8 – Duas Vidas Sírias
25 de abril de 2016No sétimo episódio da série O Coração do Mundo, conhecemos as histórias de dois sírios que atualmente residem no Brasil: Elia, da cidade de Aleppo, que veio na década de 1970, e Ahmed, da capital Damasco, que veio em 2013 como refugiado da Guerra. Como eram suas vidas na Síria? Como era o país antes da guerra? Religião era um tema de conflitos? Como foi o governo de Hafez al-Assad e como é o de Bashar al-Assad, seu filho? Será que a visão dos sírios é diferente do que a mídia ocidental promove?
Convidado especial: Paulo Hilu (UFF).
Arte da capa por Amanda Menezes
Crédito da Foto: copepodo via Visualhunt / CC BY-NC-ND
Lettering por Luiz Amorim
Transcrição
Voz 1: …certinhos… eu passei o… o escola lá… eu estudei lá… é, na verdade, o que eu vou falar? Tá… na verdade, quando você sai fora de Síria, qualquer… qualquer história vai ser… é… importante pra você. Qualquer coisa pequena, grande, assim, vai ficar… assim… uma história muito importante pra você, porque você sente que você perdiu um país. Entendeu? Então, você quer sempre ficar com suas história, suas… me… memórias lá.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias Reais sobre Pessoas Reais. Como eu falei no primeiro episódio dessa nossa segunda temporada, nosso objetivo aqui é pegarmos relatos de pessoas que foram afetadas de alguma forma pelos recentes conflitos no Oriente Médio. E como também mencionei, há alguns meses atrás, eu acompanhava o perfil de uma refugiada síria pelo Facebook. E um dia, ela postou uma imagem que mostrava a Síria no centro de um mapa-múndi, e havia uma inscrição abaixo, “Síria, o Coração do Mundo”. Foi daí que eu tirei a inspiração para o nome desta temporada. Contudo, o que eu não revelei é que essa refugiada era uma aluna minha, a Nurallah [fon. nur’alə]. Ou “Nurallah” [fon. nural’a], como fala sua família. E assim que eu descobri que ela havia vindo da Síria, eu quis saber mais sobre a história de sua família. E para minha sorte, seu irmão aceitou conversar comigo.
Voz 1: Então, meu nome no sotaque árabe é Ahmed Alaham [fon. ‘ar̄med alər̄’am]… nossa, aqui no Brasil vai ser muito difícil, então a gente fala Ahmed Alaham [fon. ‘armed alər̄’ãm]. Eu tenho 33 anos, eu sou ortodontista.
Ivan (narração): Além do Ahmed, também tive a oportunidade de conversar com outro sírio que reside no Brasil.
Voz 2: Meu nome é Elia Aman, sou de Síria, sírio, cheguei em 74, morava a cidade Aleppo e tô aqui faz 44 anos. Pra mim, ainda… Volto a falar, sempre. A melhor país de mundo chama de Brasil. Ah, eu andei… rodei o mundo tudo. Estados Unidos, Europa, tudo essas lugar já conheço. Eu adorei a Brasil, e minha mãe é Brasil, e não troco nem por milhares de… de dinheiro, importa… não importa, eu amo Brasil.
Ivan (narração): Mas a história do Elia é bem diferente da do Ahmed. O Ahmed veio de Damasco, a capital do país. O Elia veio de Aleppo, que é a segunda maior cidade da Síria, localizada no norte.
Elia: Antes que estoura essa guerra, Síria, Aleppo onde morava aí, fui lá três vezes, estava crescendo demais. Cidade linda, bonita, antiga, tem as dois tipo lá, cidade antiga e cidade nova. Cê entrava na rua, cheio de prédios… novos, e entrava na rua do lado, antigo. Antes de seis mil anos, já tinha casa.
Ivan (narração): E será através das suas histórias que conheceremos um pouco mais sobre o que era a Síria antes da guerra, quais os efeitos que ela teve em suas vidas e como vivem hoje no Brasil. E se você está totalmente perdido sobre como a Síria chegou na situação em que está hoje, eu espero que este programa possa ajudar de alguma forma.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ahmed: Es… estav… estava jogando futebol na escola (risos), estava m… muito pequeno, err… o… o time do futebol estava misturado. Os pessoas mais grandes de mim esteve 9 anos. Tem, tem pessoas até 12, 13 anos assim. Então, uma que queria, sabe, se batar o bola na cabeça dele, ele bateu no meu ombro (risos).
Ivan: (risos) E daí, você… bateu o ombro?
Ahmed: É, quebrou, na verdade.
Ivan: Quebrou?
Ahmed: Ficou quebrado. Fiquei na casa três meses, porque você não pode colocar o gesso aqui, e os cirurgião da UTI só colocaram elásticos, sabe… esses coisas. Então, foi muito legal, na verdade. (risos) É verdade, foi dolorida, mas todo mundo quer, ah, cuidados pra você. Muito presente, né.
Ivan: Aham… daí você faltou escola por um tempo.
Ahmed: Muito bom.
Ivan: Muito bom! (risos) Qual que era o nome desse teu amigo que foi te visitar?
Ahmed: Na verdade, ele se chama Jorge.
Ivan: Jorge.
Ahmed: Jorge.
Ivan: Aham. É um nome bastante ocidental, assim, ele era…
Ahmed: Católico.
Ivan: Era católico, né?
Ahmed: A gente estudou numa escola católica. Família inteira, sabe. Lá na Síria, é normal um muçulmano estuda num escola católica, o católica estuda num… num escola muçulmana. Não tem diferença, sabe. Você escola o… o… você vai escolar o escola que você acha que é legal. Então, não tem nenhum problema.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Elia: Mil novecentos e setenta, Brasil ganhou copa de mundo. Tempo de Pelé. Eu tinha, na época, 23 anos. Eu gostava de esporte, eu gostava. Jogava vôlei e jogava futebol lá na Síria. Como gente é paixonado, escutamos Pelé, aí eu paixonei por gols que ele fez, só na rádio. TV não tinha na época lá na Síria, ainda. Aí, falei, “Vou conhecer Síria”, er… “Vou conhecer Brasil”. Cheguei, fiquei até hoje.
Ivan: (risos) É… foi só por causa do futebol, então?
Elia: Causa de esporte, futebol, sim. Dei tchau pra todo mundo. Pai, mãe. Tinha um amigo meu aí, parente de longe. Cheguei aí, nome dele José. Cheguei e conversei com ele, fiquei na casa dele, né. Ele gostou de mim também. Um cara ágil, esportivo, tá. Falou, “Ah, fica aí, gente faz uma coisa junto”. E fiquei, trabalhei com ele quatro anos, depois era joalheiro, ourives. Foi trabalhar com boi, com joalheiro, com médico, tudo isso aí eu trabalhava, gravava pedras pra eles. E tô até hoje aí.
Ahmed: É… eu cheguei com minha… com minha família aqui em Brasil, sabe, por causa do guerra. Então… cheguei com mãe mais dois irmãos e dois irmãs. Es… por, por enquanto a gente tá passando um ano e… acho que… oito ou nove meses.
Ivan: Um ano e oito ou nove meses.
Ahmed: Mais ou menos assim.
Ivan: Quase dois anos.
Ahmed: Quase.
Ivan: Vocês vieram em que ano, então? Foi… 2013?
Ahmed: Doi… hmmm… err… o dia do natal do 2013.
Ivan: Ah, 2013.
Ahmed: Vinte cinco do doze.
Ivan: Olha! O natal vai ter uma… coisa especial.
Ahmed: Verdade. O natal, pra nós, o natal mesmo. Começar uma vida totalmente nova.
Elia: É… minha mãe chorava, sofria porque na época que eu saí de Síria não tinha nada, tinha guerra contra Israel, não tinha servir exército lá 4 anos. Pois, saí, vim pra cá, tive paz, vi felicidade, e é… outro mundo. Outro mundo de lá. Lá, er… respeito é demais, pequeno sempre tem que respeitar maior. Eu não fumava na frente de meu pai, tinha 24 anos, ele não sabia eu fumava. É respeito, meu irmão também não sabia eu fumava. Temos essa… tradição de respeitar um a outro.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Elia: Olha… a comida… a comida de a lá, oh… reconhecida no mundo todo. As ruas… as ruas antiga dela que eu paixonava porque eu trabalhava nas dele, é tudo rua antiga, gostava de andar… e destruíram tudo, esse é meu raiva hoje.
Ahmed: Olha, sabe o que… dois coisa que, que… quando você vai visitar Síria, você vai ver, se Deus quiser. O água do Damasco se chama o Fijeh [fon. f’iʒe]. Isso, água do Damasco, a gente não usa esse sistema do… do beber água, igual aqui, que você precisa comprar o água ou qual filtro. A gente tem o água mais puro do mundo, que tá chegando por todas as casas do Damasco. Você não precisa… você não precisa comprar os filtros. Você não precisa esse garrafa grandinha, é… sabe… coloca assim, muito pesada. Então, isso coisa que você nunca vai esquecer, porque a gente tem um água… er… isso, na verdade, esse rio do Damasco chama Fijeh, ele está no Damasco desde doze mil anos, não mudou, sabe. A gente tem o água mais pura do mundo, graças a Deus, porque tem relato… água é abençoada, Jesus apareceu na Síria, né. Então, tudo lá tá abençoado. Então, é uma coisa que você nunca vai esquecer.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ahmed: Outra coisa é segurança. Por exemplo, você vai sair com amigos, er… ficar no restaurante, um lugar assim por divertir até três horas da manhã, e você vai sair a pé e voltar pra casa. Seria um problema. Entendeu?
Ivan: E aqui, já é mais perigoso, então?
Ahmed: Aqui, em todo o mundo, na verdade. Europa é a mesma coisa, porque se você vai andar em Paris depois do nove horas, é perigoso, é igual aqui. O Brasil não é excepcional, na verdade, então, França é perigoso noite. Berlim, na Alemanha, é perigoso noite. New York, você não pode andar sozinho depois seis horas, então é mesma coisa. Então, o presente do… que Deus nos… nos… nos… deu lá, o segurança, o água, é o amor entre a gente, sabe.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Elia: Saudade, cidade que eu amei sempre e sempre vou amar, Aleppo, na Síria, e tenho orgulho falar sobre Aleppo, a vida dela era diferente de mundo todo. A bairro que morava é… é um família, tudo conhecia todo mundo, eu tinha um grupo que chama… nadi alshshabab, (incompreensível) atlético, tudo. Eu cresci dentro de bairro, cresci dentro dessa grupo. E a grupo ensinava não só esporte. Eu jogava lá (incompreensível). Passava tempo e treinava, todo dia tinha treino. Jogava futebol e jogava vôlei, porque… na época, como nós somos minoria, gente tem que jogar. Eu tem um amigo meu jogava vôlei, jogava futebol e basquete, o… (Ivan ri). Entendeu. Porque, gente era pouco gente.
Ivan: Era grupo de cristãos?
Elia: É, exatamente, exatamente.
Ivan: Então, era um clube feito por cristãos e que vocês iam praticar esportes?
Elia: Exatamente.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Elia: Não, eu estudava de dia, estudava na colégio, ia pra colégio americano. Estudava normal, hã? A minha vida, infância, tinha colégio na bairro, tinha igreja na mesma… tudo perto. Porque gente era limitado, tudo lá, pra nós. Fora de lá, gente ia até centro de Aleppo e ia na Medine. Tem lugar, como falei, gente ia de dia, podia andar tudo Aleppo, sem problema. À noite era perigoso.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Elia: À tarde, ia brincar, jogava vôlei, jogava futebol. Passava tempo lá.
Ivan: Tinha quantos anos?
Elia: É, de 10, era criança, até 13 anos… 13… Tinha 13 anos, fui trabalhar. Porque, como aprendi ser joalheiro, também. Também, de meu amigo de bairro, tinha uma joalheria de gravar pedras. Porque, na Verão, três mês, Síria para tudo. Não tinha estudo, o que a gente fazia? Ia aprender alguma coisa na vida. Eu fui com ele, essas três mês, todo ano, ia lá com ele. Aprendi fazer gravação de pedra. É. E de bairro. Meu patrão era de mesmo bairro, o nome dele Yaqub Asto, hoje tá na Canadá.
Ivan: Aham, é cristão também?
Elia: É.
Ivan: Era cristão.
Elia: É.
Ivan: Todo mundo cristão ali. Todo mundo… ali no bairro, todo mundo?
Elia: Tudo, tudo cristão.
Ivan: Você tinha amigo muçulmano?
Elia: Tinha, tinha, tinha. Judeu, não, tinha amigo muçulmano, bastante. Fiz amizade, eu conheci, até tinha um Maher Saler, criado na mesmo bairro. Eu… Ele cresceu… Hoje, ele tá na Bel… Bélgica. Jogava vôlei comigo. Ele jogava vôlei comigo. Porque casa dele colado na meu clube.
Ivan: Ah, sim.
Elia: É. Era muçulmano. Tinha curdos bastante lá também, gente era bom. Tinha gente vivia bem um com outro.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Elia: Foi, fui campeão síria de vôlei, joguei contra exército.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Elia: Mil novecentos… deixa eu lembrar data. Setenta e nove. Teve campeonato, lá tem todo ano. Teve campeonato de Síria, que eu jogava, tinha meu amigos tudo. Gente era forte, na época. Nós era conhecido na Síria que já lá era forte de vôlei. Tinha lá exército,(incompreensível), eles treinava com nós. Eles vinham, fazia treino junto, a gente ajudava eles. Era professor meu, era (incompreensível), ele treinava nós e treinava pessoal de exército. Gente brincava junto, sempre. Aí, chegou época de campeonato, fomos pra Damasco, fomos pra Lataquia, fomos monte de lugar. Aí que falo, tem lugar fomos, até vir armas, bazucas, assim, na mão de cara, pra gente não ganhar. Gente entregava jogo de medo. Entendeu? Uma vez, aconteceu (incompreensível), também, juiz falou pra mim, “Elias, tem que entregar jogo, ou ninguém sai daqui inteiro”.
Ivan: Mas quem que tava ameaçando vocês?
Elia: Não tinha segurança, não tinha… entendeu? Hoje, se vai na jogo, vê exército, vê polícia. Na época, não tinha, ninguém dava bola. Juiz falou, “Tem que entregar jogo”.
Ivan: Porque, senão, ia matar vocês?
Elia: Ia, ô, ia sair quebrado. Não falo matar, porque povo radical, tudo é… não, saía, entregava.
Ivan: Os próprios torcedores, você diz, então…
Elia: Exatamente.
Ivan: Que nem aqui, se o jogo de futebol…
Elia: Exatamente.
Ivan: Entendi.
Elia: Entregamo o jogo, só que… A gente tava na frente, com 7, 8 pontos mais que outros, gente era tranquilo, entreguei jogo. Hora que chegaram na Aleppo, respeitamos eles, levamos eles na clube, servimos chá. Tudo viram a diferença. E fomos campeão naquele ano.
Ivan: Cê lembra do jogo que vocês foram campeões?
Elia: Foi o último contra essas pessoas que treinava junto com nós, nadi alshshabab, que era exército que usa boné vermelho. Era colega nosso, é de Aleppo também.
Ivan: E como que foi o jogo?
Elia: Foi. Foi 3 a 2. Na época, não era 5 set. Era 3…
Ivan: Sim…
Elia: Até 15 também, entendeu?
Ivan: Sim. E tinha ainda o… a vantagem, né?
Elia: Exatamente, vai e volta, vai e volta…
Ivan: Foi um jogo bem acirrado, então?
Elia: Foi. Foi, bem… 2 a 1, ganhamos, fomos campeão. Até hoje não recebi a troféu.
Ivan: Ah é? (risos)
Elia: Saímos sem troféu. (Ivan ri) Hoje… amanhã, falaram, “Olha, orra, tamo jogando final, onde troféu?” (Risos)
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Elia: Aí, eu cheguei… hora que cheguei aqui na Brasil, joguei na AABB, Banco do Brasil, Círculo Militar, Curitibano. Continuei jogando. Hora que eu parei, Brasil (ele assobia)…
Ivan: Subiu.
Elia: Subiu. É, fui chamado na seleção brasileiro, na época que joguei em 76, 77, só que não tinha documento.
Ivan: Ah!
Elia: É.
Ivan: Você não pôde ir?
Elia: Chegou a (incompreensível) de só jogar na círculo militar. Lembro, fui ver a jogo, perdemos, 3 a 0. (Ivan ri) Aí, depois, Brasil cresceu de vôlei.
Ivan: Você chegou a ser convocado, então, pra seleção brasileira?
Elia: É, fui chamado.
Ivan: Aham.
Elia: Mas não tinha documentação nenhuma.
Ivan: E daí, não pôde jogar?
Elia: Não.
Ivan: Como é que você se sentiu?
Elia: Senti muito mal. Adorava. Jogava na círculo, na curitibano, tudo. E, na época, vôlei não tava bem, ainda, estourado, aí. Tinha Moreira, Moreno, jogava bem, tinha alguns nomes lembrava de brasileiros. Só que, lamento, não podia jogar.
Ivan: Era teu sonho ser jogador?
Elia: É, exatamente.
Ivan: Mas preferia vôlei ou futebol, daí?
Elia: Eu jogava vôlei. Gostava de vôlei. Porque grupo nosso era, assim, forte dessa área. Dez de meninas e… Vou contar uma história. Primeiro futebol feminino de mulher na… na Oriente tudo, foi nosso grupo que montou. Primeiro… jogo de futebol de mulher, foi nosso grupo que fez na Oriente Médio inteiro.
Ivan: Dois times, conseguiram montar um time contra outro?
Elia: Sim, sim, sim. Nós fizemos jogar… Não tinha time, hã, jogava contra os pequenos (Ivan ri), das homens. Depois, começou crescer. Até hoje, acho que não tem. Vôlei já tem.
Ivan: Aham.
Elia: Vôlei já tem. Mas futebol ainda não tem. Na Síria, na Oriente, não tem, time de vôlei.
Ivan: Ah, vocês tentaram?
Elia: Tentamos, não deu certo.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ahmed: Olha, o classe média na Síria, antes guerra, eles estavam classe maioria do país. Sempre… tem um… tem gente lá que é muito rico, sabe, super ricos, e tem gente pobres. Mas o pobres lá na Síria, eles não parecerem… não parecerem pobres. Por exemplo, lá na Síria, você nunca na vida vai ver uma pessoa que mora na rua. Isso não existe na Síria antes guerra. Ou você vai ver que… tem pessoa que tá fazendo alguma coisa assim, na rua… xixi, não sei. Isso aqui não existe na Síria. Ah… não tem pessoas que… ah, droguistas lá na Síria. Na verdade, Síria, ela foi classificada um país com mais segurança no mundo, eu acho que número três, antes guerra, 2010. Antes guerra estava um país muito tranquilo, muito segurança, porque todo mundo tem dinheiro para viver bem, sabe. Então, não necessariamente… sabe, viajar, assim, mas… todo mundo pode viver bem lá.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ahmed: Eu acho que… olha, no mundo inteiro você tem o serviço público e serviço… é… igual o PUC, assim, sabe, particular. Então você pode escolher, mas na verdade, lá na Síria, tem escolas públicas que muito difícil entrar pra ela porque muito forte, sabe, tem as pontos que você precisa ter pra entrar pra essa escola. Mas, em geral… em geral, o povo sírio, todo mundo lá tem certifica, todo mundo estuda bem, sabe, é uma coisa que a gente… uma própria… como fala assim, uma… característica do povo sírio, que todo mundo estuda. Raramente, raramente você vai achar um pessoa que não estudou no universidade. Normalmente, assim, classificação do universidade da Síria, número um, Medicina, número dois, Odontologia, número três, Farmacêutica, sempre assim. Número quatro, Arquitetura, número cinco, Engenharia Civil, etc. etc. etc. Então… todo mundo estuda pra entrar em Medicina, então, se quando ele não consegue, ele vai escolher outra coisa, tá… tá olhando assim.
Ivan: Que foi o seu caso…
Ahmed: É…
Ivan: Você tentou medicina primeiro, daí foi pra Odonto?
Ahmed: É… na verdade, vou falar assim… meu irmão, que é mais velho, ele estudou medicina, né, então eu queria fazer o que ele faz, sabe, coisas do irmão, mas… mas eu acho que é destino, eu agradeço a Deus agora, eu agradeço a Deus, tô muito feliz com minha profissão.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Elia: Pra mim ficar em legal, primeiro conheci brasileira, minha mulher, nome dela Juliana. Fiz um filho, fizemos um filho, Cláudia, primeira filha minha. Aí, fui na Receita, entreguei. Levei papel de nascimento, ah, meu nome, que eu sou pai, né, tudo. Pessoal falou, “Seu salvação sua filha, se não a gente já levava você lá na fronteira de Paraguai” (risos). Pediram de mim fazer papelada, casei aqui também, fiz, levei tudo essas papelada pra Consulado lá na Assunção, dei entrada lá e chegou minha permanência, tinha esposa brasileira e filha brasileira e… aí, depois quatro anos.
Ivan: Depois de quatro anos?
Elia: Sim.
Ivan: Você veio aqui pro Brasil como turista, então?
Elia: Uhum.
Ivan: E tinha que tirar visto de turismo, pra vir?
Elia: É. É, acabou três mês e… fiquei quatro anos (Ivan ri). Quatro anos.
Ivan: Você não tinha medo?
Elia: Não…
Ivan: Era época do Regime Militar, não é?
Elia: É… exatamente. João Figueiredo, Geisel, na época de Geisel.
Ivan: Você não tinha medo?
Elia: Não, porque… não era bandido, não fazia coisa errada, jogava meu esporte…
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ahmed: Eu nasci no ano 1982, então… o guerra na Síria, a gente nunca teve um problema no interior do país, nunca teve, assim, conflito… do interior. A gente sempre teve guerra contra Israel, a gente teve guerra, por exemplo, contra Estados Unidos, sabe assim… porque sempre isso, guerra entre capitalismo e socialismo, né, então… mas assim, feia assim, igual o que tá acontecendo agora, nunca na história da Síria aconteceu.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan (narração): Entender o atual conflito na Síria é um exercício extremamente complexo, então vamos tentar elencar algumas das coisas mais importantes. Com certeza, muita coisa ficará de fora, mas pelo menos algum esclarecimento deve vir. Primeiro, voltamos ao período da Primeira Guerra Mundial. Após a derrota do Império Turco-Otomano, que dominava o Oriente Médio, um tratado foi feito entre França e Reino Unido, as duas potências mundiais da época, juntamente com o aval do Império Russo. Este tratado é o chamado Sykes-Picot, assinado em 1916, que basicamente redesenhou toda a região, criando os países que existem hoje e descumprindo uma série de promessas que haviam sido feitas durante o conflito. As zonas territoriais foram demarcadas muito mais a partir de interesses das potências europeias do que necessariamente por uma afinidade cultural e histórica entre os habitantes daquelas regiões. O resultado disso é que etnias conflitantes passaram a se ver unidas, do dia pra noite, como habitantes do mesmo país. E apenas uma curiosidade, em 2014, após avanços do autointitulado Estado Islâmico, o grupo terrorista derrubou parte da fronteira entre o Iraque e a Síria, e declararam que aquele ato era uma vingança contra o Tratado Sykes-Picot.
(EFEITO SONORO: UM TOM DE PULSAÇÃO GRAVE)
Ivan (narração): Segundo ponto importante. Durante a Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética disputavam zonas de influência no mundo todo, e o Oriente Médio não era diferente. Um exemplo disso, se você viu o filme Argo, vencedor do Oscar de 2013, deve lembrar o retrato que o filme passa do Irã. Teria sido um país livre, até a Revolução Iraniana de 79. Contudo, muitos iranianos tendem a discordar bastante dessa versão da história, pois entendem que o governo do Xá, anterior à Revolução, era extremamente autoritário, e tentava impor valores ocidentais à população. Analistas divergem dessa passagem, mas o que importa, em termos práticos, é que por conta da Revolução Iraniana de 79, os Estados Unidos haviam perdido um enorme centro de poder e de influência no Oriente Médio, sendo que o Irã passou a ter relações mais próximas com a União Soviética. Sua outra zona de influência de maior força na região passou a ser a Arábia Saudita, e assim é até hoje.
(EFEITO SONORO: UM TOM DE PULSAÇÃO GRAVE)
Ivan (narração): E o caso da Síria é importante aqui. Desde 44, a Síria era uma zona de influência da União Soviética, e esses laços foram ficando mais fortes em 71, quando Hafez al-Assad assumiu a presidência, lembrando que ele ficou no poder até sua morte, em 2000, sendo então sucedido pelo seu filho, Bashar al-Assad, que está no poder até hoje. Logo, desde pelo menos a década de 70, há um enorme clima de desconfiança entre a Síria e qualquer coisa que seja relacionada aos Estados Unidos. E se você olhar no mapa, verá que a Síria faz fronteira com os seguintes países, Iraque, Turquia, Líbano, Israel e Jordânia. Com exceções pontuais, do Líbano, todos sempre foram aliados dos Estados Unidos, com especial destaque para as potências militares Turquia e Israel. E, neste ponto, é bom lembrar que foi na década de 70 que os Estados Unidos apoiaram o surgimento de Saddam Hussein no Iraque, especialmente durante o conflito Irã-Iraque na década de 80.
(EFEITO SONORO: UM TOM DE PULSAÇÃO GRAVE)
Ivan (narração): Saddam se manteve um aliado dos Estados Unidos até a década de 90, quando invadiu o Kuwait. Some tudo isso ao fato de que a Síria tem uma localização geográfica super privilegiada para comércio marítimo, tendo acesso direto ao mar Mediterrâneo, que a liga a países como Itália, Grécia, França, Espanha, além de todo o norte da África. E, claro, muito petróleo.
(EFEITO SONORO: UM TOM DE PULSAÇÃO GRAVE)
Ivan (narração): Por isso, essa última parte da fala do Ahmed é importante. Quando ele diz que a Síria sempre esteve em guerra com países vizinhos, e muito por conta de uma questão do capitalismo contra o comunismo, esses conflitos têm origem desde o início do século 20, por conta de muitas interferências dos Estados Unidos e da Europa.
Elia: Vou falar o quê? A situação de Síria hoje não é… entre nem cristãos nem muçulmanos nem nada, é todo mundo quer Síria.
Ahmed: A gente é muçulmanos.
Ivan: Muçulmanos.
Ahmed: A gente é muçulmanos e a nossa religião é Islã.
Ivan: E, muçulmanos… ah, vocês tem alguma linha, assim, sunita, xiita…?
Ahmed: Olha, em geral, na Síria a gente não fala sunita, xiita. A gente tem… porque na Síria a gente tem mais de 72 religião, então, uma coisa que ninguém sabe, lá na Síria, que… o Síria é um país que ela tem muitas religiões que a gente mora juntos, a gente não tem problema no religião. Então, é muito vergonha, lá na Síria, perguntar, “ah, qual é sua religião?” Às vezes, os amigos ficaram, assim, dez anos, quinze anos, e ninguém sabe a religião do outro, sabe, porque a gente estuda nas mesmas escolas, a gente vive no… no mesmo bairro, sabe. Então religião é uma coisa secundária, não é essencial, lá na Síria, pra perguntar. “Não vou ter amigo porque ele é muçulmano”, ou porque ele é católico, assim. Então, a gente estava vivendo em paz lá, antes guerra. Eu acho que, Síria, porque é o meu país, né, então eu acho que ele estava o melhor país no mundo, na verdade.
Elia: Na época de Hafez Assad Bashar tinha liberdade a cristão, tinha liberdade total. Faz o que quer, mas não vem perto de governo. Eu dou liberdade, veste jeito que quer. Mas tinha limite pra cristão lá vestir e andar bairros, tinha bairros que a gente não podia nem chegar perto, aí gente cuidava, sabia, a gente ia vestido assim, de saia, porque… o muçulmano não tá acostumado, ele viveu assim, usa aquele gallabiyah dele, tudo fechado, mulher dele fechado, é a religião deles, a gente respeita… né, não somos contra. Eles também.
Ahmed: Olha, vou dar você um exemplo. Por que isso pergunta, todo mundo me pergunta. Por que a mídia agora está mostrando um guerra civil que não é guerra civil na Síria. Ele tá mostrando as mulheres que sabe… são sem educação, com burca, não sei, não sei… Mas tudo isso mentira também. Por exemplo, vou dar você um exemplo por minha família. Minha mãe é advogada, minha tia tem certifica no science… Que mais? Minha outra tia até já estudou na universidade, minha irmã é farmacêutica, outra irmã tá estudando. Então tem e… e… equalidade lá. Como fala em português? Não sei o palavra…
Ivan: Ah… Igualdade.
Ahmed: Tá bom, tá bom, igualdade tem lá entre mulher e o homem.
Ivan: Uhum.
Ahmed: Não tem diferença na regra na Síria. Você pode escolher sua religião, você pode escolher sua educação, não tem… Na verdade, se você vai andar na rua na Síria, você não vai pensar que, “Isso é Síria”, vai pensar, “Isso é Curitiba”. A mesma coisa, a mesma roupa, a mesma coisa. Tem gente que usa o hijab que a gente chama, por causa do religião, tem gente que não usa.
Ivan: As mulheres da sua família usavam?
Ahmed: A minha mãe usa. Minha mãe usa.
Ivan: E suas irmãs?
Ahmed: Não, não usa.
Ivan: Só sua mãe, da família?
Ahmed: Só minha mãe.
Ivan: Como é que ela se sente ao ver as filhas não usando?
Ahmed: Nada. Uma coisa do liberdade, sabe?
Elia: A moderno, muçulmano moderno que conhece o mundo não interferia, bem contrário. Amigo, a gente vivia junto. Eu tinha um monte de amigo, na Exército eu fiz. Ia na casa, eu ia na casa deles, eles vinham na minha casa.
Ahmed: Por exemplo, eu sou muçulmano, meu vizinho ao lado ele estava católico, outro lado evangélico, em cima muçulmano, em baixo judeu. A gente tava vivendo assim. A gente sempre na festas juntos, sabe? No tristeza juntos, quando tem uma coisa feliz sempre juntos. Joga juntos, vive juntos, casamento juntos. Não tem problema.
Ivan (narração): Se você está com dificuldades em acreditar que na Síria, aquele país do Oriente Médio onde todo mundo é maluco e se odeia, havia uma convivência tão pacífica assim entre religiões, acredite, eu entendo você. Eu também tive dificuldades em acreditar. E foi por isso que eu recorri a um dos maiores especialistas brasileiros sobre a história e política da Síria.
Voz 3: Bom, meu nome é Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto. Sou antropólogo, professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense e coordenador do Núcleo de Estudos sobre Oriente Médio, também da Universidade Federal Fluminense. A minha linha de pesquisa… Na verdade, eu tenho três linhas de pesquisa. Uma delas é o Islã no Oriente Médio contemporâneo, especificamente na Síria e no Iraque. As comunidades muçulmanas no Brasil. E também Etnicidade e Nacionalismo na Síria.
Ivan: Qual que é tua experiência com a Síria? Eu já sei alguma coisinha mas eu gostaria de que você falasse nas suas palavras.
Paulo: Bom, eu fiz trabalho de campo etnográfico na Síria, de 1999 até 2010. E pra isso, eu morei em Aleppo, no norte da Síria, de 99 até 2001, fazendo trabalho de campo com construções da subjetividade religiosa no contexto do Sufismo na Síria contemporânea. E depois, praticamente todos os anos, eu voltei pra fazer mais trabalho de campo, em períodos que variavam de um mês a três meses. E aí, com o mesmo tema, mas também com temas variados, como as peregrinações xiitas na Síria, etnicidade e nacionalismo curdo na Síria e construções do estado nacional na Síria.
Ivan: Uhum. Você tem ido pra lá ainda, mesmo depois dos conflitos?
Paulo: Não, a partir de 2010 ficou cada vez mais difícil entrar no país, e a partir de 2012 ficou realmente impossível. Até porque o meu campo, o meu campo de pesquisa empírica, era a cidade de Aleppo e o norte da Síria. E Aleppo desde 2012 é o palco das batalhas mais violentas na guerra civil síria. A cidade está praticamente destruída, né? E boa parte das comunidades com as quais eu fiz pesquisa, elas foram dispersas com seus membros ou virando refugiados fora da Síria ou se deslocando internamente na Síria ou também sofrendo a violência e, eventualmente, morrendo nos bombardeios que assolaram a cidade. Vários dos centros sufis onde eu fiz trabalho de campo foram destruídos pelos bombardeios governamentais, mas também foram destruídos por ações da oposição armada.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ahmed: Uma coisa que você talvez não vai acreditar, mas tem muitos europeus, alemão, francês que depois eles pararam trabalhar no Europa, eles compram apartamento na Síria e ficaram lá. Por que um país muito barato, muito segurança e ter que fazer tudo. Por exemplo, se você é católica, tem igrejas católicas. Se você é evangélica, tem igrejas evangélicas. Se você é judeu, tem onde você vai rezar ou fazer seus atividades, se você está muçulmano tem, se não tem religião tem como viver. Ninguém vai falar com você.
Ivan: Se você é ateu, também…
Ahmed: Não tem problema. Por que o governo de Síria não é governo do religião ou como se… laico, como se chama?
Ivan: Laico.
Ahmed: Laico. Um governo laico lá na Síria.
Paulo: Bom, sim, a Síria, ela tem um estado laico. Mas, evidentemente, o secularismo no Oriente Médio tem outra configuração do que o secularismo em outras regiões. Apesar de ser um estado laico, você tem, tinha no caso da Síria, evidentemente uma importância das identidades religiosas como forma de inserção social. Então, por exemplo, as leis que dizem respeito ao status pessoal, ao estatuto pessoal, casamento, herança, sucessão, elas eram regidas por códigos referidos à lei religiosa. Então, os muçulmanos eram regidos por um código de estatuto pessoal que era inspirado na lei, na tradição islâmica. Os cristãos eram regidos por um código de estatuto pessoal, inspirado no direito canônico de cada igreja cristã presente na Síria. E os judeus, como existia uma comunidade judaica lá, eram regidos por um código inspirado na lei mosaica. Então, sim, era um estado laico, mas esse estado laico também era atravessado por uma série de presenças das identidades religiosas. Mas tendo dito isso, na verdade, o estado sírio sempre foi um estado que tentou secularizar a sociedade. Então, você tinha a criação de uma burocracia para controlar as propriedades religiosas e o próprio stablishment religioso era submetido a uma burocracia de estado. Você tinha uma série de políticas de estado que tentavam criar um secularismo na sociedade. E depois do golpe de estado de 63, em que o partido Baaz tomou o poder na Síria, e o partido Baaz era um partido socialista e durante um tempo até de inspiração soviética, você vai ter uma série de medidas que vão tentar agressivamente, né, laicizar a sociedade. Essas medidas vão ser enfrentadas pela sociedade, vai ter uma resistência da sociedade, não tanto por que eram medidas secularizantes, mas também porque eram medidas feitas por um estado autoritário e isso tem que se entender. Era um secularismo autoritário que existia na Síria.
Ivan (narração): Para entender esta questão do secularismo autoritário e como os sírios, insatisfeitos com o regime Assad, agiam, o Paulo Hilu nos trouxe um exemplo bastante curioso.
Paulo: Na Síria, como eu disse, você tinha uma série de estruturas corporativas que obviamente a gente identifica como algo extremamente progressista, mas cujo objetivo era enquadrar a sociedade dentro de categorias do Estado. Então, você tinha o feminismo oficial, da mesma maneira que você tinha sindicalismo oficial, sindicalismo de estado. Tinha feminismo de estado. Você tinha movimentos feministas financiados pelo estado, que a ideia era libertar as mulheres, et,. etc, etc. Para servir ao Estado, óbvio, né? Então é uma das coisas que os analistas ocidentais têm uma certa dificuldade de entender, que dentro desse contexto uma mulher que usa o véu e fica dentro de casa, ela tá recusando o controle do Estado sobre o seu corpo e seu destino. Então, não é a toa que o Islã se torna uma espécie de linguagem de protesto diante desse secularismo, desse feminismo secular de Estado, num estado autoritário, né? Então, você tinha, sim, uma série de… As mulheres participavam do mercado de trabalho, da vida assim… vida… da suposta vida política do país, né. Em teoria. Ou seja, elas serviam como ministras do Governo, etc. etc. Mas, claro, você tinha uma série de desvantagens e de entendimentos dos direitos femininos.
Ivan: Uhum. Ou seja, só pra esclarecer qualquer visão turva de que, como a maioria é muçulmana…
Paulo: Não. Não.
Ivan: … Mulher não vai poder fazer… etc. Como na Arábia Saudita. Que todo mundo pensa na Arábia Saudita, né, na verdade.
Paulo: Elas faziam tudo, inclusive servir ao exército.
Ivan: Uhum.
Paulo: Tá. Você tinha brigadas femininas no Exército. Que eram voluntárias, não era obrigatório. Você tinha essa ideia revolucionária que a mulher era igual o homem, então, ela tem que sair pra sociedade, etc. e tal. Só que isso num contexto autoritário, né. Ela é igual ao homem e, como homem, tem que servir ao Estado.
Ivan: (riso) E daí que, como você bem falou, que o Islã se torna uma forma de protesto, nesse caso.
Paulo: Claro. Óbvio.
Ivan: Perfeito.
Paulo: Exatamente. Então, a mulher que diz, “Não! É pra eu me mostrar? Eu vou me cobrir”. “É pra eu trabalhar? Eu fico em casa”. (Ivan ri) É, exatamente. Isso, assim, não entra na cabeça dos jornalistas ocidentais.
Ivan: Sei, sei… Não, e é de uma subversão maravilhosa, assim, né (ele ri).
Paulo: E é o mesmo mecanismo que levou enorme apoio feminino ao Aiatolá Khomeini, na Revolução Iraniana.
Ivan: Aham, sim.
Paulo: Porque o Xá do Irã tinha o mesmo projeto de libertação autoritária das mulheres, né.
Ivan: Ou seja, isso é engraçado, falando do Irã, quando você vê aquele filme Argo, por exemplo, lá passam avisando que o Xá era maravilhoso…
Paulo: Uhum.
Ivan: Claro, porque é um filme feito pelos Estados Unidos, né. Sim.
Paulo: Sim, exatamente. Era maravilhoso pros Estados Unidos, sem dúvida. (Ivan ri) Não há dúvida, né.
Ivan: Sim, sim…
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan (narração): Quando Paulo Hilu fala sobre secularismo autoritário, devemos entender o impacto disso numa região do mundo em que, como já vimos em episódios anteriores, Religião e Estado sempre andaram muito próximos. Logo, sem dúvida, desde a década de 60, existiram grupos que não ficaram satisfeitos com isso. E para entendermos a proporção dessa questão, devemos fazer uma explicação sobre a família Assad, que comanda o país desde a década de 70, e este secularismo sírio, que é diferente do ocidental.
Elia: (incompreensível) nós temos. Três tipos de muçulmano. Xiita, Sunita e Alauita. Partido de Hafez Al-Assad são Alauita, minoria também. Quem é maior lá, sunitas.
Paulo: É, os Alauitas são um ramo do Xiismo, tá. O Xiismo tem uma série de ramos e de seitas, os Alauitas, eles são a convergência, na verdade, de dois ramos. Dos Xiitas setimanos, que são os que aceitam até o sétimo descendente de Muhammad, o Sétimo Imã; E os xiitas duodecimanos, que são até o décimo segundo descendente de Muhammad; e um pequeno ramo que é unodecimano, aceita até o décimo primeiro. Então, diferentes tradições xiitas, dessa maneira, vão se encontrar e vão formar a tradição alauita, tá. Que é prevalente nas montanhas da Síria e no norte do Líbano. Então, basicamente, é um grupo religioso que, por conta das suas crenças, né, eles acreditam, obviamente, eles são xiitas, têm a devoção à família do Profeta e aos Imãs, eles também acreditam na reencarnação, como boa parte de algumas seitas xiitas, né. E por conta das suas crenças, eles foram perseguidos, né, pelos muçulmanos, principalmente pelos muçulmanos sunitas, tá. Então, eles vão encontrar um nicho, um refúgio nas montanhas da Síria e do Líbano, e vai ser uma população rural, bastante pobre, até o século 20, tá. E esses alauitas da montanha, eles, obviamente, encontravam trabalho ou nas fazendas dos vales em torno das montanhas, ou nas cidades da costa. E lá eles trabalhavam, justamente, pra proprietários de terra, ou para patrões que eram muçulmanos sunitas, e aí, sofriam uma enorme discriminação, né, que eram tratados de maneira bastante dura, tanto por conta de suas crenças, quanto pelo fato de serem uma população pobre e rural, né. Então, no século 20, a partir da… do mandato francês, que dura de 20 a 46, 1920-1946, na Síria, você tem o recrutamento desses alauitas pra servirem no exército. O Exército era uma forma deles ascenderem socialmente. Então, esse era um mecanismo de ascensão social pra eles. E, no Exército, eles entram em contato com uma série de ideologias políticas, entre elas o Baazismo, né, o partido Baaz, que atrai eles, uma vez que era o Partido que pregava justamente um secularismo bastante grande da sociedade, e que todos seriam iguais, né. Então, é a partir daí que você vai ter um grupo de oficiais alauitas que vai participar do golpe de Estado de 63, né, e que gradualmente, dentro das lutas políticas, vão ascendendo e, em 1970, você tem um golpe dentro do golpe, que o Hafez Al-Assad, o pai do Bashar Al-Assad, toma o poder na Síria. O regime sírio não é um regime sectário, né, não é um regime alauita por si. Mas as relações pessoais, né, com a família do Presidente contam pra você participar do círculo do poder. Então, isso faz com que, obviamente, os alauitas sejam sub-representados nesse círculo do poder.
Ivan (narração): Além dessa configuração política, há também um outro problema aí. Existem muçulmanos que não consideram os alauitas como praticantes da religião islâmica. Eu perguntei ao Paulo Hilu sobre isso.
Paulo: Então, o Alauismo… Os alauitas,na Síria, são um grupo religioso. E, em 73, e desde o final do século 19, esse grupo religioso, ele vai se aproximar do xiismo duodecimano, do xiismo que é majoritário no Irã e no sul do Líbano. Então, sheiks alauitas, líderes religiosos alauitas vão estudar nos grandes centros teológicos de Khom, ou de Nadjaf e de Karbala, desde o final do século 19. E uma outra característica dos alauitas, que é uma característica de todas as seitas xiitas, principalmente saídas do Xiismo Setimano, é que o saber religioso é secreto. Ele é passado através da iniciação dentro de determinadas famílias que detêm o conhecimento religioso. Então, os alauitas não têm rituais públicos, não têm locais públicos de prática religiosa, né. O único local público de prática religiosa entre os alauitas são os túmulos dos sheiks, dos homens santos, em que as pessoas visitam, fazem pedidos, fazem orações, etc. Então, essas características que sempre fizeram com que eles fossem vistos com desconfiança dos outros muçulmanos. Mas, efetivamente, isso é uma coisa presente em várias outras seitas muçulmanas. Então, não é só os alauitas que são assim. Os ismaelitas também têm a mesma característica, né. Os drusos têm a mesma característica. Então, isso não é exclusividade deles. Uma acusação que eles não seriam muçulmanos. Mas, em 73, né, o Moussa Sadr, que era o grande líder xiita do Líbano, declara que os alauitas fazem parte do Xiismo. E antes disso, nos anos 30, né, o Mufti de Jerusalém, né, o Husseini, declara numa Fátua, em que os alauitas eram muçulmanos plenos. Então, você já tem o reconhecimento histórico dos alauitas como muçulmanos e… Embora eles enfrentem, e têm enfrentado historicamente, todo um passado de perseguição e de descriminação por conta das suas crenças e práticas religiosas.
Ivan: Mas os muçulmanos da Síria o reconheciam como… Os reconheciam como muçulmanos também, apesar dessas Fátuas?
Paulo: Efetivamente, eu nunca vi um muçulmano dizer que eles não eram muçulmanos, ta. Agora, por exemplo, na… Nos anos 70 e 80, quando você tinha a agitação política, né, da irmandade muçulmana contra o governo do Hafez Al-Assad, a irmandade muçulmana, volta e meia, fazia a acusação de que os alauitas seriam muçulmanos… Né, com menos pedigree do que os outros. Ou de que eles teriam práticas que seriam pouco islâmicas, etc. Mas… ah… A revolta contra… Tanto o Hafez Al-Assad quanto o Bashar, não é porque eles são alauitas, né. Efetivamente, né… Por isso… E além do quê, não é toda comunidade alauita que se beneficiou do regime. Não é à toa que várias regiões em que houveram protestos, você tinha população alauita participando.
Ivan: É, eu até tava vendo que era uma… A questão dos alauitas serem beneficiados é mais que os regimes Assad sempre tiveram o cuidado de colocar alauitas próximos da família em altos cargos do Exército, por exemplo, né.
Paulo: Isso. Exatamente. Então, os alauitas próximo da família, sim, se beneficiaram enormemente. Mas os que não tinham nenhuma conexão, não.
Ivan: Certo.
Paulo: E, por exemplo, a próprio… A autoridade religiosa tradicional dos alauitas, ela, basicamente, foi ignorada pelo regime. Sempre. Então, você não tem… Porque o regime sempre, pelo menos publicamente, proclamou uma identidade muçulmana genérica pra todos. O próprio Hafez Al-Assad e Bashar Al-Assad nunca rezaram em mesquitas xiitas, eles sempre rezavam em mesquitas sunitas. Você não tinha nenhum sinal deles, que eles pertenciam ao Xiismo ou à comunidade alauita. Eles se apresentavam como muçulmanos, ponto.
Ivan: é… O que pode ser… É uma estratégia política, daí, né. Aparecer em mesquitas sunitas, que é a maioria da população.
Paulo: Exatamente, é uma estratégia política, mas também faz parte de todo o projeto que esse regime tinha pros próprios alauitas, que era, de certa maneira, se integrarem a uma elite urbana que era sunita. Né, o Bashar casa com uma mulher sunita, a esposa dele era de uma família sunita.
Ivan: Ou seja, apesar do regime da família Assad não ser um governo teocrático, os alauitas acabaram se tornando uma espécie de minoria numérica privilegiada. Se você fosse desse ramo e tivesse boas relações com a família do presidente, poderia ascender a cargos políticos mais elevados. Coisa que não aconteceria se você fosse de outro ramo do Islamismo. Tendo em vista que, por séculos, os alauitas sofreram repressões por conta de suas crenças, quando se tornaram mais presentes no Exército e no Governo, acabaram por virar o jogo político.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Paulo: O último censo que teve a pergunta sobre religião, na Síria, foi em 1960, ta. Era proibido perguntar sobre religião, na Síria. Mas você tem projeções de demógrafos, tá. A projeção, basicamente, mais confiável é a seguinte, você teria algo em torno de 12 a 15% de alauitas na população. Uma população de 20 milhões, tá. Os cristãos seriam entre 5 e 7% da população. Aí, você tem pequenos grupos, como os drusos, com 4%; os maelitas, com 1%. Os muçulmanos sunitas, né, seriam algo em torno de 70 a 75% da população, mas esses muçulmanos sunitas, também tem que lembrar, são extremamente diversos entre si. Você vai ter sufis, não sufis, você tem os curdos, que são muçulmanos sunitas, você tem árabes muçulmanos sunitas; tem muçulmanos urbanos, muçulmanos rurais. Ou seja, né, a ideia de que você tem um bloco muçulmano sunita é uma ilusão, né. Os próprios muçulmanos sunitas são fragmentados em grupos muito menores. Então, a Síria, né, ela apresenta uma sociedade extremamente diversa e multi religiosa.
Ivan: Uhum. Tem salafitas?
Ivan (narração): Só lembrando, o Salafismo é uma das escolas de pensamento mais radicais do Islamismo, sendo a base de muitos dos grupos terroristas que conhecemos hoje, assim como o Wahhabismo, que deriva dele. Mas é sempre bom lembrar, nem todo salafista é terrorista.
Paulo: Tem, mas muito pouco. A Salafia, na Síria, sempre foi fraquíssima, porque ela enfrentava uma oposição ferrenha dos sufis, e os sufis controlavam a autoridade religiosa. Então, a Salafia, na Síria, e isso é interessante, ela é rural. Ao contrário de outros países, em que ela é urbana. Ela é rural e não é à toa, parte das regiões das revoltas passa pelo território onde a Salafia é presente. Os salafistas participam da revolta. Mas eles nunca controlaram a revolta, na época da revolta civil, né, dos protestos. E os próprios salafistas também têm uma série… Então, eu me lembro, por exemplo, num vídeo de um protesto em Homs, em que você tem o debate se as mulheres podiam ou não podiam participar. E isso termina em pancadaria geral. (Ivan ri) Porque os próprios salafistas não conseguiam chegar numa conclusão(ambos riem). Porque você tem essa diversidade muito grande, né.
Ivan: Uhum. É, a gente tenta te… Pra tentar encaixar e entender o que acontece no Oriente Médio, a gente tende a dizer, “salafistas são radicais”, mas também não são… Não necessariamente…
Paulo: Não, mas você tem um enorme ramo dos salafistas que são apolíticos. Eles tem três grandes ramos, e um deles é apolítico.
Ivan: Caramba.
Paulo: é. E, na Síria, os apolíticos eram extremamente fortes.
Ivan: Porque se beneficiavam, com certeza, né.
Paulo: Não. É uma posição clássica deles. Era uma posição clássica desses salafistas que você não se envolve em política porque o Estado não faz parte, justamente, do seu projeto de salvação. Tanto faz quem governa ou quem não governa.
Ivan: Mas o que caracteriza ele como salafista, então? O que faz ele dizer, “eu sou salafista”, se ele não tem essa discussão de Estado? Porque, pra mim, salafista é aquele cara que te…
Paulo: Não. Não tem nada a ver com discussão de Estado, tá. A Salafia é um movimento reformista muçulmano que é caracterizado por um neo-randalismo, que eu já traduzo isso pra você, que é basicamente o seguinte, a postura de que o Islã se resume ao que está no Alcorão e nas tradições do Profeta. E tudo que não está ali não é islâmico. Então, rezar cinco vezes, obviamente, está ali. Mas culto dos santos não tá. Então, os salafistas rejeitam o culto dos santos, rejeitam uma série de práticas, né, religiosas tradicionais. Eles têm uma preocupação enorme, justamente, na criação de espaços de gênero, que homens e mulheres não relacionados não se misturem, e por aí vai, tá. Mas a Salafia não é uma doutrina política.
Ivan: Então, quando a gente tava falando, por exemplo, do Salafismo que vai gerar… Que vai tá ligado a grupos terroristas, a gente tá falando mais do Wahhabismo mesmo?
Paulo: É do Salafismo jihadista que tem uma influência wahhabista, às vezes. É o que eu chamo dos jihadistas, tá.
Ivan (narração): Então, recapitulando. Lembram quando o Ahmed nos disse que, na Síria, é feio perguntar sobre a religião do outro? De fato, isso ocorre, mas muito por conta de um processo que a família Assad impôs, em impedir que a religião e o Estado tivessem relações mais próximas, pelo menos oficialmente, como foi o caso de países ao redor da Síria. Mas, ao mesmo tempo, tendo em vista que é um governo autoritário, isso não impediu que a religião fosse usada como laço de confiança para nomeação de cargos políticos, especialmente por debaixo dos panos. E é por isso que o caso da Síria é tão particular do Oriente Médio. Quando olhamos para aquela região e estranhamos toda relação entre política e religião, tendemos a achar que seria muito bom se as pessoas pudessem separar uma coisa da outra, para evitarem tantos conflitos. E foi esse o pensamento da família Assad, tendo em vista que, sendo parte da minoria alauita, sofriam perseguições religiosas e desejavam um governo que permitisse liberdade para eles. Mas a via autoritária trouxe consequências.
Paulo: Com o tempo, né, você vai ter, inclusive, um período que você teve uma guerra civil na Síria, em que a oposição, liderada pela Irmandade Muçulmana, vai tentar se opor ao regime…
Ivan (narração): A Irmandade Muçulmana é um movimento político fundado na década de 1920, no Egito, mas que atua em mais de 70 países. Eles são sunitas-salafitas. Como Paulo Hilu mencionou há pouco, o Salafismo tem algumas linhas de pensamento. E ele citou duas. De um lado, os apolíticos, que acreditam que o Islamismo deve ser voltado apenas à prática religiosa; e num outro extremo, os jihadistas, que acreditam que o caminho da violência pode ser justificado para a expansão do Islamismo, que é a corrente que grupos terroristas famosos seguem. E existe, ainda, uma via intermediária, que a gente não citou, que é o Salafismo político, que acredita na prática de um Islamismo puro, mas que ele deve ser divulgado e expandido através da política, às vezes com violência, às vezes, não. Lembram das eleições do Egito, após a queda do ditador Mubarak? Morsi, o presidente eleito, era da Irmandade Muçulmana.
Paulo: Isso leva a um conflito bastante sangrento em 82, na cidade de Hama…
Ivan (narração): Há pouco, o Ahmed havia nos dito que a Síria nunca havia passado por uma guerra civil e, infelizmente, não é bem assim, como pudemos notar na fala do Paulo. Hama é considerada a quarta maior cidade da Síria e, na década de 70, num levante da Irmandade Muçulmana contra o governo de Hafez Al-Assad, ela tornou-se um ambiente de guerra que durou anos e resultou em milhares de mortos. Contudo, para ser justo com Ahmed, a guerra civil em Hama foi um conflito bem localizado e que foi sufocado, de forma eficaz, pelo governo Assad. A guerra que o país enfrenta hoje é sem proporções e, sem dúvida, sem precedentes na sua história contemporânea.
Paulo: E depois desse conflito, duas coisas acontecem, né. Por um lado, o Islã político perde força. Então, o Islã político deixa de ser veículo da resistência ao regime, da oposição ao regime. Por outro lado, o regime deixa, ele abandona a sua tentativa de controlar e de modificar a sociedade síria à sua imagem. Então, o regime também começa a se acomodar com as estruturas sociais e culturais da Síria.
Ivan (narração): Eu espero que, aqui, tenha ficado claro para vocês como é difícil entender o conflito na Síria. Por um lado, temos um governo ditatorial que assumiu por conta de uma motivação de secularizar o país, tendo em vista que faziam parte de uma minoria perseguida e, ao assumirem, buscam impor um modelo de Estado que não agrada todos da população, mas que reprime com violência qualquer manifestação de insatisfação. E como esse jogo de tensões só tende a crescer, um grupo religioso, como a Irmandade Muçulmana, acabou tentando um levante que resultou no massacre da cidade de Hama, entre as décadas de 70 e 80. E alguém poderia dizer, “Que bom que o governo sírio sempre lutou contra pessoas que querem a religião se metendo na política. Eles defendem um modelo de um Estado secular”. Mas, novamente, temos que nos lembrar das motivações que levaram a família Assad ao poder. E por conta disso, não é difícil supor que essa separação não é tão evidente assim quanto imaginamos.
Paulo: Então, sim… Digamos assim, de 85 até 2010, você tinha uma situação em que você tinha um Estado laico que reconhecia a presença e a importância das comunidades religiosas, por um lado. E por outro lado, esse Estado nunca se furtou em manipular as diferenças religiosas pros seus interesses. Então, embora fosse um Estado oficialmente laico, era um Estado que também, de certa maneira, quando lhe interessava, jogava a carta religiosa.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan: É… Até sobre isso também, eu até tava entrevistando hoje um cara que tava no Egito, durante a Primavera Árabe. Ele me mencionou uma coisa interessante, que eu até agora não tinha parado pra pensar, que ele me disse que os países árabes, eles não têm lei civil. São todos Personal Status Law, como você falou…
Paulo: É isso… Isso que eu falei. Isso que eu acabei de falar, da lei do estatuto pessoal. Mas não são só os países árabes não, tá. Israel também não tem.
Ivan: Ah, tá. Ok (eles riem).
Paulo: Entendeu? (entre risos) Não é só o mundo árabe. E a Turquia, que é um país muçulmano, tem. Entendeu. Na Turquia, quem rege o estatuto pessoal é a lei civil. Tem casamento civil na Turquia. Mas, nos países árabes… Com exceção da Tunísia, a Tunísia também tem lei civil, tá. Então, os dois únicos países do Oriente Médio, do norte da África, em que tem lei civil é a Tunísia, que é um país árabe, e a Turquia, que é um país não árabe, mas de maioria muçulmana. E um país não árabe e não muçulmano, como Israel, não tem também. Quem rege casamento, herança e sucessão, em Israel, é a lei religiosa. Muçulmana pros muçulmanos; judaica pros judeus; e cristã pros cristãos. Então, por exemplo, um católico, em Israel, não pode se divorciar.
Ivan: Aham. Ah, certo. E ateu não existe…
Paulo: Você pode ser ateu, mas ser ateu não é um… Aí, é outra questão importante pra entender essa sociedade. A sua identidade religiosa é independente da sua crença. Você pode ser um ateu registrado como muçulmano. Na Síria, eu tinha vários amigos ateus. Vários. Mas, do ponto de vista do Estado, quando ele for casar, quando ele for morrer, quando ele for fazer um testamento, ele tá submetido à lei islâmica. Da mesma maneira, um ateu cristão vai tá submetido à lei canônica da sua igreja.
Ivan: E daí, já vem uma curiosidade. É possível casamento entre pessoas de out… De religiões diferentes? Exemplo, cristão com muçulmana?
Paulo: Na Síria, sim. Na Síria, sim, era permitido. E aí, você tinha uma hierarquia de status, né, de estatutos. Então, por exemplo, se um cristão quer casar-se com uma muçulmana, ou… Né, uma cristã casar-se com um muçulmano, que regeria o casamento era a lei islâmica. Ponto. Casamentos entre cristãos de diferentes igrejas, aí, você poderia optar por qual igreja vai ser regido, tá. E mesma coisa entre judeus e cristãos, ou entre judeus e muçulmanos, tá. E tanto os cristãos quanto os judeus poderiam optar pela lei islâmica, caso quiser. Isso, na Síria, né. Em outros países, por exemplo, em Israel, não pode um judeu casar com um não judeu. Se você for casar, vai ter que se converter. E no caso dos países do Oriente Médio, também, uma mulher muçulmana não pode casar com um não muçulmano. Um homem muçulmano pode, mas a mulher não pode, tá. Se a mulher for casar, o cara vai ter que se converter.
Ivan: O que deve gerar uma série de situações bem complicadas, assim, né?
Paulo: Sim, sim. Mas, por exemplo, na Síria, tinha uma coisa que mostra também essa questão da secularização do Estado, mesmo da lei religiosa. Era possível um muçulmano se converter a outra religião na Síria. Isso era permitido. Embora isso seja contra a lei islâmica. Isso é proibido na lei islâmica. Mas, em teoria, na Síria, isso era permitido, embora, claro, socialmente isso fosse muito difícil, né. Então, você tinha casos de muçulmanos que se convertiam ao cristianismo, não só a família se opunha, mas também eles tinham uma grande dificuldade em mudar o registro deles.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan (narração): No próximo programa…
Elia: Hora que começaram na Líbia, na Egito… Lembra? Teve revolução na Líbia e na Egito. Mataram Kadaf e depois foram tirar Hussein de poder de Egito. Falei, “Opa! Vai chegar na Síria isso aí”.
Ahmed: Minha mãe ficou me ligando. “Ah, onde você tá?” Eu falei, “Estou no essa rua”. “Ah, volta, volta!” “Por quê?” “Tem manifestação!” “Mas, mãe, não tô olhando nada”.
Paulo: você tem uma entrevista com ela que ela diz o seguinte, “Eu não tenho medo do Governo, porque eu sou famosa demais pra eles me matarem. Mas eu tenho medo da minha família.”
Ivan (narração): Como começou a atual guerra na Síria? Quando foi que o Ahmed e o Elia perceberam ela? E o mais importante, quem está lutando contra quem? Aqui, no Projeto Humanos, “O Coração do Mundo”.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan (narração): O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Se você gosta do nosso trabalho e gostaria que ele continuasse, você pode contribuir através do link na postagem. Agradecimentos especiais a Elia, Ahmed Nurala, Paulo Hilu e sua prima, Luciane, que me colocou em contato com ele. Nos vemos no próximo programa.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
FIM
Transcrição por Cadu Carvalho, Zé Roberto, Matheus Souza, Dyane Guedes Cunha, Sidney Andrade. Edição por Sidney Andrade. Revisão por Jean Carlos Oliveira Santos