10 – Ser Refugiado

9 de maio de 2016

No décimo episódio da série O Coração do Mundo, concluímos as histórias de Ahmed e Elia, que apresentamos nos últimos dois episódios. Como que Ahmed chegou no Brasil? Como foi o seu processo de tornar-se refugiado aqui? Por que há tantos sírios indo para a Europa? O que buscam lá? E quais as dificuldades que Elia passa por trazer refugiados para o país? O governo brasileiro ajuda de alguma forma? Um retrato esclarecedor sobre as dificuldades de se refugiar no Brasil, algo que é pouco debatido e esclarecido na imprensa nacional.

Arte da capa por Amanda Menezes
Crédito da Foto: Santo Palacios/AP
Lettering por Luiz Amorim


A música utilizada no final do programa foi cordialmente cedida pela banda síria Khebez Dawle e se chama Bel Share, que significa “Na Rua”. É uma linda peça artística a favor da liberdade no país, e você pode conferir o vídeo e sua letra logo abaixo.

Na rua
Na rua hoje, eu encontro a mim mesmo
Cem cores
Agora eu posso expressar-me sobre mim e você
Eu posso escrever meu nome e o seu
Entre aqui e ali,
de uma vizinhança a outra.

E agora, simplesmente, podemos viver na rua. (x2)

Na rua hoje, minha voz e a sua podem ser ouvidas
de todo o lugar do mundo.
O tempo respira liberdade conosco
e o mundo permanece o que é,
mas nós somos aqueles que podem mudar.

E agora, simplesmente, podemos viver na rua. (x2)

Transcrição

Ivan (narração): Ei, pessoal, aqui é o Ivan. E eu queria passar alguns avisos antes de começarmos o programa de hoje. O primeiro aviso é que este é o episódio que encerra a participação do Ahmed e do Elia, os sírios que entrevistei. O segundo é que este não é o último episódio da temporada. Mas eu vou precisar dar uma pausa nela. Como vocês devem saber, eu sou professor universitário, e essa temporada deu um trabalho gigantesco de produzir. E tendo em vista o trabalho que o Projeto Humanos me dá, eu só consigo trabalhar nele com dedicação exclusiva durante as minhas férias. E foi isso que fiz durante os meses de dezembro, janeiro e parte de fevereiro de 2016. E neste tempo, eu só consegui terminar 10 episódios, sendo este aqui o último da primeira leva. Eu entro novamente em férias em julho, quando pretendo terminar a segunda leva de episódios. Ou seja, nós devemos voltar com mais histórias do Oriente Médio em agosto. E eu calculo que serão entre quatro e seis episódios, tudo depende do que eu vou conseguir extrair das entrevistas que tenho gravadas. Só pra vocês terem uma ideia, eu tenho mais de 50 horas de áudio bruto. E todos esses áudios, fui eu que corri atrás de fontes, gravei, transcrevi, estruturei e editei. E só na questão de edição, pra cada 10 minutos que vocês ouvem, são mais de 2 horas de trabalho. Ou seja, eu preciso de tempo. Por isso, eu peço desculpas por essa pausa, mas eu prometo que vai valer a pena. O que eu posso fazer, por enquanto, é adiantar alguns dos temas que vamos abordar. Teremos histórias de brasileiros que trabalham em campos de refugiados no Oriente Médio, com histórias bem diferentes das do Elia e do Ahmed. Teremos a história de um brasileiro que foi preso na Síria e teremos também histórias de pessoas que experienciaram a linha de batalha com o autointitulado Estado Islâmico. Eles estiveram lá e têm histórias fantásticas para contar. Bom, o terceiro aviso é a resposta para a sua pergunta, “Então, eu vou ficar sem Projeto Humanos?” E eu te respondo. Bem, vocês lembram quando, no início desse ano de 2016, eu lancei alguns episódios especiais de crônicas produzidas por pessoas que eu estava treinando no formato storytelling? Então, eles produziram algumas histórias fantásticas, que deverão entrar aqui como off season muito em breve. E quando eu digo que algumas dessas histórias são fantásticas, eu juro que não estou exagerando. Algumas delas me deixaram arrepiado, e tenho certeza que causarão o mesmo efeito em vocês. E por isso eu peço, por favor, assinem o nosso feed. Assim, vocês poderão ficar atualizados quando os programas saírem. E, quando você fizer isso, se quiser, já pode nos avaliar no iTunes também, pois isso ajuda o programa a aparecer nos destaques do iTunes e trazer mais ouvintes. Bom, por fim, eu gostaria de agradecer imensamente a todos vocês que estão me mandando mensagens pelo Twitter, email, nos comentários, elogiando essa temporada. Eu tinha um medo absurdo de que talvez ela não agradasse tanto vocês quanto a primeira temporada agradou. E é muito, muito legal receber os seus feedbacks. Uma das maiores paixões que eu tenho é produzir conteúdo desse tipo para vocês. E é por isso que já adianto a importância de suas doações pelo nosso Patreon. É com aquele dinheiro que eu consigo investir mais em equipamento, tempo e inclusive pagar o Felipe Ayres, que é editor do Anticast, e tem dado um tratamento final nos arquivos que vocês estão ouvindo. Por isso, se você tiver como ajudar, eu agradeço imensamente. E, se você não tiver como contribuir com um dólar por mês, eu peço que pelo menos espalhe o Projeto Humanos por aí, assine o nosso feed e nos dê um review no iTunes. Esse apoio já é fantástico e eu serei eternamente grato a todos vocês. Muito obrigado por mudar a minha vida. E eu espero que, de alguma forma, eu tenha mudado a de vocês também. Espero que gostem deste programa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Quando que vocês começaram, daí, a falar… dizer… quanto tempo demorou pra vocês falarem, “A gente vai sair daqui”?

Ahmed: Na verdade, o ideia… minha mãe… resistiu três anos. A gente, por três anos, falaram, “Nunca vai sair, o guerra vai acabar, o… Não sei, uma coisa vai acontecer”. Mas, depois três anos, os terroristas ficou o lado tudo Damasco, eles entraram muito cidade lá na Síria. Eles… os histórias que você ficou… que você fica escutando, é muito horrível, tal. A gente desistiu totalmente. Depois, o carro bomba do… em frente do… do trabalho da minha irmão. Depois, o escola da Nura, sim. Cortou água, por… semanas. Cortou a eletricidade por semanas. É… a gente estava com muito medo por causa da minha mãe, também. Então, a gente decidiu de sair.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Como bem sabemos, a guerra na Síria gerou uma das maiores crises humanitárias do século 21. Cidades inteiras foram destruídas e quem sobreviveu e não quis lutar, seja para que lado fosse, viu-se obrigado a se deslocar para outro lugar. E aqui vale mencionar alguns dados. Segundo a ONU, até 2010, a Síria contava com uma população de 20 ponto 6 milhões de habitantes. Desde o início da guerra, estima-se que 4 ponto 7 milhões de pessoas saíram do país. E, além desses 4 ponto 7 milhões, mais de 6 ponto 6 milhões se deslocaram internamente no país. Ou seja, praticamente um quarto da população síria saiu de lá. E uma parcela ainda maior, pelo menos, se deslocou da sua cidade natal. Em outras palavras, metade da população se mexeu. E como não podia ser diferente, uma onda migratória dessa magnitude chocou o mundo.

(INÍCIO DE MONTAGEM DE CLIPES DE ÁUDIO: MATÉRIAS TELEJORNALÍSTICAS)

William: Arlene Clemesha.

Arlene Clemesha: William, o que tão chamando de crise de refugiados não é passageiro, é muito mais um desastre humanitário que veio pra ficar por muito tempo. E é, como, que resposta, né, tá vindo, por parte da Europa? Como se fosse um problema militar, como se fosse uma questão de erguer muro. A Hungria tá construindo um muro de 4 metros de altura, 177 metros de comprimento, na fronteira dela com a Sérvia… com a Hungria. Na fronteira da Hungria com a Sérvia, né.

Evaristo Costa: O mundo assistiu hoje a mais um capítulo da crise humanitária dos imigrantes na Europa. Bom, de manhã, houve um confronto na fronteira ali da Grécia com a Macedônia, quando os refugiados derrubaram a cerca que foi erguida em novembro do ano passado, justamente pra conter a passagem deles. A maioria desses imigrantes foge da guerra civil na Síria.

Guilherme Menezes: Nos Estados Unidos, o candidato favorito à indicação no partido Republicano, Donald Trump, propôs a proibição da entrada de muçulmanos no país.

Arlene Clemesha: Ah, outras medidas estão sendo tomadas, como se o problema fosse só os traficantes, como se não fosse uma enorme de uma questão, que deveria ser tratada como uma questão de desenvolvimento das regiões que estão em crise, onde não há condições de vida, uma questão que seria necessário, ah, ser vista como necessidade de criar condições pra essas pessoas não terem que fugir de onde tão fugindo. E tão fugindo de uma maneira e com um ímpeto e com um desespero que chegou ao ponto de furar os barquinhos onde estão, pra…  assim que avistam, no mediterrâneo, um bar… né, um barco de polícia, de fronteira, de guardas ali no Mediterrâneo, furam o próprio barco pra serem resgatados. O desespero é tamanho que as pessoas se enfiaram nesse… ah… caminhão, sem condições de respirar. Que desespero é esse, é uma coisa maluca, é uma coisa atroz. E isso tá tendo que resposta da União Europeia? Como se fosse uma crise. Como se fosse algo, assim, pontual, passageiro, “não, não, pera aí, vamos conter, vamos colocar mais arame farpado, vamos erguer um muro”, né. Isso é… algo assim, impensável que a Europa esteja agindo como se fosse… Não tá dando uma resposta à altura do que a gente vem, desde a Segunda… do final da Segunda Guerra Mundial…

Jornalista 1: … Sandra, é que projeto, de Europa…

Jornalista 2: … é que falta um consenso entre os países europeus. E quando a gente acha que já viu as piores cenas desse drama, surgem novas. Imagens de desespero absoluto, de pessoas com fome, frio (sons de gritaria ao fundo) e pressa pra recomeçar a vida.

(FIM DA MONTAGEM)

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Como chegamos neste ponto? Quando que os sírios começaram a sair de suas casas e por quê há tantos que tomam medidas tão drásticas para fugir de lá?

Ahmed: Foi um decisão, assim. (suspiro) Vamos sair, não dá pra ficar, vamos sair. A gente…

Ivan (narração): Este é o Ahmed, refugiado sírio vivendo em Curitiba.

Ahmed: A gente tentou antes de sair pro Brasil, a gente tentou França, Alemanha, sabe, assim… A problema lá, se você vai para caminhos legais, você precisa fazer pedido, eles vai aceitar você. Eles pode aceitar você. Por exemplo, agora, com o meu certifica, eu posso viver na França, mas sozinho. Eles não aceitam minha família.

Ivan: Por que não?

Ahmed: Porque sim! Eles não querem que… comunidade muçulmana aumenta. Eles pensa assim. “A gente vai aceitar você, mas não a sua família”. Meu irmão, a mesma coisa. No Alemanha, sabe, no Canadá, sabe, mesma coisa. A gente vai aceitar você, mas sua família não. Porque, pra elas, você é uma pessoa individual. A gente não… não se importa pra nós. Se você tá com família, com mãe, mãe tá cansada, irmã tá pequena, menor… não importa isso. A gente vai ligar pra isso. Tá. Isso é só problema.

Ivan (narração): Eu não consegui verificar se essa resistência à entrada de muçulmanos no território europeu e norte-americano por meios legais de fato ocorre. Primeiramente, porque, se de fato ela existe, seria difícil de ser comprovada por meios oficiais, o que envolveria declarações das embaixadas dos países. Contudo, alguns diplomatas com quem conversei falaram que não duvidam que exista isso. E se partirmos do relato do Ahmed, temos uma explicação mais precisa acerca do motivo pelo qual tantos refugiados optam em ir de barco até a Europa, ou a pé. Seria a única forma de conseguirem ir com suas famílias. Por meios legais, haveria impedimento.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Elia: 2013.

Ivan: 2013.

Elia: Não, 2012. Final de 2012.

Ivan: Certo.

Ivan (narração): Este é o Elia, cristão sírio que vive no Brasil desde a década de 70.

Elia: Fui pra Estados Unidos, conheci meu primo Amin, tem joalheria lá e tem sobrinho, minha irmã mora lá, tudo. Foi visitar eles. Aí, voltei. Síria começou povo sair na rua pouco. Ligou pra mim meu primo, de Estados Unidos, chegou… pediu de mim um favor. Falei, “O quê?”, ele, “Porra, eu tenho dois sobrinhos, as dois nomes aqui. Eu pego um, você pode levar outro.” Falei, “Com o maior prazer, primo”. Aí, liguei pra Zé, que nem conhecia ele. E não conheci, mas conhece o pai dele, meu primo. Liguei pra ele, ele falou, “Meu filho tá saindo de exército, machucou, quero liberar ele pra não… foi… pra eles não chamar ele de volta.” Aí, então, peguei ele. Chegou aí e ficou comigo em casa quase nove meses. Tá aí ainda. Aí, falou, “Ah, vamo buscar pai e mãe”, começou as coisas a ficar feio lá. Trouxe pai e mãe dele. Ele trouxe as tia dele, aí, começou família meu primo, isso aí que eu lembro. Através, depois outro amigo, outro parente, tudo de bairro. Tem gente nem co… não lembrava mais. Mas como a situação tava cada vez pior, aí, chegaram 60 pessoa.

Ivan: Sessenta…

Elia: Dono dessa oficina, uma amigo meu que eu trouxe, ele, nome dele é Isair. Eu ajudo ele aqui, sem lucro nenhum, só tô ajudando essa sírio aí trabalhar, ganhar dinheiro com honestidade.

Ivan: Uhum…

Elia: Com trabalho.

Ivan: Sim.

Ivan (narração): Ok, se quisermos entender mais sobre a crise dos refugiados sírios, nós precisamos fazer uma explicação aqui. O estatuto de refugiados que hoje é adotado pela ONU tem sua origem em 1951. Na convenção em Genebra, que ocorreu naquele ano, para debater sobre o status de pessoas que haviam deixado seus países na Segunda Guerra Mundial. E por conta de novas situações geopolíticas, essa Resolução teve um adendo em 67, que buscava ampliar as definições do que é um refugiado. Sendo assim, os países que fazem parte da ONU entendem que o refugiado é qualquer um que sofra perseguição em seu local de origem, seja por conta de sua etnia, religião ou qualquer outro motivo. Logo, se você está num país em estado de guerra, como é o caso da Síria, você pode sair de lá e pedir asilo para algum país que deseje. Na América Latina, há algumas diferenças sobre asilo político e refugiado, mas eu vou deixar isso pra lá, por enquanto.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Contudo, tornar-se refugiado não é das tarefas mais simples. Primeiro, nenhum governo paga sua passagem para lá. Aquele que deseja declarar-se refugiado, tem que chegar até o local de forma legal. E o motivo de países como Alemanha e França receberem muitos refugiados é complexo. Primeiramente, é bastante comum na Síria existirem pessoas que possuem familiares nesses lugares, como o próprio Ahmed falou. E em segundo lugar, esses governos geralmente oferecem auxílio de moradia, para que as pessoas possam viver de maneira mais humana. O Brasil não oferece nada disso, mas permite que as pessoas possam vir para cá com mais facilidade, como foi o caso do Ahmed. E como é o caso dos refugiados que o Elia recebe. E atualmente, estima-se que existam mais de dois mil sírios no país com status de refugiado. E mais sete mil na fila para serem encaixados nessa classificação. Mas tenham em mente quanto custa uma passagem de avião da Síria para o Brasil e qual o custo disso, se você quiser trazer sua família toda.

Ahmed: O meu irmão que mais… mais velho, eh, fala seis línguas. Fala alemão, ele fala francês, ele fala inglês e fala árabe. Ele fala espanhol, agora ele fala português. Sabe, ele fala muitos línguas. Então, pra nós começar, por exemplo, no Alemanha, você ter um pouco base da língua, a gente já visitou Alemanha antes, sabe. Então, você tem um pouco notícias e informações. Muito mais fácil do que começar dum país muito longe do você, igual o Brasil, que você não fala a língua dele, que você não conhece ninguém aqui. Que você nunca estudou história deles, que você nunca estudou cultura deles, sabe. É muito mais… muito mais fácil.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O que torna o caso da Europa mais complexo é que o passaporte sírio não permite a entrada livre ao continente. Quando há o aumento de fluxo de pessoas pedindo vistos para adentrarem lá, há restrições tanto por parte dos países europeus, que passam a controlar o fluxo, ao não emitirem vistos, quanto por parte do próprio governo sírio, que para se ter uma ideia, é acusado de plantar minas terrestres nas fronteiras com a Turquia e o Líbano, de forma a impedir que sua população saia.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Para piorar este quadro, vamos imaginar a seguinte situação. Um cidadão sírio sai do seu país e pretende se juntar a familiares que estão na Alemanha. Para fazer isso, a forma mais segura é ir dentro do continente, atravessando a fronteira com Turquia, depois Grécia, Macedônia, Sérvia, Hungria, Áustria e, finalmente, Alemanha. E essa é apenas uma das várias rotas possíveis. E, se em qualquer um desses países ele falar, quero ser refugiado, ele pode acabar ficando naquele país definitivamente, pois é uma convenção internacional que ele deve se fixar no primeiro país onde pedir asilo. E, dependendo do local, ele pode ser separado da sua família, definitivamente. Lembrando que boa parte desse transporte está sendo feito de maneira ilegal também pelo próprio continente.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: MATÉRIA TELEJORNALÍSTICA PORTUGUESA)

Jornalista 3: Centenas de refugiados, na maioria sírios, exigiram, nesta terça-feira, na gare de autocarros de Istambul, o direito de viajar até a fronteira com a Grécia. (som de multidão protestando) As autoridades turcas recusam a venda de bilhetes aos refugiados e expulsam à força os que conseguem infiltrar-se nos autocarros. O objetivo é chegar à localidade fronteiriça de Edirne, a 250 km de Istambul, para evitar a perigosa travessia por mar, que, de qualquer forma, muitos não têm meios para pagar (som de caminhão). Impedidos de viajar de autocarro, grupos de refugiados decidiram fazer a pé o longo percurso em direção a Edirne, com os olhos postos no sonho europeu (alguém fala árabe ao fundo). No entanto, a polícia turca ergueu barreiras a curta distância da fronteira. (som de trânsito) Impedidos de passar, os refugiados sentaram-se em protesto, junto ao posto fronteiriço, a poucos quilômetros de Edirne (alguém fala árabe ao fundo). Um sírio explica que quer passar para a Grécia, evitando os traficantes, simplesmente passar de forma pacífica para a Grécia, e é por isso que se manifesta (alguém fala árabe ao fundo). Vários refugiados…

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ahmed: Se você tá olhan… assistindo televisão, todos imigrantes que tá entrando Alemanha ou França, agora, ou Europa, eles precisaram cortar uma… Eles precisa fazer muita natação, por muitos quilômetros. Na verdade, se mil paci… mil pessoas vai chegar lá, mil pessoas vai morrer no caminho. Você acha que isso é humano? Isso é direito? Acho que é muito ruim. Eles vai dar você, com sua família, o… o direito de ficar lá, o residência, quando você vai entrar num caminho ilegais. É isso coisa que não entende. Sabe quantos médicos morreu no mar? Sabe quantos engenheiros morreu no mar? Você não pode acreditar. O, enorme… é, o número eno… enorme. Por que você não abriu portas pra eles? Deixa eles fazer pedido no embaixada. Ele vai viajar, vai… vai pagar, vai tudo. Os sírios, antes guerra, eles não são gente que tá olhando dinheiro. A gente teve dinheiro, por viajar, por fazer… Abre portas. Deixa eles com dignidade um pouco. Deixa eles chegar unidos, família, unidos. A sistema agora, assim, você precisa chegar lá, se é menor, menos de 18 anos, pra fazer o… unindo os familiar, o sistema lá, pra chamar sua família. Mas quem acredita isso? Quem aceita isso, por… pelo amor de Deus? Você deixa criança de 17 anos chegar sozinho por Alemanha, pra chamar mãe dele, ficar com ele, porque você não vai dar a ela o residência? Que vergonha. Que vergonha na… na história do ser humano. É uma… vergonha grande. Porque a problema, o guerra na Síria, no nome do democracia, direitos humanos, mas o que tá acontecendo com Síria, é totalmente contrário.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Todo esse cenário dificulta o cidadão sírio que deseja sair de forma legal do seu país. Afinal, não bastam apenas os empecilhos burocráticos, mas todo esse processo também custa muito dinheiro. E as vias ilegais, como os barcos que vimos nas imagens que nos chegam, acabam sendo um meio atrativo, por conta da sua rapidez. Mas não são processos baratos e tão pouco seguros. Ou seja, quando vemos pela TV aquelas imagens de refugiados em barcos, no mar Mediterrâneo, ou caminhões abarrotados de pessoas sendo transportadas ilegalmente, e a triste imagem do menino sírio Alan Kurdi, que morreu afogado em novembro de 2015, temos que ter em mente que aquelas pessoas passaram literalmente pelo inferno para chegar naquele lugar. E muitas estão apenas começando a sua travessia.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: MATÉRIA TELEJORNALÍSTICA)

Jornalista 4: A Europa retomou hoje o envio de refugiados da Grécia para a Turquia como parte de um acordo. Ativistas tentaram impedir a viagem. Essa foi a segunda viagem de deportados da Grécia para a Turquia. O primeiro grupo partiu no início da semana. Hoje, no porto de Lesbos, na Grécia, três manifestantes foram presos depois de saltarem no mar na tentativa de impedir a saída dos imigrantes. O envio de refugiados de volta para a Turquia é parte de um acordo entre o governo turco e a União Europeia, que prevê uma ajuda financeira caso o país se proponha a receber os imigrantes ilegais. O bloco também se compromete a receber imigrantes legais dentro…

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan (narração): Apesar de a Europa ser a mais citada no caso de sírios que fogem de suas casas, é importante dizer que há um enorme número de refugiados que encontram-se atualmente em países vizinhos, especialmente Jordânia e Líbano, e que montaram uma série de campos de refugiados para abrigarem os sírios fugidos. E é bom também lembrar que não é apenas sírios que pedem asilo. Há ainda uma grande massa de paquistaneses, afegãos, iraquianos, além de outros países da África e Europa Oriental. No caso do Oriente Médio, apenas para se ter uma ideia, de acordo com dados da ONU no Líbano, há cerca de doze campos de refugiados, totalizando mais de 450 mil pessoas. Na Jordânia, o campo de Zaatari, considerado o que possui a maior concentração de sírios, possui mais de 81 mil habitantes. Essa é a opção mais barata para aqueles que querem fugir com suas famílias.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): A França parou de receber refugiados após os atentados de Paris, em novembro de 2015. Então, para quem tem condições, a Alemanha se tornou o destino mais visado. Mas o que mais está incomodando nesse cenário todo é que a União Europeia não consegue se decidir sobre o que fazer exatamente com os refugiados que adentram o continente. E não havendo definição clara de qual atitude tomar, cada país age por conta própria. E enquanto a crise de refugiados só aumentava, quando, por exemplo, víamos as imagens na fronteira da Grécia com sírios derrubando cercas, em 2015, o autointitulado Estado Islâmico declarou que estaria infiltrando membros da sua organização entre os refugiados que adentravam a Europa. E desde então, as tensões só aumentaram.

(INÍCIO DE MONTAGEM DE CLIPES DE ÁUDIO: MATÉRIAS TELEJORNALÍSTICAS)

William Bonner: Nós estamos de volta com as investigações dos atentados em Paris. A polícia francesa encontrou um passaporte de um refugiado sírio ao lado do corpo de um dos terroristas. Kovalick mencionou isso há pouco. E o grupo Estado Islâmico afirmou que os ataques de ontem foram os primeiros de uma tempestade que tá só começando.

Roberto Kovalick: Residentes e membros de partidos políticos protestaram, nessa terça-feira, contra os atos violentos na virada do ano, em Colônia, na Alemanha. Segundo as autoridades, em um ataque coordenado, mais de oitenta mulheres relataram ter sido vítimas de violência sexual, assédio e assaltos. Pelo menos uma mulher foi estuprada.

Evaristo Costa:  … Em Bruxelas, que deixaram até agora trinta mortos.

Sandra Annenberg: Uma das explosões foi no metrô, que provocou a morte de vinte pessoas e outras duas explosões no principal aeroporto da cidade, onde morreram onze pessoas. Segundo as autoridades belgas…

Cecilia Malan: 22 de março de 2016. Bruxelas se junta a Paris, Londres e Madri, cidades europeias atingidas pela brutalidade do radicalismo.

(FIM DA MONTAGEM)

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O exato envolvimento de pessoas que adentraram o território europeu como refugiados sírios nos recentes ataques que ocorreram na França, Alemanha, Bélgica e outros países ainda são motivos de debate. O que se acredita é que, sim, de fato alguns teriam entrado como refugiados e muitos deles talvez nem fossem sírios. Por sinal, o que se sabe é que a maioria dos responsáveis pelos ataques terroristas eram de fato europeus, o que demonstra o grave problema que a Europa enfrenta de assimilação das comunidades muçulmanas em seus países. Não é apenas uma questão de religião. É também uma questão social. Contudo, se o objetivo do terrorismo é justamente de inserir terror na vida das pessoas, como uma ameaça que paira de forma invisível sobre todos, o autointitulado Estado Islâmico tem feito isso muito bem. E o trágico desse cenário é que suas ações acabam operando em duas vertentes principais. Primeiro, reforça o medo que europeus já possuíam de muçulmanos, especialmente na Alemanha, por conta das ondas migratórias turcas; e na França, por conta de argelinos. Em segundo lugar, aquele muçulmano que sempre se sentiu abandonado pelos países onde reside na Europa, sendo constantemente lembrado que ele é um estrangeiro, sendo que muitas vezes ele é tão francês ou alemão quanto os que o xingam, este muçulmano acaba se tornando alvo fácil para ser aliciado pelo Estado Islâmico, cuja rede de recrutamento online é bastante ativa. Afinal, não é incomum encontrarmos verdadeiros guetos de muçulmanos por países como Alemanha, França e Bélgica, demonstrando justamente a dificuldade que eles possuem de se misturar com as populações locais. É um ciclo que verificamos. De um lado, a grande maioria de muçulmanos só quer viver sua vida normalmente. Mas por outro, sofre muito com a xenofobia europeia. E num dia ruim, um desses pode acabar se juntando ao Estado Islâmico. E aqui não é questão de justificar o terrorismo, mas sim de tentar entender como que é possível que tantos europeus estejam se radicalizando.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): E se estivermos falando de um muçulmano sírio que está justamente fugindo da guerra, do Estado Islâmico, e deseja entrar na Europa para salvar a si mesmo e a sua família, as desconfianças aumentam consideravelmente. No fim, o resultado é sempre o mesmo. O que mais sofre com o terrorismo, por incrível que pareça, acaba sendo o próprio muçulmano, o que reside na Europa. Muitos deles, inclusive, já europeus, numa segunda ou terceira geração. E sem dúvidas, sofre mais ainda aquele sírio muçulmano que está a caminho de lá, em busca de uma vida melhor. E se este problema parece europeu demais, é importante lembrarmos que esse medo de membros do Estado Islâmico estarem infiltrados entre refugiados sírios acabou ecoando no Brasil também.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO)

Jair Bolsonaro: O norte da África vive atualmente uma situação político-terrorista. O termo é exatamente esse.

(O CLIPE É INTERROMPIDO MOMENTANEAMENTE)

Ivan (narração): Este é o deputado Jair Bolsonaro, num vídeo que divulgou no Youtube, em 2015.

(VOLTA AO CLIPE DE ÁUDIO)

Jair Bolsonaro: … e credo, está saindo daquela região que transformou-se na antessala do inferno. Obviamente, junto com essas pessoas, muitas de bem, outras de péssima índole, embarcam nessa onda e estão, na verdade, se imiscuindo no mundo todo. A presidente Dilma Rousseff, a poucos dias, declarou no jornal de São Paulo, onde ela claramente se mostrava de braços abertos para sírios adentrar no Brasil. Logicamente, não podemos admitir isso. Junto com algumas pessoas de bem, outras com esse tipo de formação, de cultura completamente diferente à nossa, virão pra cá. Estamos vendo aqui que o Estado Islâmico está, cada vez mais, jogando, infiltrando gente sua nessas verdadeiras diásporas que está acontecendo naquela região. Você pode ver. Algum cubano que está nesse programa, conhecido como Mais Médicos, caso  peça asilo em nosso país, ele terá? Não terá. Pessoa de boa índole não é bem vinda no Brasil. E o governo está usando essa questão terrorista, política do norte da África, para importar junto com pessoas de bem, a escória do mundo, os integrantes do Estado Islâmico. Que inclusive no tratamento, no tocante às mulheres, não se coadunam com a nossa educação, com nossa cultura. Mulher pra eles é lixo. Você acha que essas pessoas, a parte dessas pessoas, a escória vindo pra cá como, mais cedo ou mais tarde, vai começar a tratar nossas mulheres no Brasil? Até a questão dos homossexuais, que tanto me atacam. Como eles são tratados lá? Eles são mortos, são decapitados, jogados de cima de prédios. Esse tipo de gente, sem qualquer controle, você quer que venha pra cá? Pode inventar mais uma calúnia no respeito de minha pessoa. Vou manter a minha posição. Se depender de mim, não virão pra cá sem o rígido controle à sua vida pregressa, de sua cultura, de sua educação e dos seus costumes. Por que não podemos colocar a nossa sociedade à mercê dessa minoria, escória que vai se juntar à outra escória que tá no Brasil, muitos coligados ao PT para impor o terror ao nosso meio.

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan: Você, você chegou a ver a declaração daquele deputado, Bolsonaro? Falando que tinha que parar de vir imigrantes pra cá?

Elia: Eu não vi esse aí, mas eu não tiro o razão deles também, não tiro razão de Brasil. Brasil tá com problema grande interna. Olha as favela nossa. Olha as povo nas filas de SUS. Ainda pegar mais pepino. Cuida de seu povo primeiro, meu amigo, depois procura ajudar outros.

Ivan (narração): É importante deixar claro que o Elia obviamente nem conhecia os argumentos do Bolsonaro. Quando ele diz que entende que deveria parar de vir refugiados, ele tá querendo dizer outra coisa. O interessante aqui é que sua fala expõe outros problemas em torno de refugiados vindo pro Brasil.

Ivan: Mas você tá ajudando, tá trazendo um monte de gente

Elia: Eu tá ajudando porque deram oportunidade pra mim. Europa não tem. Por que Europa não pegou? Alemanha abriu porta e fechou depois de um dia, não aguentou. Olha Alemanha e olha Brasil. Vamos falar… Ele abriu a porta, fechou, não aguentou um dia!

Ivan: Hum. É que… eu… pelo menos eu imagino que, por pior que nós estejamos, ou por menos, assim… não tá tão ruim quanto pra eles. Então eu, eu…

Elia: Pra… pra eles? Pra refugiados? Uma maravilha! Você não imagina a felicidade, a hora que vêm aqui; tem água, tem luz, tem comida, tem tudo… paz! Você não sabe a felicidade deles. Eu sei.

Ivan: Por isso que eu… e é justamente por isso que eu digo que, por pior que… por mais problemas econômicos que o Brasil esteja hoje em dia, a gente tem que resolver esses…

Elia: O Brasil é humano! É mãe de mundo! Falei pra você, Brasil é humano!

Ivan: Mas você mesmo disse que, de repente, teria que realmente segurar um pouco isso.

Elia: Eh… tem. Mas tá… só trazer também, não tá… ó, eu vou ser sincero, hoje tem gente tá pedindo esmola na rua! Pra pa… pegar, aceitar trazer essas pessoal e pra ficar na rua pedindo esmola?

Ahmed: Tem muitos problemas, agora, por acostumar aqui. Não é coisa… do cultural; coisa do dinheiro, sabe? Que você… por exemplo, agora, a gente, Brasil, tudo dinheiros que a gente teve quando a gente chegou aqui, você precisa, sabe, tentar trabalhar aqui, tentar trabalhar lá… só que você precisa… só chegar ao final do mês só por pagar aluguel, sabe? Isso é que me estressa bastante, sabe? Você precisa tanto… às vezes, eu ligo meus amigos, dentistas, “Por favor, se você, noutra cidade eu posso viajar, eu precisa fazer algumas coisas…” Isso que deixa você estressado, sabe? Assim, cansado. Que, que mais importante é pagar o aluguel do casa. Porque aluguel é caro, vida é caro, aqui. E não tem nenhum jeito do… sabe, assim… suportar do governo, bolsa do governo. Não tem, não existe. Então, você precisa trabalhar bastante; o final do mês, você vai ganhar um pouco menos do… do aluguel. Quando você vai pagar aluguel… eu falo, na verdade, às vezes, “Isso é o que eu ganhei este mês. Então, desculpa.” Então… a gente agradece a deus que a gente caiu com pessoas muito boa, sabe!? A gente está com gente boas que… eles entende! A gente fala a verdade e eles acredita. Às vezes, a gente paga certinho, às vezes um pouco menos, porque… às vezes, é difícil, sabe!? A vida tá difícil. A gente atrasa um pouco, sabe, assim? Mas, agora, por um ano e meio, aqui, mais ou menos, graças a deus, a gente nunca teve problemas.

Elia: Ta aí, um deles tá aqui e tem dinheiro lá, ir buscar, Brasil proibiu refugiado sair de país! Liguei pra Conare-SP, expliquei, ele quer encarar; se quer ir buscar… bem dele, dinheiro dele, não pode é sair. E aí? Tem quatro filhos, tem mulher, paga aluguel… como vai pagar? Vai morar onde!? Tem… é… um lado fez bom, outro lado… esqueceu! Tá, chegou o cara da onde!? Não pode trazer dinheiro mais que dez mil dólar; não sabe falar… não sabe falar! Não tem trabalho; idade dele, quem vai dar trabalho para ele? Sessenta anos? Ele tem bens, lá vendeu! Quer ir buscar, até agora Conare não liberou ele viajar! Entendeu? Tem que eles estudar um pouco, ir ao lado de outros, também. “Tá, venha! Venha, venha, venha…” tá aí! E aí? E aí!? Chegou Coca Cola oferecendo 900 real pra eles trabalhar. Ah, caramba! Cara pai de família, rapaz! Tem quatro crianças. Que vai fazer!? Se casa… casa mais vagabundo, aluguel 500, 600 real; luz, água, acabou dinheiro. Vai comer o quê!?

Ivan: Vocês… o governo não deu dinheiro para vocês? Vocês trouxeram o que tinham…

Ahmed: O governo, na verdade, ele deu nós só o … ele só abriu porta para a gente entrar.

Ivan: Aham…

Ahmed: É… só isso!

Ivan: Tipo, e como é que foi… quê que cês trouxeram pra cá!? O que coube na mala?

Ahmed: Na verdade… olha… a gente… eu vendi meu carro, meu irmão vende o carro dele, a minha mãe vende o carro, um pouco ouro dela… nesse dinheiro a gente chegou aqui. Então, imagina que você precisa pagar por, por alugar; imagina que você precisa por fazer o revalidação, cada processo quando você quer abrir o processo, pelo menos mil reais. Então… imagina, quatro são formados, então eles querem tentar muitas Universidade. Isso, aqui, uma fortuna! Um… um, um… Sabe? Muito dinheiro! Você vai pagar muito dinheiro, é por causa não é certo, então a gente ficou estressados, mas a gente precisava fazer isso, né? Porque… não tem outro jeito; a gente não… não sabe fazer comércio, aqui; a gente não vai fazer shawarma, restaurante árabe… a gente nunca fez isso! E eu era professor por dez anos na minha vida. Então, imagina, o que você vai fazer? Você vai fazer o coisa que você sabe, então por isso é que a gente tá resistindo, sabe? A vida tá difícil, mas a gente tá resistindo pra viver depois com dignidade. Sabe?

Elia: Olha, essas pessoal que eu trouxe, que eu conheço, nenhum deles era lá sem fazer nada na vida. Tudo eles tinha a oficina deles, tinha mercado deles, tinha a vida deles, tinha casa deles… casa deles era linda! Linda, linda; tudo mobiliado! Carro deles… tudo! Tem que largar tudo e vir. Que conseguiram porque tentaram vender as casa, ninguém tava pagando nada pra eles. Por quê? Que é que pensava, o pessoal? “Amanhã a gente invade e toma de graça, por quê vou pagar?”. Essa ideia de povo lá. “Por quê vou pagar? Amanhã vai… vai tomar em uma semana, tudo; isso aí vai ser tudo, as casa de cristal, pra nós de graça. Por quê vou comprar?”. Essa ideia, por isso não conseguiram vender nada. Quem pode, tinha ouro guardado, dólar, uma coisa, trouxe aí e acabou também. Porque o… Brasil foi sincero, foi honesto. Falou, “A gente dá visa, dá carta de trabalho e dá saúde. Mais nada.” Ajuda financeira, igual Europa, outros lugar? Não. Brasil sabe, aqui não tem! Depois, UNO não ajuda Brasil!

Ivan: O que o Elia chama de UNO é, na verdade, a ONU.

Elia: UNO ajuda orien… ajuda Europa! Ajuda a tudo lá. A Brasil, não. Porquê Brasil tem que cobrar de UNO, porque essas refugiados é de guerra, o soldado é de UNO! Não é só de Brasil! Entendeu? Por isso, acabou o dinheiro dele, sem saber falar! Tentaram abrir algum negócio, não deu certo… eu tô tentando agora abrir pra eles sacolão, abri essa mecânica, vai pra aí, aí, pra ele…  vamo ver…

Ivan (narração): Aqui é uma parte que eu não falei para vocês, mas quando eu fui entrevistar o Elia, ele estava numa oficina mecânica e vários dos funcionários eram sírios. A oficina não era dele, inclusive o Elia já é aposentado; ele voltou a trabalhar para poder ajudar os refugiados.

Elia: Não ajudaram o Brasil! E o Brasil acolheu quantos refugiados, tanto faz africano ou sírio. Não ajuda nada, não dá nada! Vai na Europa, Europa dá casa, dá estudo, dá comida, dá dinheiro, dá tudo pra você! Aqui, não. Acabou o dinheiro dele, não sei… tamos virando!

Ivan: Mas ainda assim é melhor do que tá lá…

Elia: É bem melhor, gente! Bem melhor! Bem melhor…

Ivan: Você tem alguma das histórias que te marcaram, desses refugiados que vieram?

Elia: Tristeza! Porque… largar casa, começar vida nova… é… choraram bastante e tudo. Sem falar, sem língua, sem profiss… não pode trabalhar porque não sabe falar! Tem um cara profissional de encanamentos, não consigo arrumar algum emprego porque não sabe falar; como vai entrar na sua casa? Como vai explicar para você e você vai explicar pra ele? Entende? E homem tá com estresse, ele tinha maior depósito de venda, essas banheiras, essas torneiras… igual o Balaroti, aí! Cara tinha, tem que largar e vir embora! E chegou aqui, coitado, acabou o dinheiro dele e tá em faculdade é pra… sobreviver. Aí, fala, “Preferia morrer, se vou ficar aqui assim, agora, dependendo de outros…” Magoa um pouco, o cara sente! Porque tava bem de vida, lá! Se cara não tava bem de vida, não vinha até aqui, Brasil. Só passagem de avião, aqui, pra cabeça, mil e duzentos dólar! E sair de Síria até Líbano, gastava mais mil dólar! Pra vir até aqui, dois mil e pouco dólar. Só chegar, aí, alugar casa, mil real. Mobília casa, não sei o quê, não sei o quê… tem um pastor, Marcos Calixto, tá ajudando nós, graças a Deus! Traz cesta básica, traz… trazia… agora parou também.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Enquanto eu entrevistava o Elia e o Ahmed, o que mais me surpreendeu foi que, de fato, é difícil lembrarmos que as pessoas tinham vidas totalmente diferentes daquelas que vivem hoje aqui, no Brasil. Eram comerciantes, médicos, engenheiros, professores, enfim, milhões de pessoas que devem começar suas vidas do zero, seja no Brasil, seja na Europa, em qualquer lugar do mundo. E no caso dos que vem ao Brasil, a falta de ajuda do governo ou de órgãos internacionais tornam a vida ainda mais difícil, pois ter uma vida digna exige obtenção de um emprego, algo que é difícil quando não se fala a língua local. No fim, é por conta de pessoas como o Elia e tantas outras pessoas que dedicam seu esforço e tempo por pura boa vontade que esses refugiados podem recomeçar, mesmo que minimamente, mesmo que em condições básicas. E por pior que seja a falta de ajuda do governo brasileiro, o mais assustador é saber que só o fato de estarmos abrindo as nossas portas para refugiados, já é mais do que muitos países pelo mundo estão fazendo, especialmente os Europeus.

Ahmed: Os países europeus que tão falando no direitos humanos, “Você não tem direito para entrar”, só perguntar. “Sírio não entra, a gente não quer mais”. E tem país ainda pior, por exemplo, França, ela vai aceitar você se você é sírio, só quando você tá católico, sabe? Mesmo cristão ortodoxo eles não aceitam, você precisa ser católico. Então, é isso que é racismo e isso é contra os direitos humanos, sabe? Por exemplo, agora eu falo francês e tenho professores lá na França, então sabe? Então, é mais fácil pra mim começar a minha vida lá na França, que eu não preciso aprender a língua, eu já falo francês, de que chegar ao Brasil, sabe? Um país que eu nunca estava imaginando que eu vou falar português, eu nunca entrei num curso de português na minha vida. Eu nunca tentei na verdade, pra falar a verdade.

Elia: Essa ai…não tem um órgão ai chegaram a ajudar um pouco. As Igrejas estão ajudando. Pastores estão indo recolher bens. Eu fiz uma propaganda, chego algum roupa, chego coisas pra ele e todo dia isso é coisa de todo mês. Não é um dia, dois dias. Escola não temos pra ir mas uma vez por semana quem que vai aprender? Vai aprender o que? A abrir uma…tem lá não sei aonde, vai lá, estuda lá, é uma vez, duas horas por semana. Quem que vai aprender, gente? Tô falando, pô, eu tô com setenta pessoas, quase em cem, por que não pega uma sala, uma professora pra ensinar eles? Fala por menos, eles saem, depois vão na luta. Brasil fez bem… aceitou em tempo ruim, guerra e tudo, mas esqueceu deles também. Tem três, quatro famílias, eu tô ajudando. Até quando? Eu tenho família também.

Ivan: Te frustra muito essa falta de ajuda do governo?

Elia: Bastante. Que no mundo tudo, hora que entram refugiados, tem o apoio do governo. Eles dão tudo pra ele. Primeiros dois anos não importa quanto, aqui nem uma agulha.

Ivan: Mas em compensação, deixa eu te colocar um outro fato, que com um dos outros refugiados que eu entrevistei, ele disse assim… que eram uma família de seis pessoas. Era a mãe e cinco irmãos que tentaram ir pra Alemanha, tentaram ir pra França e nunca conseguiram ir a família inteira. O Brasil foi o único país que aceitou a família inteira vir.

Elia: Mas por que? Tá aí. Porque assim como na Alemanha, na Suíça, na Europa, na França, o governo tem que bancar tudo. Por que todo mundo tava indo pra lá, querendo ir pra lá? Tem gente que, eu lembro, vendeu casa pra pagar pra ir pra lá. Vendeu casa e chegou lá, entrou lá, garantiu tudo. Comida, casa, roupa, tudo, salário. Quem não quer?

Ivan: Só que daí tem que separar da família.

Elia: Quem não quer? Qualquer um que entra na Europa hoje, refugiado de guerra, tá garantido tudo.

Ivan: Uhum. Mas, ao mesmo tempo, se separa da família.

Elia: Não, se trouxer a família, a família inteira.

Ivan: Então, isso que eu tô falando, o refugiado que eu entrevistei disse que esses países não aceitavam a família inteira. O Brasil foi o único que…

Elia: Não! Não tem condiçõe, homem! Não é um, dois, três, quatro, cinco, é milhares. Não são sírios só refugiados também. Tem gente fazendo passaporte sírio, tá pagando, não tem governo como o sírio, e tá querendo ir pra Europa! Todo mundo quer ir pra Europa. Só chegar lá, pronto. Não precisa fazer nada. Come, bebe, estuda e tem salário, tem casa, não tem que esquentar com aluguel, nem luz, nem água, nem nada.

Ivan: Uhum… sim… É, eu entendo o seu lado, é que eu não consigo não aceitar, por exemplo, se alguém tá numa situação de guerra, eu acho que, por mais que ela more na rua, a situação que o senhor colocou, é… seria melhor… eu prefiro essa pessoa na rua tendo a chance de talvez amanhã conseguir melhorar de vida, do que a qualquer momento morrer.

Elia: Mas querido, eu concordo, mas eu sou pai de um família. Meu filho chorando quer comer, quer leite, quer a vida que tinha lá. Tudo bem. Esqueceu casa… porque na Síria a pai é que trabalha, mulher nunca trabalha. É sozinho que sustenta a família lá. Custo baixo lá. Água a cada três meses, luz a cada três mês paga mixaria . Eu vou trazer conta daqui, não tenho dois funcionários, tiram três mil real. Casa é mil real de aluguel, filhos ele tem também, quatro filhos. Passagem de ônibus todo dia… vai somando. Chega final de mês, não tem nada. Ainda tá trabalhando, salário bom, três mil  não é qualquer um ganha aqui. Hoje pra média brasileira tem que ganhar dois e meio, não é mil e vinte e cinco, mil e seiscentos, não dá nada. A “Minha vida a minha casa” vai, pra quem eles dão? Quem tem alguém no governo, apoio político ganha casa ou vai esperar dez, vinte anos na fila. Eu sou filho brasileiro, eu sou gente, eu sei tudo. Não adianta chegar, falar pra mim… tão culpando Dilma, Dilma não tem nada a ver com tudo isso aí. Isso aí vem pra trás, antes. Estourou agora na cabeça dela. Ela não adianta falar que “Ah, eu não tenho conta na exterior, não tem…”. Oh, é administração seu, filha. Zero vírgula zero.

Ivan: Você… é… acho que já podemos… indo mais pro final. O que você gostaria que acontecesse, o que… sobre tudo isso que falamos, Síria se resolvesse é… como…

Elia: De coração vou responder. Síria quero voltar ao normal como tava antes, vai ver, esse povo tudo que chegou, vão voltar. Isso ai eu garanto pra você. Esse ai eu garanto.

Ivan: Resolvendo a Síria, as pessoas voltam pra casa.

Elia: Voltam sim, tenho certeza.

Ivan: A casa de vocês ainda tá lá?

Ahmed: Ainda tá lá, graças a Deus.

Ivan: É, não foi… detonada…

Ahmed: Ela foi atacada com buleto, sabe? Sim, mas, graças a Deus, ainda tá…

Ivan: Vocês recebem fotos de lá ainda? Tem alguém lá que tá mandando notícias pra vocês?

Ahmed: Na verdade, a última foto que a gente recebeu de lá foi três, quatro meses, sabe? A gente tem janelas lá sabe? Foi perfurados, sabe, por boletos, porque os neighboors, o que eles estão fazendo? Eles atacam, ah eles estão olhando e não tem nenhuma reação, você não tá tentando arrumar, então eles vão mandar gente pra roubar a casa. É uma coisa feia.

Ivan: Você espera poder voltar lá, um dia?

Ahmed: Tomara, tomara que a guerra vai acabar, tomara que eu volta, na verdade. Coisa que eu rezo sempre por Deus, eu quero morrer na Síria, sabe? Eu quero, quando eu morro, eu quero ficar lá na Síria. Meu corpo eu quero que fique na terra na Síria. É meu país, sabe? Um país pra nós é igual família, sabe? O Síria é… não tem ninguém que não gosta Síria, na verdade. É um país que é cheio do amor, na verdade, muito amor lá na Síria. Muita coisa histórica, sabe? Por exemplo, no cemitério lá no Damasco, você vai ver um “grave” assim, três mil anos e, ao lado dele, um pessoa que morreu dez dias atrás. Isso quase não existe nos outros mundos. No existe no outro mundo, não existe em outros países. Não sei, eu olho o meu país e  mesmo se meu país é feio, é meu país. Mesmo se meu país não é perfeito, é meu país. E não vão mudar Síria por nada, sabe? O Síria vai ficar sempre o número um no meu coração. Então, quando guerra vai acabar, eu vou voltar sim.

Ivan: O que você mais sente saudades de lá?

Ahmed: Tudo. Tudo, na verdade. É igual esse, eu vou agora perguntar você. O que você tá fazendo Brasil? Sua vida, seus amigos, sua família, seu história… Ah, coisas ruim, coisas boas, mas um parte de sua história, um parte de sua vida. Então, você não pode anular, você não pode cancelar, você não pode esquecer o que… A sua história. Tudo as coisas lá, coisas boas, a gente passa, sim. (incompreensível) No coisas boas, coisas com felicidade, coisas deixam você triste. Mas isso é você, isso é seu personalidade, isso é parte do seu história. Então, mesmo assim, eu gosto tudo momento passou comigo na Síria. Coisas boas e coisas ruim. Coisas que me deixou com triste, com vergonha, com felicidade, com… Sabe. Quando eu ganhei, quando eu perdi, quando eu amei, quando eu briguei, quando eu separei. Tudo isso. Eu gosto tudo isso. Porque isso é que criou Ahmed. É isso que tá criando todo mundo, sabe. Por isso chama o amor do país.

Ivan (narração): Quando penso no Ahmed e em toda sua história, e penso no medo que a Europa e outros governos pelo mundo demonstram por refugiados sírios, eu não consigo deixar de pensar sobre como somos sortudos e como só temos a ganhar com pessoas como ele vivendo por aqui. E se ainda o medo de que terroristas estejam vindo pode ser compreensível, no fim, resume-se a um dilema ético. Por causa dessa ameaça, devemos evitar que pessoas como ele e sua família entrem no Brasil? A minha opinião, aqui, isso seria admitir que o terror venceu. E eu, como brasileiro e, acima de tudo, como ser humano, me recuso a deixar que isto aconteça.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Te dói muito falar sobre Oriente Médio?

Elia: Bastante. Mais agora essa época.

Ivan: Por quê? Por quê? O que te mais…

Elia: Porque são povo burro. Se não é burro, eles dominava mundo. Eles têm poder, petróleo, têm dinheiro, têm inteligência, e trabalhadores. Não vamo olhar meia dúzia de Arábias… Arábia Saudita, tudo, não. Se eles unir tudo, eles aliava, como Israel também. Não adianta querer brigar com gente mais inteligente de mundo, mais forte financiamento de mundo. Mundo tá na mão deles. Como eu vou… vou brigar com você, você armado, eu sem arma? Não importa tamanho. Arma na sua mão. Eu tô sem arma. Você derruba eu, homem. Não pensaram, são povo burro. Só isso aí. Cara chega lá, (incompreensível) faz assim, chega, vai aí, vai, igual carneiro. Agora o que fez? Vão matar um o outro. Vão se matar. Eu tô lá, sentado, rindo. Diminuindo você de financiamento, quebrar seu economia e de seu povo. Fazer você inimigo meu, inimigo de outro, assim vai. Povo muito burro nessa parte.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ahmed: Mas o Brasil, quando a gente falou com eles, você não pode imaginar o comunicação que começou entre as embaixadores lá no Argélia, no Síria, no Líbano. Por isso família fica juntos pra chegar juntos pro Brasil. Coisa maravilhosa. Que coisa maravilhosa.

Ivan: Foi a única embaixada que ofereceu isso pra vocês, então?

Ahmed: Isso.

Ivan: De ficar a família junta…

Ahmed: Sim. Sim.

Ivan: A França… A Alemanha…

Ahmed: E com respeito.

Ivan: Sim.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ahmed: Eu quero falar uma coisa pra você. O parabéns pra vocês, porque é verdade, vocês têm a melhor, é… É melhor time diplomático do mundo. Nossa, você não pode acreditar o respeito que eles recebe no Islã, o respeito que eles estão falando com nós, o jeito que… Sabe. Isso muito importante pra você. Que eles falaram, ah… A gente, eles… Na verdade, quando eu falei com cônsul do Brasil, eu mostrei pra ele minhas certificas, eu tenho mestrado e sou professor, sabe, assim, assim, assim, minha família. Ele quase chorou. Ele quase chorou, sabe. Ele falou, “Ah, Brasil vai abrir portas pra você. Ele vai abrir o braços pra você. Seja bem vinda, você parece um gente boas”. Ele não falou, “Você é muçulmano, a gente não vai aceitar vocês”. Contrário. Eu agradeço eles, na verdade. Se eles pode me escutar agora, eu agradeço eles, o equipe diplomático que estava na Síria, no Líbano, na Argélia. Muito bom, muito legal. Na verdade, o coisa muito humano. Que vocês são, sabe… No primeiro lugar nisso.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ahmed: Graças a deus que a gente chegou aqui no Brasil. Porque o que a gente tá sentindo agora, Brasil, você não sente que você tá estrangeiro. Eu tenho amigo e tenho amigas, eu tenho famílias aqui, sabe. Os brasileiros que ficaram minha família. Isso é verdade, isso é uma coisa que maravilhosa. Que isso aqui eu acho que você não vai achar isso em nenhum lugar no mundo. Então, a gente agradece, na verdade, todos os pessoas que ficaram com nós. E ainda eles tão com nós, sabe. Porque você fica estrangeiro num país que você não fala língua dela, e depois algumas meses, você tem muitos amigos, muitas amigas, muitas famílias, sabe. Você tá, seja bem vindo no todos os lugares. Então, um país maravilhoso. É verdade que muito difícil começar sua vida econômica, é… Muito difícil. Duro, Mas esquece isso, vida aqui tá maravilhoso.

Ivan: Nós é que temos sorte de ter uma família tão boa quanto a sua…

Ahmed: Agradeço. Agradeço. Muito obrigado.

Ivan: Verdade. A gente só tem a ganhar.

Ahmed: Muito obrigado.

Ivan: Algum último recado sobre tudo que falamos?

Elia: Obrigado Brasil de colher essas refugiados. (Ivan ri)

Ivan: Mesmo com todos os problemas?

Elia: Exatamente.

Ivan: Uhum.

Elia: Exatamente.

Ivan: Obrigado você por todo serviço que você tá fazendo.

Elia: É coração.

Ivan: E que bom que o Brasil tenha sido um bom lugar pra você. A gente tem sorte de ter pessoas como você aqui.

Elia: Claro, Brasil mais de mundo. E volto falar, melhor país de mundo.

Ivan: Mesmo com economia…

Elia: Todo, tudo… Tudo que tá acontecendo.

Ivan: Por quê? Por que você acha que o melhor…

Elia: Tem coração grande, homem. Povo, povo brasileiro não existe. É povo carinhoso. Se você quer ver, se eu sair agora na rua, bater palma, precisa apoio, ajuda, milhares vêm pra me ajudar. Já aconteceu. Povo é coração grande, povo brasileiro não existe na Europa, não existe na Oriente, não existe nenhum lugar de mundo. Eu vivo na meio deles eu sei.

Ivan: Uhum. Nunca mais vai voltar, então?

Elia: Eu nunca mais! (Ivan ri)Não largo Brasil nem se for pedir esmola na rua. (Ivan ri alto)

Ahmed: É verdade, isso mensagem final, que… Na verdade, eu tenho mensagem por quem que vai assistir isso, esta com entrevista. Quando você tá escutando uma coisa sobre a Síria na mídia, não acredita. Olha, estuda, abre livros, pergunta. Porque a gente teve um sistema do “Parlamant”, desde 1901. A mulher tem direitos do votar, desde 1911. A mulher tem direitos de estudar no universidade desde sempre. Quando o mulher teve o direito do votar na Suíça, no 1967, a mulher na Síria, ela estava o Ministro. Então, quando você fala, “Ah, vocês na Síria, o mulher estuda?” com certeza estuda. Estuda mais do homem. Com certeza ela tem direitos. Com certeza ela tem direitos de fazer tudo. Tem mulheres muito, eles têm muito sucesso na Síria, têm empresas, tem tudo. Tem igualdade na Síria que não existe no mundo, sabe. Coisas que você precisa respeitar. A gente respeita do mais o mulher, sabe. A gente respeita do mais o direitos dela. A gente não precisa ninguém falar pra nós como a gente precisa respeitar o mulher. Que a gente que ensinou como todo mundo o respeito do mulher precisa ser, sabe. Você não pode falar alto com sua mãe. Você não pode falar alto com sua irmã, se tá mais velha, ou mais nova. Você precisa tratar elas com respeito. Então, às vezes eu brigo com Nurallah, né (ele ri). Mas isso, sabe, sempre… Sempre é assim… Mas esse… Então, antes do falar dos muçulmanos são assim, ou Islã são assim, eu não sei, são assim. Estuda. Não quero que você me acredite. Mas acredita História. Acredita os provas do religião. Acredita 1500 anos do viver juntos. Acredita no que tá escrevendo no livros histórica do Alemanha, quando a gente teve guerras com eles. Então, isso aqui que você precisa acred… Não acredita mídia. A mídia tá mentirando. A mídia tá falando o que Estados Unidos quer. Então, infelizmente, tá assim.

Ivan: Esse… Acho que eu só tenho que agradecer, então, a entrevista que você deu. Muito obrigado, foi um baita ensinamento aqui pra a gente…

Ahmed: Obrigado eu. Obrigado eu. Obrigado por café tá muito bom…(Ivan ri)

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Uma coisa que aprendi acerca de refugiados é que todos eles querem voltar para casa em algum momento. É por isso, inclusive, que geralmente eles dizem que não são refugiados, mas sim que estão refugiados. Mais ainda, apesar de termos citado os atentados que ocorreram na Europa, é sempre importante lembrar que o número de atentados e mortos no Oriente Médio é muito, muito maior. Não é que a perda de vidas humanas seja algo comparável. Uma morte é sempre uma morte, independente da onde ocorre. Mas isso serve apenas como lembrete de que, enquanto essas coisas acontecem às vezes na Europa; na Síria, no Iraque, no Afeganistão, no Paquistão, enfim, essa é uma realidade diária. Os atentados acontecem todos os dias. E enquanto eu procurava por materiais sobre a Síria, eu conheci a banda Khebez Dawle, por indicação do Felipe e da Camila, do podcast “O Nome Disso É Mundo”. A banda tinha outro nome, quando moravam na Síria, até que um dos membros foi morto em um dos vários conflitos no país. Agora refugiados, eles lançaram a música “Bel Share”, que significa “na rua”. E falando sobre o desejo de, um dia, voltarem para suas casas, a letra diz o seguinte, “Na rua, hoje, eu encontro a mim mesmo, sem cores. Agora eu posso expressar-me sobre mim e você. Eu posso escrever meu nome e o seu entre aqui e ali, de uma vizinhança a outra. E agora, simplesmente, podemos viver na rua. Na rua, hoje, minha voz e a sua podem ser ouvidas de todo lugar do mundo. O tempo respira liberdade conosco. E o mundo permanece o que é. Mas nós somos aqueles que podem mudar. E agora, simplesmente, podemos viver na rua”.

(FADE IN E FADE OUT DA MÚSICA “BEL SHARE)

Ivan (narração): No próximo episódio.

Voz: E aí, acho que esse cara me levou até uma escada que só descia, nu corredor bem estreito. Um corredor que era um pouco mais largo que meus ombros. E aí, eu fui descendo, esse cara atrás de mim com a arma na minha nuca. E quanto mais descia, mais escuro ia ficando tudo. Aí, eu pensei, “Ah, acabou”, né. Não tem mais o que fazer. Aí, nessa hora, eu fechei os olhos, entreguei a alma a deus e esperei o tiro. E eu fui tateando cada degrau com os pés, lentamente, com a certeza que eu ia ser morto, né. E aí, desse jeito, né, descendo os degraus bem devagar, com a cabeça baixa e os olhos fechados, eu senti uma pancada na minha cabeça e ouvi um barulho. PÁ! Mas, naquele momento, eu tive certeza que eu tava morto. Eu achei que o barulho era o tiro, né. E eu mantive os olhos fechados. Aí, foi muito louco. Eu até pensei assim, “Cara, que bom que foi rápido, não doeu”, né. Aí, essa foi uma coisa que eu pensei quando eu tive aquela certeza que eu ia morrer, e eu pensei, “Ainda bem que eu não vou morrer decapitado na frente de câmeras”, né. Assim vai ser um tiro, não vai doer, vai ser rápido, que bom que vai ser assim.

Ivan (narração): O repórter brasileiro que foi cobrir a guerra na Síria ainda no seu início, foi preso e sentiu na pele a repressão do governo Assad. Aqui no Projeto Humanos, “O coração do mundo”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Se você gosta do nosso trabalho e gostaria que ele continuasse, você pode contribuir através do link na postagem. Agradecimentos especiais a Elia, Ahmed, Nurallah, Paulo Hilu e sua prima, Luciane Hilu, que me colocou em contato com ele. E obrigado também a Guga ChaKra, que me enviou um email recentemente, elogiando o nosso trabalho. Lembrando que, num Anticast próximo, publicaremos a entrevista completa com Paulo Hilu, especialista em Síria, que auxiliou nos programas passados. Nos vemos no próximo episódio e que, lembrando, sairá apenas em agosto. Até lá.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição por Zé Roberto, Dyane Guedes Cunha, Savio Mota, Marcela Brasil, Sidney Andrade. Edição por Sidney Andrade. Revisão por Geraldo Miranda