de massacre do exército, e as pessoas assistiam na Síria a Al Jazeera… que era os filmes que ele passava pra Al Jazeera na prática. E aí, um dia, ele achou que tavam perseguindo ele… bom, aí, cê pode ler a história dele no New York Times. É… o Rami, ele foge, ele tem que fugir, ele tem quatro horas pra fugir pro Cairo, vem pro Cairo, vai pras manifestações, eu conheço ele nas manifestações.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: MATÉRIA TELEJORNALÍSTICA)
Shiulie Ghosh: Egypt’s deep political divisions are again bringing demonstrators back to the streets. Tens of thousands are gathering in Tahrir Square, the focal point of the uprising that toppled the country’s last president.
(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)
Aldo: Na verdade, a Tahrir, ela é… Tahrir, ela é o quê? Tahrir é uma praça no meio do Egito por onde passam todas as principais avenidas, no centro da cidade. Então, se você bloqueia a Tahrir, a cidade para.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: É, você tinha toda essa ideia de que a Tahrir era uma comunidade de revolucionários, de lutadores, de jovens, e que os islamistas religiosos ombro a ombro com a esquerda comunista, e um lugar onde todos podiam discutir política abertamente sem ter medo, a ideia de que esse era um espaço em que você podia falar o que você achava, e de madrugada tinha noites de viola e de violão, e de arte. E aí, você tinha, na própria Tahrir, um canto em que as pessoas pintavam e faziam desenhos em homenagem à revolução. E aí, numa região central, você tinha distribuição de alimentos, em que todos recebiam comida igual, e comiam juntos, e compartilhavam o pão, né. Quer dizer, a própria ideia do companheirismo, né. Quer dizer, daqueles que dividem o pão. Era uma ideia muito forte na Tahrir, principalmente no começo da revolução. Você tinha, então, por exemplo, médicos que organizavam locais de atendimento e de serviço, digamos assim, médico pros feridos e, ao mesmo tempo, um enfrentamento constante e permanente com as tropas do exército que cercavam a praça e tentavam tomar a praça. Então, você tinha esses elementos de, digamos assim, dos germes de uma nova… de um novo Egito, ou do que se sonhava com um novo Egito, naquela praça, e nas suas fronteiras, o enfrentamento militar cotidiano com as forças da repressão. Isso… isso era uma imagem que foi muito… Que era uma imagem verdadeira, né. Quer dizer, você tinha… A Tahrir era uma coisa fenomenal, quer dizer, só quem viveu, pra se lembrar.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Digamos assim, cai o Mubarak. Cai o Mubarak em fevereiro. De fevereiro a junho há um período, mais ou menos, de lua de mel entre a juventude liberal, os islamistas, e os islamistas com o governo. Com um novo governo que surge, do Marechal Tantaui. Esse pe… E o movimento tinha muita ilusão, a juventude tinha muita ilusão no exército, de que o exército egípcio tinha de… Porque era verdade, porque o exército egípcio, de fato, derrubou o Mubarak. Mas que o exército egípcio era um aliado, e que o exército egípcio ia fazer as reformas necessárias e que o exército egípcio ia reintroduzir a democracia no país. Essa era a compreensão geral que se tinha. E essa, digamos assim, isso se corrói na vanguarda, principalmente nos setores mais avançados da vanguarda, em janeiro… Em junho, perdão! Quando o exército invade, de novo, a Tahrir e acaba com a segunda ocupação. E começa a se surgir… começa a surgir um movimento que antes tava num tom mais celebratório, ao contrário do movimento operário, né, que tava fazendo greve… Quando cai o Mubarak, tem uma explosão de greves, uma explosão alucinada de greves, os trabalhadores entram em ação, a própria burocracia sindical vai pra luta, e a juventude liberal… Esse que é o curioso, a juventude liberal, no momento que os trabalhadores mais precisavam, meio que volta as costas pros trabalhadores, porque tem profundas ilusões do exército, que o exército vai fazer as reformas e fala em estabilidade. Por exemplo, 06 de outu… 06 de abril, eles vão falar, “Não, gente, não é hora de fazer greve.” E não era porque eles eram agentes do governo ou uma burocracia encastelada, não era isso. Era porque, realmente, tinham ilusões no exército.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Essas ilusões vão se corroendo, a partir das repetidas experiências da juventude, com os enfrentamentos militares nas ruas, vai se corroendo, se corroendo, se corroendo até atingir um ponto… bom, aí, vem um massacre, em outubro, qual eu tive… Eu testemunhei, que foi o massacre de Maspiro, que foi uma das coisas mais… foi um momento, talvez, mais… Pra mim, mais chocante de quando eu tava no Cairo, né. E depois daquele massacre, que foi um massacre da minoria cristã, que o exército… Bom, o exército massacra a minoria cristã numa manifestação. É… A juventude volta a tomar a Praça Tahrir e faz uma ocupação, em novembro, que é, digamos assim, o último… último momento no qual a juventude, mais ou menos, a juventude liberal nacionalista e a esquerda colocam algo em torno de 1 milhão na Tahrir, numa tentativa de derrubar o governo, e a irmandade muçulmana trai…
(EFEITO SONORO: UM TOM DE IMPACTO)
Aldo: …trai de um jeito bizarro, num acordo com o exército. Isso, na prática, derrota o movimento.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Eu chego quando tem a segunda ocupação da Tahrir, e a segunda ocupação da Tahrir é desmobilizada pelo exército e tá começando o ramadã. Com o detalhe que o Cairo tava muito quente. Muito, muito quente. Eu fui, num tinha nem o hotel reservado. Então, eu fui, falei assim, “Me leva pra Tahrir“, a partir da Tahrir eu procuro um hotelzinho aqui do lado, o mais próximo possível do… da praça, e daí, eu começo a me virar. Aí, eu me lembro, chegar assim… O Egito é uma coisa que, é… digamos assim, existe uma cultura anticolonialista, no qual tem elementos progressivos, quando não é com você, né, que é a ideia de que roubar estrangeiros é algo meio patriótico. Enganar turistas, enganar estrangeiros é uma forma de você se vingar de 200 anos de colonialismo. O que, assim, é… é compreensível, mas muito desagradável. Porque, ah… Se você… Por isso que eu aprendi a falar árabe rápido, se você não fala árabe, ou se você não tenta falar o árabe, não tenta, ali, se passar por um local nativo, vão te roubar do momento em que você pisa naquele aeroporto até o momento em que você sai dele. E é uma coisa que é irritante. Que é irritante. Então, é… eu me lembro, assim, você chega no aeroporto, já vem um cara pegar sua mala, você não sabe muito bem, porque o cara nem te pergunta, e a primeira coisa que ele quer é o quê? Bakshish, né, que ele quer o dinheiro, né. Ele quer o cafezinho. E aí, cê tem sempre que tá dando gorjeta, cê não sabe muito bem o que tá acontecendo. O taxista quer te roubar, aí, o cara do aeroporto quer te roubar, o cara do hotel quer te roubar, aí, o cara do restaurante quer te roubar, aí, o garçom quer te roubar, o cara no mercado quer… Todo mundo quer te roubar! O esporte nacional é roubar turista. E nas ruas… Aí, isso, isso… Isso gera… Isso é um fator que gera uma irritação, mas, por sorte, meus amigos egípcios logo me ensinaram como… é… Né, então, por exemplo, algumas regras básicas que toda mãe ensina pro seu filho que se aplica para adultos no Cairo. Não converse com estranhos na rua. Por quê? Porque sempre vai vir alguém na rua e vai falar com você e você… A partir do momento que você responde, ele vai tentar te dar um golpe. Golpes dos mais diversos tipos. Por exemplo, pede informação na rua, o cara vai te dar um golpe. Vai te levar pra loja, vai tentar roubar um dinheiro de você, vai tentar… Das mais diversas formas. É uma… é… É o esporte nacional.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Aí, eu achei um… hotel. Que era um hotel que ficava… Eu nem…eu nem sabia que era tão, né… A localização que eu tinha achado. Mas era um hotel que ficava na esquina entre a Tahrir e a principal rua, e a rua que ligava a Tahrir ao Ministério do Interior, que era onde se concentrava a polícia. Então, era literalmente o centro dos embates militares que havia no Cairo. Era o centro do negócio. Que era, é…, a chamada Rua Mohamed Mahmoud, né. Sharie Mohammed Mahmoud. E… e aí, eu peguei um quarto muito pequeno, menor quarto, mais barato que tinha, tava com o dinheiro contado. E aí, eu comecei a explorar a cidade, explorar o centro, o hotel, era… era um hotel mais barato que os outros, era um hotel barato, bem barato. Só que, é… tinha… eu ia pra varanda, pra escrever, pra fazer minhas anotações e também para escrever alguns artiguinhos que eu tava mandando para a Caros Amigos. E aí, eu notei que tinham duas meninas, uma polonesa e uma alemã, já com uns quaren… trinta pra ci… Entre trinta e quarenta anos, que ficavam o dia inteiro no hotel. E eu falava, “Que coisa estranha, né, por que essas meninas tão, o que essas meninas tão fazendo aqui, né?”. E aí, toda noite, vinha um… é… elas tinham visita de homens egípcios. E aí, eu notei que era um prostíbulo clandestino.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: E é… Esses setores, os setores, digamos assim, os mais linha dura do exército, mais linha dura dos islamistas, um setor do qual vai eventualmente se deslocar em direção ao Estado Islâmico e Al-Qaeda, eles botam gente na rua, e botam muita gente na rua. E eles organizam uma manifestação de massas, em fevereiro, eu acho. Acho que, não sei se é fevereiro ou se é março, é… de demonstração de força, que é em parte pra… pra acalmar os ânimos do movimento, por parte da direção, que quer fazer acordo com os militares, em parte para que os islamistas estejam numa posição melhor para negociar com o exército. E aí, é… eles fazem uma chamada milhoneia, que é colocar 1 milhão de pessoas na rua da… na Tahrir, que é um ato que, essencialmente, só vai o movimento islâmico. Então, era aquela coisa, aquela cena, eu me lembro encontrar alguns companheiros na… na praça, que foram lá ver o que tava acontecendo, que foram disputar o movimento, que falavam, “Não, isso é Kandahar Friday”, quer dizer, a sexta-feira de Kandahar, porque… o Cairo virou, o Cairo não é assim, o Cairo virou, assim, um negócio alucinado, é… de radicais Islâmicos, né… Na Tahrir, a Tahrir, foi o primeiro momento que os radicais Islâmicos tomam a Tahrir, e que a irmandade muçulmana toma Tahrir, é… E que os setores mais radicais, muito mais radicais que a irmandade muçulmana, também fazem o mesmo, basicamente mobilizando gente do interior é… pra praça. E aí, a praça vira um negócio assim… que basicamente todas as mulheres de burca, e… é todas as mulheres de burca, dos pés a cabeça, de preto, e os homens todos com aquela, é… digamos assim, o que seria quase que um pijamão, assim, um saião, né. Era, basicamente, eram os camponeses que eles trouxeram para a cidade e os setores mais religiosos do Cairo, né…
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: E aí, é… a gente andando, né, me lembro andando nessa manifestação, e falando, “Meu deus do céu, o que é isso ?”, e eu vejo, na rua, uma menina de calça jeans e camiseta branca. E eu falei, “Puts, essa daqui tá totalmente perdida, não faz ideia da onde ela tá, né”. E com uma cineasta síria que eu conhecia das mobilizações que haviam… eu tinha muitos amigos sírios é… exilados, que ficavam… que tavam no Cairo, tinham fugido da ditadura, e que… eram meus amigos, e tinha uma senhora, que tava lá com essa menina, que claramente tava com sério… sério, perigo físico, de ser assediada e sabe-se lá o que ia acontecer com ela, porque, é… quando apareciam… ela tava, tava no entorno da Tahrir, mas tava um… tava uma loucura. Eu falei, “Meu deus do céu”, eu fui lá falar com a tia dela, “Meu deus, tira essa menina daqui, né”.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: E uma das avenidas que saem da Tahrir, que era chamada Avenida Tahrir, foi na Avenida Tahrir que eu vi a Sara pela primeira vez. E… era uma coisa que era… era uma que só… era só burca preta, e… gente gritando, “Al’iislamiat, wal’iislamia”. Que é “Islâmico, islâmico”, quer dizer, “queremos…” “queremos o estado islâmico”, né.
(EFEITO SONORO: UM TOM DE IMPACTO)
Aldo: E ali tava a Sara, de branco. Então, já era uma coisa que era curioso, porque… e de calça jeans, e… e aí… eu tava andando, tava saindo de um café, eu acho, um café com os amigos. Aí eu me deparei com ela e com a tia dela, né. Já tinha conversado algumas vezes com a tia dela, a tia dela era muito simpática. E aí, quando eu vi assim, eu fui falar, na hora eu… eu fui falar em árabe, e ela notou, acho, que meu sotaque, e respondeu em Inglês, o que obviamente facilita, né. Então, na verdade, eu fui conversar com a tia dela primeiro, né. E aí, a gente começou a conversar… e… na hora… e eu falei, “Você tá vindo de Beirute, né ?”
(VOLUME DA TRILHA SONORA DE FUNDO AUMENTA GRADUALMENTE)
Aldo: Na hora, eu falei, isso não pode ser… uma pessoa, uma pessoa que mora no Cairo, que vive o Egito, que sabia o que tava acontecendo naquela praça, jamais… jamais viria com a roupa que ela tava vestindo. E então… é… eu falei, “Não, você tá vindo de Beirute ?”, ela falou, “Sim, estou vindo de Beirute”,eu falei, “Então é, aqui não é…” aí, eu falei pra ela, “Aqui, este momento, hoje, isso daqui não é Beirute”, aí, ela falou, “É… é, eu notei, eu vi que realmente a Tahrir não é aquilo que a gente achava que era ”. Eu falei, “Não, não, não é bem assim. A Tahrir é um lugar muito bom, muito legal. É que hoje, em particular, é uma mobilização do que há de mais radical do movimento Islâmico”. Era porque ela tava vindo de Beirute, né… E Beirute, na verdade, não tem absolutamente nada a ver com o Cairo Islâmico, né, o Cairo Islâmico é… Beirute é outra coisa né, Beirute é um lugar muito mais liberal, e tudo mais. E aí, eu fui, fui falar, fui conversar, fui falar, “Sai daqui, que aqui num tem muito espaço para brincadeira”. É… e aí, a gente começou a bater papo, perguntei para ela o que que ela fazia, ela falou que estudava, estava estudando a gentrifica … é… a urbanização em Damasco, e a questão do Neoliberalismo. E aí, eu falei, “Ah, você tá estudando ? Vamo… eu quero ouvir você falar, me conta da sua pesquisa, e tal. To tentando entender melhor o que tava acontecendo na Síria”. Na época, ainda havia muita confusão, quer dizer, até hoje existe muita confusão sobre o que existe na Síria. “Então, vamo sair para jantar, e você me conta um pouco do movimento lá, e tal, porque realmente tá muito confuso”. E aí, a gente começou a conversar, e se demo bem, e aí trocamos telefone e foi assim. Fomos jantar e depois começamos a namorar.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: E aí, só que ela tava, ela também tava um pouco em estado de choque, porque na verdade, na Síria, na Síria que depois virou a Síria do Estado Islâmico, não existia nada disso, num tinha… nunca no processo, na mobilização… o movimento na Síria ele começou muito mais secular do que era o movimento no Egito. E ela tava legitimamente assustada, ela falou, “Meu Deus do céu”, me lembro de ela falar assim, “Meu Deus do céu, se a Síria virar isso daqui, a gente tá ferrado”.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Foi a primeira vez que ela tinha ido, digamos assim, pra Cairo revolucionária. Ela conhecia bem o Egito. Era muito comum, né, os sírios… os sírios, eles não têm… é um dos poucos… é, o passaporte sírio não é exatamente um passaporte que lhe abre muitas portas, né. Mas um dos poucos países no qual os sírios não precisavam de passaporte pra viajar é o Egito. Ela tinha essa tia no Egito, tinha uns tios no Egito, mas ela também estava com curiosidade de conhecer, de conhecer a Tahrir, né, quer dizer… havia uma… havia um mito em todo mundo árabe sobre o que era a Tahrir, né. A Tahrir, principalmente a chamada Tahrir dos 18 dias, que foi a Tahrir dos primeiros 18 dias da revolução egípcia. Quando o Mubarak caiu, quando teve a primeira onda, que foi uma onda muito bonita, né, que você tinha um processo incrível de autogestão. Isso era uma coisa que, que a Sara não tinha muita clareza quando ela foi lá. Mas no Egito, no centro do Cairo, você tinha um problema muito sério de assédio sexual. Que isso, segundo ela, pelo menos não tinha na Síria, mas no Egito, a mulher que andava sozinha no centro era com frequência cercada por homens e assediada de forma violenta. O assédio sexual nas ruas do Egito é um problema muito sério. E durante aqueles 18 dias, os primeiros 18 dias da revolução, a Tahrir era o único lugar, é… do Cairo, ou de todo o Egito, em que uma mulher podia andar sem ser assediada sexualmente.
(EFEITO SONORO: TONS DE IMPACTO)
Aldo: E a hora que eu notei que era um prostíbulo clandestino, no Cairo, com a irmandade muçulmana, com os grupos islâmicos radicais nas ruas. E… aí, falei, “Meu Deus do céu, vão colocar uma bomba aqui”
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: O Egito é um país tão colonizado, mas tão colonizado, que o principal centro de pesquisa, ou um dos principais centros de pesquisa lá é a Universidade Americana, que tem uma relação muito forte com a academia americana, que significava que pra mim na verdade isso também era uma sorte porque eu acabei… é, eu tinha um pessoal em Londres que me passou o contato de alguns professores. É… principalmente uma professora que era uma ativista de um dos grupos trotskistas que tinham lá. Que era uma professora da Universidade do Texas e que tava fazendo um intercâmbio acadêmico na Universidade do Cairo. E era uma ativista junto ao grupo trotskista lá, o Revolution Xsocial, que era a principal organização que tinha lá no Egito. E ela meio que, graças a Deus, ela meio que me adotou, assim, em termos de medicamentos… não, é que, por exemplo, o negócio dos medicamentos, eu me lembro, você chega no Cairo, é mais ume menos parecido… Egito é mais ou menos parecido com a índia. Você vai ter ali os seus 2 meses, não, 2 meses não, perdão, mas 1 mês de diarreia e vômito constante todos os dias.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: É, o nome dela era Jess, Jess Martin. Então, a Jess, é… me arranjou remédio e ela também me arranjou uma rede, tinha uma rede de emails, chamava assim, Kairo’s Callers, que era onde os estrangeiros, era uma rede de emails de estrangeiros que moravam no Cairo, meio que de ajuda mútua, entendeu? “Como não ser enganado?” Então, faz isso, faz aquilo. E aí, você tinha também imóveis, lugar pra galera ficar e tudo mais. E aí, a Jess me colocou no Kairo’s Callers, e pelo Kairo’s Callers eu arranjei um outro apartamento, que não era tão central na frente da Tahrir, mas que não era num lugar que poderia tá sujeito a um ataque de radicais islâmicos, né.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Tinha um bar, é… no centro do Cairo, que chamava-se Hurria, que em árabe quer dizer “liberdade”. Que era um bar da época da Belle Époque do Cairo. A velha Cairo foi inteiramente construída pelo colonialismo francês, né, pelo colonialismo francês e britânico. Eles tiveram uma época de… uma Belle Époque que você tinha… os prédios são lindos, a velha Cairo é um lugar que me fascina até hoje. Mas de qualquer jeito, o centro do Cairo, né. Tinha um bar, que era um bar maravilhoso, o chão de mármore, é… os vidros… é, ele era todo espelhado, era um bar da virada do 19 pro 20, em que a alta burguesia e aristocracia egípcia ia lá tomar a sua cachacinha. E depois, né, com o centro virando um lugar mais popular, o centro do Cairo hoje é uma região muito popular, né. E aquilo ali… e muito política, muito ativa, um lugar muito, muito interessante pra morar. E aquilo ali virou… virou um bar, da intelectualidade, da boemia, dos ativistas, da esquerda em geral. Que vendia cerveja e uma cachaça egípcia lá, a cachaça local. É, e aí, nos anos 80… e aí, esse bar, era um bar que a gente ia né, era um bar que todo mundo ia, o Hurria, né, depois das manifestações, todo mundo ia. O Hurria tinha um negócio muito curioso, que ele tinha umas janelas enormes, altas, de vidro, lindas, lindas, o lugar era lindo, apesar de muito desgastado e abandonado, era lindo. E… tapume, a janela ficava fechada com uns tapumes e só a parte mais alta ficavam aberta pra ventilar, porque o Egito é um calor infernal. Aí, um dia, eu fui lá e perguntei, “Por que o tapume na janela?” Aí, o Melled, que era… O Melled era um cristão, né, só pode vender álcool no Cairo quem é cristão, né. Só pega o certificado de venda de álcool se você é cristão. E aí, o Melled, que era meio que uma figura que animava o bar, ele virou e falou pra mim, “Olha, Aldo, nos anos 80… aqui hoje nós hoje só vendemos cerveja, porque nos anos 80, quando nós vendíamos cerveja e outro licor, veio um cara pela janela e jogou uma bomba dentro do bar. Então, a gente coloca esses tapumes pra dar uma protegida”. Aí, falei, “Ah, tá bom. Ah, ok.” Esses tapumes (risos), estamos protegidos por tapumes. Mas não… aí que aconteceu… quando por exemplo, nesse dia, no dia que conheci a Sara, o Hurria tava fechado. Eles fechavam os bares da cidade quando tinha mobilização dos islamistas, com medo de que algum louco colocasse alguma bomba no bar. Então, tinha esse temor constante, digamos assim.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan (narração): Como Aldo mencionou, a traição da irmandade muçulmana com os outros grupos dos movimentos populares se deu primeiramente por conta de uma ingenuidade de muitos manifestantes que confiavam no exército egípcio, e em segundo lugar, por interesses da irmandade em ganhar força política nas eleições que viriam, em janeiro de 2012. Ou seja, neste clima de incerteza de futuro político, eles viram uma oportunidade para mobilizar uma grande parte da população camponesa, através do discurso religioso, levando-os a praça Tahrir, em novembro. Ao mesmo tempo, também se aproximaram do exército, que era antes fonte de confiança do povo egípcio, dada sua rápida ação em retirar Mubarak do poder, em fevereiro. E de certa forma, essa estratégia foi bem sucedida, tendo em vista que, em janeiro de 2012, Mohamed Morsi, candidato da irmandade muçulmana, vence as eleições. Fato este bastante contestado por grande parte do povo egípcio.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan (narração): Não à toa, em julho de 2013, por pressão popular, o exército retira Morsi do poder. A irmandade muçulmana responde de forma agressiva. Em agosto, um mês depois da retirada de Morsi, matam centenas de pessoas em acampamentos de protestantes, no Cairo. Logo em seguida, em dezembro de 2013, a irmandade muçulmana é considerada uma entidade terrorista pelo governo, após realizarem um ataque a cristãos, o chamado atentado de Mansura, que o Aldo relatou ter presenciado. Como complemento dessa atitude, uma nova constituição é redigida em janeiro de 2014, na qual se bania todos os partidos políticos religiosos, e apenas como curiosidade, este clima de instabilidade política até hoje persiste no Egito, especialmente por conta das ações do autointitulado Estado Islâmico, que surgiu no processo de tudo isso.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan (narração): Mas voltemos ao Aldo e seu amigo sírio, Rami, ou Alexander Page, como era o pseudônimo que ele usava para assinar as matérias que publicava na imprensa internacional. Logo que se conheceram, eles começaram a se articular com repórteres que estavam no Cairo, ainda em 2011.
Aldo: E ele vira muito amigo de um grande amigo meu, que é o Saleh. E o Saleh é um egípcio que ajudava todo mundo, era muito solidário. Era um ótimo rapaz. E… e ele ajudava um pouco o Rami. E aí, o Rami tinha relação com toda a imprensa e todo mundo de ONGs.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: O Rami, é… tinha relação com toda a imprensa, era incrível. Então, vinha Al-Jazeera, a gente conversava, vinha New York Times, a gente saía pra conversar, vinha… aí, eu passei a conhecer toda a imprensa mundial pelo Rami. E aí, um dia, quando vem na verdade o grande levante de novembro, o Rami, ele… ele vai pro front, com uma ideia inovadora, que era o que virou depois no Brasil o Mídia Ninja, que nós chamávamos no Egito de Ana Mubasher. Era 2011, e era a ideia de você fazer uma transmissão ao vivo pelo Twitter. Ainda era o co… ainda era o começo de aplicar aquilo na primavera árabe, não tinha sido aplicado inteiro, que nem o Rami tava organizando na Síria. O Rami organizou redes de live tweet na Síria, pra divulgar massacre, pra impedir com que o exército sírio massacrasse a população. Você passava ao vivo e constrangia politicamente o exército, pra não massacrar. Então, a gente começou a fazer isso no Egito. Na verdade, ele… eu era um brasileiro que tava lá, né, e o Rami juntou com o Saleh e eles eram… os dois era muito meus amigos. E aí, vem novembro, e em novembro (risos)… vou com meus amigos acompanhar, entender, escrever. Ah, eu escrevia muito em novembro. Em novembro apareci na Globo, apareci ao vivo no… no jornal das dez…
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Bom, aí, o que acontece é o seguinte. É… a gente vai pras… na prática, a gente vai pras barricadas. Na rua Falaki, na esquina da Universidade Americana do Cairo. E aí, o Rami liga e fala, “Gente, é… tem que todo mundo agora vim conversar com a revista Time”.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Aí, você tá ali, né, você fala, puta, vou conversar com a revista Time. Eles não falam que é pra homem do ano, homem do ano é segredo, você só descobre no dia. Por isso, né, é uma coisa bem americana, né, quer dizer, é bem… naquele dia, naquele momento. Então, eles fazem isso de um jeito muito, é… é uma operação incrível, porque… aí, a gente decidiu ir, né, então fui eu, Ahmed Aggour, que era um louco que ia pra todas as barricadas, que era um cara que tava em toda linha de frente, falava inglês perfeitamente e tava… e auxiliava tudo o quanto era jornalista, trabalhava com isso. O Saleh, que era um… eu ia ser padrinho de casamento do Saleh agora, o Saleh é um… um grande amigo meu, eu gosto muito do Saleh. É… eu conheci ele na… na embaixada israelense, nós nos conhecemos na porta da embaixada israelense, e lá a gente criou uma amizade muito próxima. E, além do Saleh, tava uma menina que era uma estudante da Universidade Americana do Cairo…
Ivan (narração): Então, estavam Aldo, Rami, Ahmed, Saleh, a menina estudante e mais um amigo do grupo.
Aldo: O nome dele era Ali Mustafa. É… e o Ali tinha vindo pro Brasil, e… o Ali era canadense, e a mãe dele era portuguesa. Então, nós conversávamos muito em português, era a única pessoa com quem eu conversava em português. O Ali era um bom amigo. E aí, a gente vai, sai do meio… o Cairo é uma das cidades mais bonitas, eu sou apaixonado pelo Cairo. Cairo é… Cairo é uma cidade antiga… na verdade, Cairo é uma cidade antiga. Então, existe Cairo antigo, que é uma cidade medieval que é maravilhosa. Mas existe também uma Cairo da Belle Époque, do Colonialismo francês e britânico, que é o que construiu toda a região em torno da Praça Tahrir, que são uns bairros de Zamalek, Garden City, né, que é jardins, Garden City. É… o Wasat al Balad, que é o centro da cidade, ou o centro do país, né. É o centro. E… onde ficava a Tahrir, tinha uma arquitetura tipicamente francesa misturada com uma arquitetura, é… neoislâmica, ou islâmica. E então, você tinha um conjunto… um bairro, que eram apenas prédios clássicos, é… do século 19 e começo do 20. Então, era muito bonito. E… e lá, eram esses os cenários das barricadas. É… porque a… porque a cidade era antiga, você conseguia fugir, não havia os boulevards, digamos assim, né, porque Paris tem, né… pra destruir a Revolução de 1848, na França, é… vem também a tradição dos boulevards, né, que dificulta… dificulta a luta de barricadas, né, o boulevard, o Engels escreve muito sobre isso. E no Cairo você não tem o boulevard desse tipo, né, você tem ruas muito mais estreitas, né, que levavam aos ministérios, o que permitia um combate de rua muito mais intenso, e num cenário muito bonito. E daí, você sai do meio disso e, num prédio antigaço, sei lá… é, devia, com elevadores… aqueles elevadores sem grade, sem cimento em volta, é… no Cairo, né, em que chove… sei lá, chove muito pouco. Então, as construções são muito abertas. E aí, você chega num estúdio em que tem, tipo, três ou quatro copeiras, vestidas, servindo sanduichezinho e água, com um painel enorme, branco, e um fotógrafo, que era o fotógrafo que tinha acabado de fotografar o Obama e a Merkel, que era um fotógrafo húngaro que era o cara top da revista Time.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Ele tava chocado, porque ele tava lá pra fotografar, pra fazer ensaio de fotos com também, aí… a revista Time é uma edição muito engraçada porque tem vários amigos meus… é… aparece uma… uma outra menina aparece nessa foto, que era uma menina… na verdade, ela não era uma menina, ela era uma mulher. Ela tinha já mais de quarenta anos, era uma jornalista que escrevia pro Guardian, escrevia pra todo mundo, e eu conhecia ela da noite, né, nós… eu conhecia ela dos bares lá. É… o nome dela era Mona Eltahawy. Então, ela foi pra uma das barricadas, e a repressão viu ela nas barricadas e pegou ela, e aí, pegaram ela e pegaram um cassetete e quebraram toda a mão dela, picotaram os dedos dela pra ela não poder escrever. Era muito brutal a polícia no Egito, morria muita gente, não era que nem no Brasil. No Brasil, é… não existem grandes tradições de enfrentamento de barricadas com centenas de mortos. No Egito tem, tem de centenas, tem de milhares… é muito violenta a política. A política no Brasil não era tão… nem mesmo… até mesmo porque, da forma como se deu a ditadura, era muito mais selecionada. Então, não permitia surgir movimentos de massas, né.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Tinha então, ah… a Mona, que ela, é… tinham quebrado o dedo dela, e então eles tinham… a ideia da revista Time era viajar pelo mundo e aí… foi isso o que o cara me falou, né, ele falou, “Olha, nós estamos viajando pelo mundo por uma matéria”, ele não fala qual que é a matéria, ele não falou que tinha sido, que era pro homem do ano. “Pra uma matéria qualquer aí, da revista Time, pra uma matéria sobre ativistas. Então, nós fomos pra Nova York, fotografamos com a liderança do Occupy Wall Street, fomos pra Espanha, fomos para a Grécia, e agora estamos aqui, e… estamos fazendo uma homenagem pra quem participou de 2011, como o ano do retorno das grandes manifestações de massa”. Aí, a gente falou, tudo bem, vamos fazer as fotos, mas aí ele falou assim, “Mas a gente veio aqui não sabendo que ia ser assim”. E aí, o fotógrafo húngaro, ele tinha muito medo, ele falava… ele tinha um pouco de medo, eu falei “Você não vai descer lá e tirar foto?”, porque tinha um amigo meu que foi considerado um dos maiores fotógrafos franceses e americanos do… com menos de trinta e cinco anos, e ele era um dos fotógrafos que tava lá na… na revolução, mas aí o Kim, ele falava… o jornalista húngaro, ele não era que nem o Kim. O Kim conhecia ele, é… o Kim inclusive ficou impressionado com eles irem pra lá, porque esse tipo de fotógrafo, que é um fotógrafo de porta-retratos, eles não vão pro front, ele tinha medo de ir pro front. E um cara como o Kim, ele tava no front o tempo inteiro, era que nem o Ali, o Ali era um fotógrafo que ia pro front e fazia coisas maravilhosas no front, em termos de fotografia. Porque, na verdade, aquilo era uma revolução na qual o Facebook, o Twitter e o YouTube tinham muita influência. Então, você saber fazer um bom filme era central pra você intervir naquele processo político. E eles eram todos muito bons no que faziam, tinha esse elemento também. Tinha, digamos, um negócio de seleção, de… eles eram todos muito fortes, muito inteligentes, muito rápidos, muito dinâmicos, todo mundo ali sabia fugir da polícia e do exército, todo mundo ali falava duas ou três línguas. Eles eram todos jovens muito esforçados, e muito inteligentes e muito corajosos.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: E aí, a gente chega… Mas você imagina o que que é você sair duma barricada e cair num cenário desse, com copeira distribuindo pequenos sanduíches, e… Aí, o jornalista… O Rami já tava lá. O Rami não tinha… Pra mim, tinha passado antes nas barricadas, e ido direto pra lá. E aí, o Rami veio, e veio a chefe jornalista. E aí, eles falaram, “Nossa, nós não estávamos esperando que isso ia acontecer no Cairo exatamente quando nós estivéssemos aqui. Nós somos a Revista Time, queremos tirar uma foto de vocês”. E tiraram. E, não sei por que diabos, a minha foto acabou não aparecendo na Time de 2011. A foto do Ali foi pro homem do ano. Eles botaram ali, foi a do Ali, do Saleh, do Ahmed, e do Rami. O meu, eles falaram, “Não, o que esse brasileiro tá fazendo aqui?” E tiraram (ele ri).
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan (narração): A revista norte-americana Time, desde 1927, possui essa tradição de sempre eleger uma personalidade do ano. Já teve Martin Luther King, Papa João Paulo II, o presidente Obama. 2011 foi um ano em que vários protestos ganhavam força e notoriedade pelo mundo. Desde a Primavera Árabe até os Anonymous, nos Estados Unidos e Europa. Sendo assim, a pessoa do ano de 2011 da revista foi um título mais amplo, chamado de “O protestante”. Uma categoria mais genérica que fazia referência a todos esses movimentos de protestos pelo mundo. O motivo pelo qual a foto com o Aldo não ter aparecido na seção dedicada à Primavera Árabe, no Egito, ainda não é claro. Mas a foto que ele tirou com seus amigos iria reaparecer em uma outra ocasião.
Aldo: Eu fui pra Síria em novembro… Antes, em outubro… Nem lembro mais que mês que foi. Foi aí, outubro, novembro. Talvez um pouco antes. Eu tinha ido pra Aleppo.
(EFEITO SONORO: UM TOM DE IMPACTO)
Ivan (narração): Aleppo é a segunda maior cidade na Síria. Ficando atrás apenas da capital, Damasco. Ela fica no norte do país. A Síria, atualmente, é governada pelo presidente Bashar al-Assad, desde 2000. Ele já está no poder há mais de quinze anos. Antes dele, o presidente era o seu pai, Hafez al-Assad,que governou o país desde 1971 até a sua morte, em 2000, quando o seu filho assumiu. Ou seja, a família já está há mais de 40 anos no poder. Em 2011, com a onda de protestos da Primavera Árabe, houve também grandes manifestações populares contra o regime Assad, especialmente entre camponeses. O Aldo foi para Aleppo num estágio mais avançado das manifestações, quando as grandes cidades sírias já começavam a experienciar um cenário de conflito armado, tendo em vista a forte repressão que o governo Assad realizava em manifestantes.
Aldo: E muitos amigos meus tinham ido pra Aleppo. Porque havia uma relação entre a vanguarda da revolução egípcia e a vanguarda da revolução síria, por conta do Rami. A gente, a verdade, era que havia um excesso de entusiasmo por um processo que era muito mais contraditório do que aparentava, em muitos âmbitos. Eu tinha expectativa de que a ditadura síria, ela ia cair ainda em 2013, e que Damasco ia ser outra coisa. E não ia ter Estado Islâmico, e não ia ter nada disso. E quando eu fui lá, eu vi exatamente o oposto acontecer. Eu vi pra onde é que tava indo aquilo ali. Quando eu cheguei ali, eu falei, meu deus do céu. Meu deus do céu. E o Saleh já tinha ido muitas vezes, e o Rami ia sempre. O Rami tava montando uma rede de rádios pra disputar política na região. Que era… A linha do Rami… O Rami era um homem muito inteligente. Tinha esse negócio dos vídeos, e tudo mais, mas a linha era “Vamos fazer uma rádio pra intervir no processo”, porque vai cair o regime, e a gente tem que ter influência sobre o movimento social, e o movimento social não pode ficar na mão da guerrilha.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Então, a sociedade civil tem que construir organismos de comunicação nacional. Ele tinha um projeto, que era um projeto de construir uma rádio, que chamava Ana Mubasher, que ia intervir na região e ia ser a mídia livre… De uma rádio livre na internet. Que era uma ótima ideia, né, do movimento. E, ah… O Rami, o Saleh, é… Ajudava poços de água, em Aleppo. Ele era engenheiro. Então, ele ajudava com coisas de engenharia, na sociedade civil. E construiu organizações na sociedade civil. Só que, quando a gente chegou… Quando eu cheguei lá, já tava num outro estado. E o Ali tinha ido pra lá já, e quando ele foi pra lá, ele falou que ele não queria mais voltar pro Cairo, porque no Cairo tinha tido o massacre da irmandade muçulmana, e o movimento tinha sido esmagado. E na Síria, você tinha que construir a sociedade civil na Síria. Eu falei pra ele, “Ali…” (breve silêncio) Eu achava que era uma má ideia, eu já tinha falado isso pra ele. Eu já tinha brigado com o Saleh, falando que isso era uma… Que isso era uma ideia que beirava o suicídio. Porque o processo político mais global caminhava pra uma derrota tremenda. Era esse era o problema, não enxergar que, logo no começo, virou, e virou pro outro lado, entendeu. Não é que voltou pro que era antes. Virou uma outra coisa. Virou uma outra coisa. E aí, quando, quando… Você tem que ver isso, pra isso daí que existe a teoria e o Marxismo, e a Ciência, e o estudo da História, pra você saber que, quando a coisa muda de lado, muda de lado e já era. Acabou. Perdeu. E eles não viram isso. Então, o Ali foi e se juntou a um grupo de paramédicos, que era o chamado Corpo Civil.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Na Síria, o movimento começou a fazer um chamado pra organizar um corpo civil pra ajudar Aleppo. Era o que seria o equivalente às brigadas internacionais que lutaram na Espanha, em 1936, contra o Franquismo, e que agora estavam lutando contra Assad e o Estado Islâmico. Foi o começo da revolução, né. E era ajudar com o corpo civil. E o Ali foi lá, e ele começou a dirigir uma ambulância. Ele era muito capaz, né. Ele era muito corajoso, muito capaz, e ele fotografava e tava fotografando pro The Guardian. Por quê? Porque tinha que ter foto da Síria. Os jornais tinham que ter fotos exclusivas da Síria pra noticiar o que tava acontecendo. Porque era antes (ele estala os dedos), era muito antes. Era o começo da revolução. Era antes de Estado Islâmico, antes de tudo isso já desse jeito, né. Já era 2013, o Estado Islâmico estava surgindo, mas ainda era controlável. E aí, o Ali vai lá e… E existia uma rede do qual o Ali integrava. Que é… Hoje, agora a gente vê no Brasil de diferentes formas, mas que é a rede do Twitter, do Facebook, e das redes sociais da militância. E a militância estava sempre em contato, e havia um sistema de Twitter, inclusive que o próprio Rami ajudou a organizar e construir. E que todos nós tínhamos alguma coisa de contribuir, que era você colocar no Twitter sempre a quantidade de mortos e quem eram os mortos e os nomes dos mortos, nos bombardeios aéreos. E a minha ex-companheira, a Sara, ela era síria. Então, ela acompanhava as redes de perto. E acompanhava o processo de perto. E a Sara nunca conheceu Ali, mas ela sabia quem era o Ali, porque o Ali era um militante conhecido na vanguarda. Conhecido, respeitado, e tal. Era um fotógrafo, era um ótimo fotógrafo, era um militante internacionalista. A Sara falou, “Aldo, o Ali ainda tá em Aleppo?” Falei, “Tá”. Ela falou, “Então, ele morreu”. Chegou a notícia do bombardeio, jogaram uma bomba… chama Barrel Bomb, era o nome da bomba. Que era, na verdade, o governo Assad, ele passou a voar em cima das cidades e ele não usava mais a força aérea porque não tinha mais como garantir a força aérea dos mísseis antiaéreos. Eles não queriam gastar dinheiro com a força aérea. Então, o esquema mais barato era você mandar helicóptero, enchia uma caixa d’agua de explosivos e jogava sobre a cidade. Eram chamadas Barrel Bombs. As Barrel Bombs foram condenadas pela ONU, inclusive, pela ONU e pela Anistia Internacional. E jogaram sobre a ambulância que ele tava dirigindo, em Aleppo. Num ataque, morreram 26 pessoas, morreu todo o comitê, 26, e ele era um dos 26.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Falei, puta que o pariu… Que cagada. Que ele foi fazer lá? Que erro! Que tragédia! Era um puta cara, era um cara que tinha um futuro. Era um cara que era um cara inteligente, simpático. Era uma ótima pessoa, sensível, filmava bem, cumpria tarefa, era um ótimo militante. Por que ele foi se meter? (breve silêncio) Ele não conseguiu, ele achou que… Ele não entendeu o que tava acontecendo. Ele não tava entendendo, ele… Aí, ele teve… Tem uma hora que ele falou, “Olha, todo mundo aqui tá rezando o tempo inteiro, Aldo”. Eu falei, “É…” Ele falou, “Eu sou ateu, mas… eles tão rezando o tempo inteiro”. Eu falei, “Cara, não se separa desses setores religiosos, que muitos deles são honestos, mas tem que ficar esperto com a Al-Qaeda que tá aí. Tem Al-Qaeda aí. Você tá num lugar que é o lugar mais perigoso do mundo, cara. Tem Al-Qaeda aí, tem Estado Islâmico”. Estado Islâmico não se misturava. Estado Islâmico tava bombardeando eles. Mas eu falei, “Olha, tem que tomar cuidado. Num faz… Num faz… Cara, não se mete …” Equipe de seg… de saúd… De assistência humanitária… “Você tem muito mais no que contribuir, entendeu? Você fica dirigindo uma van numa zona de guerra, quer dizer, você é muito mais capaz do que ficar dirigindo uma van em zona de guerra. Isso não é a sua tarefa agora. Isso daí tá fadado pro fracasso. Isso não vai ganhar. Vai perder”. O Assad não ia cair, tava na cara. Depois que a operação em Damasco fracassa, tava errado politicamente, o centro político não era o norte da Síria. O centro político era a disputa por Damasco, a periferia de Damasco. Damasco, não o interior. Estava no interior com um campesinato, atrasado. Tá bom, os camponeses são importantes pra um processo de insurreição, mas no Egito foi o mesmo problema.
Ivan: Você diria que ele era um idealista? Tentava lutar e fazer o que fosse possível na medida que pudesse?
Aldo: Eu acho que ele era uma ótima pessoa. Se ele era um idealista… Eu acho que ele era um… Ele tinha um pouco de… Ele era muito voluntarista, esse era o problema. Ele era voluntarista. Óbvio, ele era idealista. Idealista no sentido de que ele era um militante e um jornalista e uma pessoa, um indivíduo que era uma pessoa que queria um mundo melhor pra todo mundo, entendeu. Era uma… Era uma ótima pessoa. E era um menino inteligente, e ele tinha sido ativista lá na universidade que ele tinha estudado. Ele tinha sido… Ele militava com a questão da Palestina, e era Canadense. E é… É difícil você ser filho de imigrantes no Canadá. Ele tinha também esse mérito. Então, ele era um cara com muitos méritos, era um cara muito bom, era uma ótima pessoa. E não só era uma ótima pessoa, como era uma pessoa que ia ser muito mais útil se tivesse vivo, do que morto.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO)
Narração: Hailed by colleagues as fearless, Canadian photojournalist Ali Mustafa has become the latest international reporter killed in Syria. A Canadian journalist was killed in a Barrel Bomb attack in the Syrian city of Aleppo, Sunday morning…
(FADE OUT DO CLIPE DE ÁUDIO)
Aldo: É… Aí, eu tirei a foto, e apareceu todos os meus amigos na Time, eu fiquei muito feliz. A nossa foto junto não apareceu. E aí, é… Ela aparece quando chega na internet a notícia da morte do Ali. Por causa do bombardeio aéreo, porque, na verdade, você tinha matado um cidadão canadense. O Ali era canadense. O pai era egípcio, a mãe era portuguesa, mas ele tinha nascido e estudado no Canadá a vida inteira, e tudo mais. E na universidade, ele tinha militado no movimento estudantil na universidade, no Canadá. Então, era um cara que você não podia matar assim, né. E eles mataram jogando uma bomba… Mataram de um jeito bárbaro. Um jeito brutal. E aí, a revista Time soltou uma matéria e ela coloca a foto.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: As fotos viraram cartaz. E a do Ali também virou cartaz, né. Virou um símbolo, né. Tem uma filmagem, no Vimeo, tem uma filmagem na qual eles pintam o rosto do Ali no mural dos Mártires, na Praça Tahrir, que é um vídeo muito bonito que eles fizeram. Eu mandei a música, era uma música… Na verdade, a música, quem colocou ali foi o pessoal ligado ao Mossrim. E colocaram uma música brasileira porque ele gostava muito de música brasileira.
(FADE IN DE TRILHA SONORA)
Esta cova em que estás com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida
É a conta menor que tiraste em vida
É de bom tamanho nem largo nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio
É a parte que te cabe deste latifúndio
Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida
É a terra que querias ver dividida
(FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Aldo: Esse mural é um mural que merece… É o chamado Mural da Rua Mohamed Mahmoud. Era um mural que ficava na rua que ligava a universidade amerIc… O Ministério do Interior com a Praça Tahrir. Eu não me lembro agora o nome específico em árabe, que era de “olhos”. Que virou a Rua dos Olhos, porque a polícia… O serviço Secreto do Exército, ele invad… Ele entrava… Ele atacava essa rua porque era a rua da onde saíam as manifestações de massa. Elas saiam da Tahrir para ir cercar o Ministério do Interior. E essa era a rua que ligava a rua Mohamed Mahmoud. O exército cercava e ficava com… é, eles usavam AK-47, né. De vez em quando, eles davam rajadas de metralhadoras para cima. E quando eles davam rajadas de metralhadoras para cima, a bala sobe e depois a bala desce. Então, quando a bala desce, ela cai e mata. Mas eles também usavam espingarda, que era o chumbinho, mas eles miravam nos olhos para cegar. E aí, houveram muitas pessoas que perderam os olhos nessa rua. Então, virou “Rua dos Olhos”. E eu morei inclusive com o Ali nessa rua, uma época. Ele tinha um apartamento na Mohamed Mahmoud e eu tinha chego do Cairo, eu tinha perdido meu apartamento, tava chegando do Brasil, uma confusão, e o Ali me abrigou. E eu fiquei no apartamento dele, na Mohamed Mahmoud. E era muito engraçado porque era um apartamento no qual entrava gás lacrimogêneo pela janela (risos). Então, de repente, entrava gás lacrimogêneo pela janela! Eu fiquei uma semana, duas semanas lá. E aí, nessa rua, no começo dessa rua, onde ligava essa rua à Praça Tahrir, era a esquina da Universidade Americana do Cairo, que era uma das principais universidades do país e da região. E aí, tinha um mural, um enorme muro na Universidade Americana, em que os revolucionários faziam pinturas contra o governo. E foi o primeiro lugar onde haviam grandes pinturas contra o governo. Então, o governo ia lá e apagava, pintava de branco por cima. Aí, o movimento pintava em cima, aí o governo pintava em cima, aí o movimento pintava em cima. E toda hora. E vira e mexe o movimento pintava com as fotos dos mártires. Aí, o governo ia pintar em cima e iam e pintavam de novo as fotos dos mártires. E numa delas, eles pintaram a foto do Ali, que ficou muito bonita. E essa rua… O Ali gostava muito das grafites da Mohamed Mahmoud, porque era muito bonitas as grafites e era um processo muito bonito. E depois, esse ano, eu acho que o exército derrubou aquele mural, derrubou o muro inteiro, agora não tem mais muro. Significa que agora o muro precisa ser construído de novo para… Mas isso vai demorar ainda um pouco, porque no Egito as coisas ainda estão um pouco tensas. Mas outros muros serão, certamente, construídos na Mohamed Mahmoud com a foto dos mártires, que era uma ótima cultura e tradição, era muito bonita.
(FADE IN DE TRILHA SONORA)
É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas a terra dada, não se abre a boca
É a conta menor que tiraste em vida
É a parte que te cabe deste latifúndio
(FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan: O que são esses mártires?
Aldo: Os mártires eram… é… muitos eram crianças, por causa do futebol. Eles eram desenhados. Muitas vezes, eram colocados quadros com o rosto. Então, tinha um quadro, tinha um desenho, tinha um desenho que era muito… A imagem era muito forte, que era, na verdade, a imagem era uma criança. Eu acho que ela tinha oito ou nove anos, era o desenho dela com o cabelo encaracoladinho, com a cara, com a boca, com as bochechas grandes de criança e um quadro, isso desenhado, eu acho, que em amarelo fosforescente, verde fosforescente e outras cores que faziam uma combinação muito particular e com um quadro em volta. E nesse quadro, uma lista, uma linha negra bem no canto superior indicando a morte e duas asas no quadro. Aí, indicando uma espécie de Islamismo popular, no qual os anjos vão subir para o céu e os mártires são todos anjos. E aquilo ali era uma homenagem pra… pros que tinham morrido. Morrido em todos os confrontos, em todas as manifestações que tinham. O mural da Mohamed Mahmoud era um dos negócios mais incríveis da Primavera Árabe. Então, a Mohamed Mahmoud era uma rua que, para a gente que viveu a Tahrir, era… a Tahrir e a Mohamed Mahmoud. Então, na verdade, era o protesto na Tahrir, mas the clashes, a gente falava clashes, que era como chamavam os enfrentamentos com a polícia militar, os clashes. Clashes na rua Mohamed Mahmoud. E eu vi, muitas vezes, pintarem o mural, e era muito divertido. Eu morei na Mohamed Mahmoud duas vezes, né. Morei com o Ali na Mohamed Mahmoud, meu primeiro hotel foi na Mohamed Mahmoud.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan: Você lembra de alguma última conversa que teve com ele, que te marcou?
Aldo: Tinha o negócio do Cartola, que ele gostava muito do Cartola. Que eu achava legal, porque era o cara do Cairo, que conhecia música brasileira e gostava de Cartola. E eu sempre dava festa em casa, no apartamento do Cairo. E eu sempre colocava samba brasileiro, porque eu acho que não existe música melhor que a música brasileira. E sempre tinha festa em casa com samba e ele sempre, ele gostava, ele adorava. Isso me marca um pouco dele, me lembro um pouco dele. É o negócio do Cartola.
(FADE IN DE TRILHA SONORA)
Ainda é cedo, amor
Mal começastes a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és
Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás a beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés
Ainda é cedo, amor
Mal começastes a conhecer a vida
(FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan (narração): No próximo episódio, vamos conhecer a Síria antes da guerra e aprender um pouco sobre como era a vida lá.
Voz2: Antes que estourar essa guerra, Síria e Aleppo, onde eu morava. Eu fui lá três vezes e estava crescendo demais.
Voz3: Olha, em geral, na Síria, a gente não fala sunita, xiita. Porque na Síria a gente tem mais de 72 religião, então uma coisa que ninguém sabe lá na Síria. Síria é um país que tem muitas religiões que a gente mora juntos, a gente não tem problema no religião. Então, é muita vergonha lá na Síria perguntar, “Ah, qual é sua religião?” As vezes, os amigos ficaram 10 anos, 15 anos e ninguém sabe a religião do outro.
Voz2: A política lá de Síria, eles falam é ditadura, mas não é bem ditadura. Essa presidente que está lá hoje, Bashar al-Assad, ele é um guri estudioso, estudou na Europa.
Ivan (narração): Aqui, no Projeto Humanos, “O Coração do Mundo”.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan (narração): O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribui mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Se você gosta do nosso trabalho e gostaria que ele continuasse, você pode contribuir através do link na postagem. Agradecimentos especiais a Aldo Cordeiro Sauda, pela entrevista que me concedeu; e a Andreia Fran, pela indicação. Nos vemos no próximo programa.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
FIM
Transcrição por Cadu Carvalho, Giancarllo Palmeira, Eduardo Borges Brasil, Débora Veiga Ruiz, Matheus Souza, Sidney Andrade, Mariana Diello. Edição por Sidney Andrade. Revisão por Diogo Lima.