3 – O Eterno Devedor
6 de dezembro de 2016A trajetória incomum do carioca Samuel Lourenço, de 30 anos, revela problemas bastante comuns no estado do Rio de Janeiro e em todo o país. Em 2007, ele cometeu um crime que marcaria sua vida para sempre. Neste episódio, conheça um pouco da realidade de jovens nas áreas mais carentes da cidade e do sistema penitenciário fluminense, e descubra como Samuel buscou um destino melhor.
Produzido por Isabela Cabral.
Apresentado por Ivan Mizanzuk.
Transcrição
Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Este é o terceiro episódio da nossa terceira temporada: O que faz um herói. Essa temporada foi toda produzida pelos novos membros do Projeto Humanos, que foram treinados em 2016 nas técnicas de storytelling que eu utilizo aqui neste podcast que vocês estão ouvindo. E antes de começarmos, eu gostaria de reforçar o pedido de ajuda para que você, caro ouvinte, que gosta do tipo de programas que fazemos aqui, que você nos ajude na produção da quarta temporada do Projeto Humanos. Eu já estou trabalhando nela, fazendo pesquisas, entrevistando pessoas. E posso adiantar que ela será a temporada mais trabalhosa que eu farei. É uma história fascinante e eu dependo da ajuda de vocês para poder realizá-la. Sendo assim, se você puder, por favor, acesse agora anticast.com.br/sejapatrao e contribua com a quantia mensal que puder. Qualquer quantia de ajuda será bem-vinda. E por sinal, muito obrigado a todos aqueles que atenderam ao chamado da semana passada e passaram a contribuir pelo Patreon ou pelo PagSeguro, eu agradeço do fundo do coração aos novos patrões e patroas. A história que vocês ouvirão hoje foi produzida por Isabela Cabral e eu devo confessar que foi uma das histórias mais impactantes que eu ouvi até hoje. Nos treinamentos do Projeto Humanos, que a Isabela e outros participaram, eu sempre dizia: “Você tem que tentar produzir aquela história que a pessoa vai estar ouvindo no carro e, após estacionar em casa, ela vai querer ficar na garagem, no escuro, pra terminar de ouvir”. E quando eu me vi, eu estava nessa exata situação, enquanto ouvia o que a Isabela fez. Eu espero que vocês passem pela mesma sensação que eu. De certa maneira, essa história explica o Brasil de tantas maneiras diferentes que é até difícil de resumir, então, o máximo que eu posso dizer é: “ouçam com atenção”. E um último aviso antes de começarmos, essa história é bem pesada, então eu recomendo que não ouça com crianças ao lado. É isso, fiquem agora com a história produzida pela jornalista Isabela Cabral.
Voz: Durante a semana, cinco dias de aula, acho que três eu chegava alcoolizado. Eh, alcoolizado no sentido de chegar bêbado pra participar da aula. E eu tinha incentivo pra beber porque eu discutia mais na sala de aula, eu me abria mais pra alguns assuntos. Eu levava garrafa de 51 com limão e açúcar dentro da mochila. Chegava na sala de aula, tinha uma sala vazia, a gente cortava as coisas, aí eu juntava mais uns dois, a gente bebia, eu sempre bebia um pouco mais e ia pra aula de história, ia pra aula de geografia discutir geopolítica, segunda guerra mundial. E os meninos falavam, “Samuel, começa a debater com o professor de geografia porque você deixa ele tão nervoso que ele fica suando, a camisa dele fica toda molhada na aula contigo”.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Isabela (narração): O Samuel sempre gostou de viver um mundo mais maduro do que a própria idade. E se por um lado sempre deu bastante valor ao conhecimento, ao intelecto, por outro, com as regras ele não era muito bom. Ele começou a beber cedo, com 12 anos. Filho de pai ex-militar e mãe recepcionista de hotel, o Samuel Lourenço cresceu numa zona rural de Campo Grande, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Podia ser encontrado com frequência na porta dos bares bebendo e batendo papo com os amigos mais velhos. Eles discutiam desde política e futebol até assuntos mais pesados, bem mais pesados.
Samuel: Uma coisa que me choca foi um amigo meu falou assim, “Oh… a pessoa X vai morrer hoje e amanhã eu vou pendurar a orelha dela no lugar tal”. E eu acordar de manhã e ver a orelha do cara lá pendurada e ter a notícia de que o cara morreu. Então, assim, eh, essas coisas, ao mesmo tempo em que elas chocavam uma criança, eu me dava um senso de responsabilidade, tipo, eu sei dessa informação, eu sei quem matou e eu não posso falar isso pra ninguém. E você conservava isso e isso te dava um certo status. E ali eu fui me formando, né? O bar passou a ser mais presente na minha vida do que uma mesa de jantar com família. (Risos). Talvez eu queria tá um passo à frente da minha geração. Eu queria poder viver uma certa autonomia.
Isabela (narração): Naquela realidade, isso incluía beber e estar por dentro das atividades ilegais da região.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Isabela (narração): Aos 17, ele começa a se viciar em drogas estimulantes.
Samuel: Eh, eu trabalhava no Ceasa. Então, eu consumia muita anfetamina, que eu chamo os arrebite, né? Os remédios. A gente comprava caixas de remédio que era o… Esses remédios, a gente utilizava ele numa, num consumo muito excessivo, até pra aguentar a carga de trabalho do Ceasa, que é uma carga muito pesada, muito puxada, a gente trabalhava de 11 horas da noite até nove horas da manhã, é o período de madrugada carregando… tratando do abastecimento de mercadoria, de frutas e legumes aqui pra distribuir nos hortifruti do Rio de Janeiro…
Isabela (narração): É nessa época que vem a notícia de que a mãe estava com câncer no útero. Na verdade, já tinha quatro anos desde que ela descobriu a doença, mas a família preferiu não contar pros dois filhos mais novos.
Samuel: Todo mundo sabia e nós dois não sabíamos. Eles preservaram, meu pai, minhas irmãs, meus tios, todo mundo preservou a gente dessa notícia. E quando chega no final de fevereiro, a gente sabe que minha mãe tá internada, que tá muito mal e meu pai até para pra conversar comigo, das poucas vezes que a gente parou pra conversar. “Vai lá visitar tua mãe, cara, tua mãe tá doente”.
Isabela (narração): Inicialmente, ele fica revoltado e não quer visitar a mãe. Só depois de uma insistência mais enfática do pai é que ele acaba indo ao hospital.
Samuel: Assim, quando eu vi minha mãe num primeiro momento, que o médico me indicou o leito, eu olhei assim e voltei e fui atrás do médico… “Ó, doutor, tudo bem? Bom dia, bom dia. Eh, paciente Elza Regina o senhor me encaminhou praquele leito ali, mas não é minha mãe”. Ele falou: “Qual é a paciente”? Eu falei: “Elza Regina”. Ele falou: “Elza Regina”? Eu falei: “É”. Ele falou: “É aquela paciente ali”. E eu voltei, mas já volto totalmente atordoado porque como que eu não vou conhecer minha mãe assim? Isso era uma coisa inadmissível. E quando eu volto pro leito, e talvez não querendo acreditar também que aquela era minha mãe, talvez tinha sido essa pergunta, eu volto, começo a tentar enxergar minha mãe naquela pessoa que tava ali internada. E aí, eu percebo que é minha mãe, mas aí já tá sem dente, os cabelos já tinha quase ido todos embora, eh, diferente da pessoa que eu tinha visto 10, 15 dias atrás. E isso me chocou muito e eu acabo tendo uma reação bastante violenta, eu começo a quebrar as coisas ali dentro do hospital. E aí, os médicos me seguram. E aí, vem todo mundo. E aí, me tira. E aí, pergunta se eu tô bem, eu tô bem, eu falo, “Não quero nada, só quero ir embora”.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Isabela (narração): Mas, pouco mais de uma semana depois, uma sexta-feira, a mãe do Samuel apresenta melhoras.
Samuel: Disseram que foi à base de muita formol, esses remédio maluco aí. Minha mãe teve uma… uma… uma leve recuperação que me incentivou a ir lá visitá-la, eh, todo mundo falou: “Ó, tua mãe tá boa e ela quer te ver”, eu falei: “Não, então vou lá ver minha mãe, vou lá ver minha mãe”.
Isabela (narração): Ele sai do trabalho, vai pra escola e comemora com a namorada e os amigos. O plano é ir ao hospital no dia seguinte.
Samuel: Eu lembro, lembro bem da madrugada de o telefone ter tocado, mas eu não me atentei pra atender. Até que pela manhã, por volta de seis e pouco, o telefone tocou de novo. Eu atendi o telefone. O cara falou: “Alô”, eu falei: “Alô” também, ele não falou mais nada além disso, a não ser… ele falou: “Bom dia, aqui é do Hospital do Instituto Nacional de Câncer, hospital de oncologia, e estamos ligando pra informar que às 2h31 da manhã a paciente Elza Regina entrou em óbito”. Eu também não ouvi mais, larguei o telefone pra lá, comecei a gritar, minha irmã veio correndo, atendeu o telefone, e ali pronto, assim… tava claro, minha mãe morreu. E toda aquela alegria da sexta-feira, toda a expectativa e… aquilo ali desabou, sabe? A morte da minha mãe, ao mesmo tempo que ela podia ser esperada por alguns e por ela mesma, assim, tem uma carta dela, eh, pro meu pai, (ele fala chorando), que é um horror, assim, é horror de ler aquela carta porque, eh, minha mãe sabia que ia morrer, sabe? Ler isso depois foi pesado pra gente. Porque, assim, “Poxa, mãe, podia ter avisado a gente, né?” Talvez a gente poderia se ajudar um pouco mais, sei lá, mas, eh, ela não deixou a gente perceber que ela tava morrendo, sabe? Foi muito ruim isso, porque foi uma porrada.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Isabela (narração): O Samuel admira muito a forma como a mãe foi forte em lidar com a doença e ainda capaz de poupar ele e o irmão do sofrimento por anos. Ela, Elza Regina, nome que virou tatuagem nas costas dele, morreu em 2004, durante o carnaval, festa que ela adorava. Ela torcia pela escola de samba Vila Isabel.
Samuel: (ele suspira, recuperando-se do choro) Eu só queria falar da Vila Isabel, só queria falar do brilho da escola que ela não viu, mas eu queria dar o feedback pra ela e não vi. E como se fosse aquela música da Cássia Eller, né? “E continuar aquela conversa que não terminamos ontem, que ficou pra hoje”. Esse hoje nunca mais aconteceu, cara. Assim, nunca mais (ele chora).
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Isabela (narração): A casa da família agora fica empoeirada e toda desorganizada. Em um mês, o pai sai de casa pra morar com outra mulher. As duas irmãs mais velhas já eram casadas. Os dois irmãos de 17 e 18 anos agora vivem sozinhos. As roupas acumulam no cesto e as contas já não são pagas dentro do prazo.
Samuel: E aí, a gente viu o quanto criança a gente era, sabe. O quanto molecão, o quanto dependente dos pais nós éramos, o quanto nossa autonomia, ela foi desenvolvida de uma forma muito frágil. Eu era, ao mesmo tempo que eu era bruto, criado sozinho, eu tinha o mínimo da minha mãe do caramba, que era o filho caçula, Samuelzinho, como ela chamava. Então, assim, eu comecei a perceber que aquele carinho morreu também, acabou. E aí, o que a gente tinha de suporte mais próximo? Bebida. Eu comia na rua e bebia, meu irmão também.
Isabela (narração): Até que ele foi morar e trabalhar no Paraguai, na fazenda de soja de uns parentes. Ficou lá por cerca de um ano, mas não deu muito certo e ele voltou pro Rio. Voltou também pro emprego no Ceasa e pra rotina de trabalho pesado e bebida.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Isabela (narração): Em 2006, ele entregava alimentos em feiras de rua. Ele era o auxiliar de carga e descarga. E o motorista de caminhão era o seu amigo Pedro.
Samuel: E aí, eu tinha uma relação muito amigável com o Pedro porque a gente… ele me viu criança, né? Porque ele já descarregava, ele era motorista do Ceasa, tem a vida ali marcada no Ceasa. Então, a gente sempre teve, tinha muito amigos em comuns, tinha uma vida em comum e trabalhar com o Pedro pra mim sempre foi um prazer porque era irmão de um grande amigo meu, né?
Isabela (narração): O Pedro é casado e tem duas filhas. E ele se envolve com uma mulher que ele conheceu no local onde eles despejavam os resíduos sólidos dos produtos do Ceasa. Alimentos feios demais pra vender que eram descartados ali e aproveitados por moradores da área. Ela se chama Patrícia. Em 2007, o Pedro e a Patrícia mantêm um relacionamento e ela chega a fazer uma tatuagem com o nome dele.
Samuel: E não demorou muito, vem a notícia que essa menina tá grávida. Naquelas semanas vem o desespero, vem o desespero de Pedro. E aí, houve um acordo pra que ela abortasse. Ela diz que não, mas se apropriou dos remédios que o Pedro comprou pra ela, os abortivos, né? E nessa semana, assim, de meado de Abril, ela desapareceu. O Pedro começou a suspeitar que ela desapareceu porque ela não quer mais ter o contato, mas vai ter o filho. E Pedro começou a perceber que “se minha mulher descobre que eu tenho uma relação fora, eu tô morto, né”? E aí, um dia, à tarde, num sábado pela manhã, a gente acabou de trabalhar, o Pedro decidiu assim, “Vou matar essa menina”. Assim. Sem mais nem menos. A gente parou num bar assim, por volta de duas horas da tarde, depois de um expediente de trabalho, começamos a beber. “Pô, vou matar essa menina.” Eu: “O que tá acontecendo”, aí, assim, já mais um pouco próximo da situação, eu falo: “Cara, essa menina sumiu”. Ele falou: “Quando voltar e que a barriga crescer, ela vai mostrar pra minha mulher, pra Soninha, né? Que tô grávida. Que tá grávida e vai acabar minha vida, meu parceiro”. “Pô, que é isso cara. Tenta segurar, de lá, de cá…” Falou: “Que nada, não, moleque, essa mina já engravidou já com intenção de me prejudicar e eu também dei mole, vou matar essa mina. E vou matar, vou matar”. Eu sei que nesse discurso aí de duas horas da tarde falei, “Vamo matar, então vamo matar”. Decidir sobre a vida de uma pessoa foi muito fácil. Foi muito simples. A gente decidiu, “Vamo matar, e vamos matar”, assim. A força dele… um deu força pro outro e o que estava por trás era bem aparentemente melhor, que era a estrutura da família do Pedro mantida. Porque se a gente mata a Patrícia, a Soninha não sofre, a menina, ninguém sofre. Seguiria normal. Havia a plena consciência de que a gente ia matar e ia voltar pro bar pra beber. E aí, eu falo assim: “Vamos matar então. Eu passo em casa, a gente pega uma faca”, e assim: “Bora lá então, vamo matá então”. “Então, bora. Vamo matá”. Na ocasião, a gente só trocou de carro. A gente tinha um carro, a gente pegou outro. A gente sabia onde ela tava, onde ela estaria naquele horário. Ela estava num lugar próximo lá, trabalhando. A gente chegou até o local até onde ela tava trabalhando. E é um momento curioso, porque, assim, ou vai ou racha. Naquela hora, o Pedro, ele fica, acho que ele se assusta, né. E aí, fico, “Vamo, então, bora. Pode parar o carro aí que eu mato.” E a gente parou o carro, assim, parou o carro na Av. Brasil, assim, donde ela estava, um fluxo intenso de carro, um fluxo intenso na Av. Brasil, nesse horário da tarde ainda, um fluxo intenso de carro. E falo, “Olha só, eu vou ali, vou matar e eu volto e a gente segue o caminho e acabou o problema.” Eu lembro de ter descido do carro. Eu lembro de chegar e me aproximar muito bem dela e ela olhar pra mim, porque ela sabia que eu era amigo de Pedro, ela me viu descarregando o caminhão algumas vezes lá. E ela fala “oi”, eu falar “oi”. E ela me olhar com um olhar de certo susto e ela falou: “o quê que houve, quê que tu vai fazer?”, falei: “tu vai morrer”. Aí ela fala: “eu vou morrer?”. Eu falei: “Tu vai morrer”. Aí, ela olha pra mim assim, meio que assustada. Eu consigo segurar e desfiro um golpe de faca no pescoço dela. E de imediato ela cai. Nessa que ela cai, eu vou pra cima dela, porque ela já tá caída, assim, já bem frágil e eu tô querendo matar a qualquer preço. E um carro de polícia passa na hora. O carro passa, eu sei que é um carro de polícia porque liga a sirene. Eu olho pro alto, o carro tá parando na Av. Brasil, freando, o barulho do freio brusco. E é nessa hora que eu não tenho mais contato com o corpo, eu tô olhando pro fuzil do polícia na porta aberta e ele começa a dar tiro com o fuzil. Blam! Blam! Eu lembro do clarão do fuzil assim, da boca do fuzil, da ponta do fuzil, assim. E eu lembro que ele disparou uns dois, três tiros ali. Eu solto tudo, saio correndo. Eu não posso mais entrar no carro porque a polícia tá na frente. Se eu entrar no carro, prende os dois. Eu só olho pra ele e consigo correr. Nessa que eu consigo correr, eu tô escutando os tiros. E aí, eu saio correndo, tinha um matagal próximo. E aí, eu vou pro meio do mato, entro por uma casa, duas, parece, e me refugio prum local ermo, assim, de matagal, mata fechada. E fico no mato. Eu comecei a subir uns pontos desse morro com esse matagal, e eu começo a ver o trânsito, assim, não a parte do crime, da Av. Brasil, mas de ruas paralelas, e eu começo a ver um monte de carro de polícia, uns três, quatro carros. E eu começo a ficar me pensando assim, falei, “Gente, eu matei uma pessoa, eu matei uma pessoa, eu matei uma pessoa.”
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Samuel: E não demora muito, eu me deparo com policial a pé, assim, no meio do mato também. Mas a gente tá longe um do outro. Eu tô bem escondido. Ele só queria chegar até o topo do morro, dar uma olhada, se certificar de que eu não tava mais ali e descer. Nesse meio tempo que ele tá, eu saio do meu esconderijo. Quando eu saí, ele me olhou e fiquei olhando pra ele e disse assim, “Sou eu”. Ele falou, “É tu mesmo”? Eu falei, “Sou eu. Vou me entregar. Não precisa fazer nada não”. Aí, ele falou assim, “se entregar é o caralho. Tu vai morrer.” Aí eu vou, me aproximo dele, ele começa a dar tiro, muito tiro. Foram uns… muito tiro, assim, modo de falar, mas uns … seis, 7 tiros. Ele dá um monte de tiro, assim. Eu lembro da arma empunhada assim e a bala saindo do carregador, né, do carrinho, da pistola. E aquele barulho: buah, buah, buah, buah, buah, buah, buah, buah, buah, bhan, bhan. Eu, paro, assim, cara, eu vou me entregar, cara, perdi na moral, cara. Fui eu que matei, vou me entregar. Aí ele falou, “Tu vai morrer, rapá“. Aí, “Desce”. Aí, se aproximou de mim, pediu pra eu botar a mão na cabeça, eu botei a mão na cabeça. Aí, quando eu tô andando, minha perna tava molhada, eu achando que era suor e não era. Era sangue. Aí, eu fui perceber, eu tava baleado em alguma parte do corpo, eu só não sabia onde era, mas eu andava, falava, eu tava super bem. E aí, eu segui andando, quando eu cheguei lá embaixo, junto com as outras viaturas que se aproximaram devido ao excesso de disparos, eu pude perceber que eu tinha tomado um tiro na perna. E começa a conversa, tipo: “Foi tu que matou a mulher lá?” “Fui eu que matei.” “Matô por que?” Eu falei: “Matei e cabô”. Aí falou: “Tem desenrolo não?”, “Tem desenrolo não? Eu matei e cabô.” E aí eles falou assim: “Então tu vai morrer”. Aí falou: “Vou fazer o que com esse moleque? Mata essa porra”. “Mata ele aí, deixa ele por aí mesmo, vamos meter o pé.” Quando eles começaram a falar que iam me matar, eu comecei a ficar desesperado. Como o ser humano é covarde, tem capacidade pra matar, mas tem medo de morrer, assim. E nesse momento, como eu trabalhava no Ceasa, conhecia muitos policiais, tinha uma relação muito amistosa com bastante pessoas de corporação e pessoas de segurança pública, eu comecei a citar o nome de um monte deles. De pessoas que eu conhecia de fato. De pessoas que eu nunca vi na minha vida, mas sabia quem era o nome e sabia que o nome naquele momento seria importante. E eu começo a falar, eu trabalho pra fulano, eu trabalho pra capitão tal, eu conheço coronel tal. E aí, os cara assim: “Pô, tu matou pros cara?” Eu falei: “não, não matei pra ninguém não, é parada minha.” Aí, falou: “Pô, tu sabe o nome de quem tu tá falando?” Falei: “Sei o nome de quem tô falando.” Na ocasião, ali, uma das viaturas estava fazendo a escolta de um preso que era do batalhão prisional, um policial que estava preso. Ele saiu pra alguma atividade e ele foi escoltado. Eu sabia quem era o cara que estava preso, por nome. Ele tinha um nome no bairro próximo de onde eu morava. Aí, eu falei, “Tu é fulano.” Aí, ele falou: “Tu sabe quem é?” e eu falei: “Pô, eu conheço A, B…” E aquela proximidade ali me ajudou naquele momento. Aí, falou assim: “Pô, esse moleque não é qualquer um, não está à toa não.” Aí, falou: “Então, a gente vai fazer o que com essa porra agora, então?” Aí, o maluco falou assim: “Leva ele lá pra ver a merda que ele fez e taca ele na delegacia.”
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Isabela (narração): Na delegacia, o Samuel confirma que era o responsável pela morte da mulher em Campo Grande. Ele sangrava muito, então é enviado pro hospital para cuidar do ferimento, antes de qualquer coisa. Já de volta, encontra a delegacia lotada, com vários amigos, parentes e vizinhos. O delegado deixa ele trancado por cerca de meia hora e o tira pra que ele prestasse depoimento.
Samuel: Eles me perguntaram, “Quem é Pedro?” Eu pensei que o Pedro estava preso. Aí, eu falei, “Eu não sei quem é Pedro.” Ele falou: “Fala do Pedro pra mim.” E eu: “eu não sei quem é Pedro.” Aí, falou: “Tu matou essa mulher por causa do Pedro.” Eu falei: “Eu não matei ninguém por causa do Pedro, eu matei bronca minha. Parada minha, meu irmão.” Aí, falou: “Parada tua nada, essa mina tem um marido, tem um amante aí, rapaz, o Pedro. Tem até uma tatuagem nas costas com o nome do cara. Quem é Pedro? Fala pra mim quem é o Pedro.”
Isabela (narração): Ele não quer entregar o amigo de jeito nenhum. Insistem no envolvimento do Pedro, perguntam se ele não tinha matado a pessoa errada, se era questão religiosa, se ele estava endividado. Ele nega tudo. A irmã, o cunhado, os amigos, todos dizem que ele está louco e que deve entregar o Pedro. Mas ele não cede.
Samuel: Não foi ele quem saiu do carro pra matar, quem saiu fui eu. Quem tinha que pagar por esse crime seria eu. Assim, eu preciso assumir a autoria desse crime. Então, pra que mais gente presa? Por que o Pedro preso?
Isabela (narração): Decidido, ele assina a confissão e a nota de culpa.
Samuel: Agora é seguir. Valeu galera. Agora é seguir, fim de papo. Já acabou, tá feito.
Isabela (narração): Ainda na delegacia, ele é colocado numa cela pequena e toda fechada.
Samuel: E aí, eu lembro de ter fechado as portas e ter ficado tudo escuro. E aí, eu parei. E falei: “Gente, eu matei uma mulher.” E eu comecei a chorar, sabe. Acho que foi a hora, acho que caiu a ficha, talvez, né. Eu comecei a chorar, falei: “Gente, eu matei uma pessoa.”
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Isabela (narração): Na manhã seguinte, ele é transferido pra carceragem da POLINTER de Neves, em São Gonçalo. Chegando lá, é registrado e encaminhado pra cela.
Samuel: E aí, eu vou andando por aquele corredor, vou passando pelas celas, sabe. Sendo que eu não olho pro lado, mas eu consigo ver as celas por onde eu tô passando. Um corredor cheio de celas assim, grades. Até que eu paro na porta de uma cela. Éramos eu e mais uma pessoa. Eu vi o efetivo, o cara, apagar o quadro da porta porque no muro de frente à cela tem um quadradinho preto onde se escreve com giz o número de presos. Eu vi ele apagando o número 69 com a mão e pegando o giz e escrevendo 71. Uma cela muito, muito, MUITO cheia. O local era pra 16 pessoas. Tinham 70. Muito cheio, muita gente em pé, imprensado uma do lado da outra.
Isabela (narração): Ali ele encontra um conhecido. Um amigo do irmão. Eles conversam e ele é bem recebido. Como está baleado, não precisa participar do revezamento pra dormir, por enquanto.
Samuel: Lá tinha revezamento pra dormir. Cada um dormia 4 horas, tipo… De meia-noite a 4 horas da manhã dormia um, de 4 a 8 da manhã dormia outro grupo. Tipo, 15 levantavam e 15 deitavam pra dormir. Tinham os leitos, tinham 16 leitos. Os leitos são divididos pra dois, vão pra 32 pessoas nos leitos. Os outros 29 estamos espalhados pelo chão. Aí, você dorme debaixo das beliches que existem, de concreto. Você se enfia ali por baixo como se fosse uma toca. Aí, fica um do lado do outro imprensado.
Isabela (narração): Ele vai entrando no jogo. Quanto às condições do lugar, apesar de tudo, o pior mesmo pra ele é o calor.
Samuel: Um calor infernal. Era um calor… Nesse caso, vale o Diabo aí. Era um calor diabólico, meu irmão. Era muito quente. Muito quente.
Isabela (narração): Um dia, chega um preso pra ele com uma advertência.
Samuel: E aí, eles vão e falam assim: “Tu matou uma mina lá em Campo Grande, né?” Eu falei: “Matei.” Aí, ele falou: “Olha só, matar é crime de homem. Então, tu se comporta como sujeito homem aqui dentro. Se tu ficar de molecagem, tu vai entrar na porrada. Porque 121 vacilão aqui não vai funcionar muito, não.”
Isabela (narração): O homem também é 121, o artigo por homicídio. Ele não quer ter sua categoria, no topo da estratificação de poder do lugar, envergonhada. Ele temia que o Samuel fosse mais um dos garotos mais jovens, exatamente por volta da idade dele, que geralmente são autores de roubo na rua e chegam fazendo bagunça na cadeia.
Samuel: E a cadeia é cheia de normas, sabe. É cheia de regulamentos, você tem que refrear sua língua, você não pode xingar. O local onde eu menos ouvi palavrão foi dentro da cadeia. Não pode xingar, não pode ficar falando “porra”, não pode falar “merda”, não pode falar nada. Você tem que respeitar o próximo, você tem que medir suas palavras com o outro. Você não pode ficar transitando pra lá e pra cá porque você quer ir na grade e voltar, porque tá todo mundo sentado no chão e os pelos do seu corpo podem cair sobre o companheiro e isso não é bom. Jornal lá também tem um horário sagrado. O jornal e o horário da reportagem é um momento de silêncio total na cela, porque todo mundo tem que assistir a reportagem e a notícia da rua, né. Tem que saber o que tá acontecendo na rua. Quem foi preso, se apareceu alguma lei, alguma coisa.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Samuel: E aí, não demora muito nesse momento de prisão e eu sou abordado por um desses presos que são religiosos. E ele começa a falar comigo a respeito de que Jesus poderia me perdoar. E de que eu era um menino que poderia dar a volta por cima e de que a minha história não terminava ali. Claro… Eu, isolado, sozinho, gostei pra caramba do discurso dele. E eu gostei mais ainda quando ele falou que Jesus poderia me perdoar, porque eu entrei num processo de culpa e na ocasião eu precisava de alguém que me perdoasse, né. Eu precisava, e ele veio com essa proposta de perdão, de se redimir, de mudar. Eu, na época foi engraçado porque eu falei assim: “Pô, legal. Eu acho maneiro essa história de Jesus aí, mas… Puta, vai falar de Jesus AGORA, cara? Depois que matou, cara?”
Isabela (narração): Mas o papo é agradável. É o que ele precisa ouvir no momento. E ele considera o pessoal do grupo religioso, formado por cristãos evangélicos, mais tranquilo do que os outros no dia-a-dia. Então, ele se aproxima.
Samuel: Aí, eu ficava no canto da cela lá com os religiosos, vivendo com eles. E aí, tinha essas coisas de oração, de leitura de Bíblia, que me ajudaram pra caramba, assim. É a oportunidade de você ouvir sobre esperança, sabe. Porque acabou, tu não tem mais nada ali não, cara. Ali é o fim da linha, último vagão. E aí, tu ouvir uma palavra de resgate, de motivação e tudo…
Isabela (narração): Enquanto isso, a família arruma advogados. Eles cogitam duas estratégias. Atestar problemas psicológicos ou alegar que foi um crime passional. Mas o Samuel não quer fazer nada disso. Ele quer contar a verdade.
Samuel: Apareceu um amigo meu e do Pedro em comum lá. E foi quando eu falei pro amigo nosso: “Olha só, cê fala pro Pedro que se ele quiser fugir, ele foge, pode fazer o que ele quiser, porque a partir de agora eu vou… Eu vou falar a verdade a respeito do crime.” O advogado foi lá ainda falar comigo: “Olha só, a estratégia de defesa é…” Eu falei: “Pô, não tem estratégia de defesa, cara.” Aí, ele parou. Eu falei assim: “Pô, cara, na moral. Se eu matar a tua irmã, ia ter estratégia de defesa?” Aí, ele parou assim, e a outra advogada falou: “Deixa. Tá envolvido com negócio de igreja lá dentro?” Eu falei: “Tô ouvindo lá os cara falar, lá.” Aí, falou: “Ih, tá com negócio de igreja, já era. Deixa eles pra lá porque eles falam a verdade, agora eles querem falar a verdade e agora viraram bonzinhos.”
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Isabela (narração): Ele é transferido duas vezes ainda nos dois primeiros anos, ainda em prisão provisória. Primeiro, pra carceragem da Pavuna, na zona norte do Rio, e depois, Vilar dos Teles, em São João de Meriti, na baixada fluminense. Nos dois casos, ele consegue ir ganhando credibilidade e respeito entre os presos. E uma posição de liderança como religioso. Fica à frente de celebrações e ganha o direito de colaborar nas decisões gerais. Além disso, dentro de um projeto chamado Carceragem Cidadã, é escolhido como representante pra participar de conferências externas sobre segurança pública.
Samuel: Aquilo fazia bem pra minha estima como pessoa.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Isabela (narração): Em Vilar dos Teles, porém, ele vive um dos piores momentos na prisão. Presencia a execução de um colega, que havia roubado outra pessoa lá dentro.
Samuel: Porque na cela, na cadeia também às vezes rolam roubos entre a gente. A pessoa furta… Furta seu dinheiro, pode furtar um material higiênico seu, tipo um desodorante, um perfume que você tenha caro. Acontece pequenos furtos que é duramente recriminado e chega nesse caso extremo que é o caso de morte. Porque ladrão, ali, na prisão, ladrão que rouba ladrão é morto, não tem sete anos de perdão coisa nenhuma.
Isabela (narração): Esse homem é morto em uma cela superlotada, com quase 150 presos. Lugar onde, toda manhã, o suor acumulado durante as noites extremamente quentes é retirado com um rodo. Dois anos e dois meses depois do crime, em 2009, o Samuel vai a júri popular.
Samuel: A estratégia da defesa foi o seguinte, não tinha acusação, só do Ministério Público. Não tinha nenhuma testemunha de acusação. Não tinha nada lá da Patrícia. Ele falou, “Também não vamos usar nada seu, vamos… Tu é réu confesso, não é? Vai segurar esse crime?” Eu falei, “Tô segurando.” “Então, vamos tentar pegar a mínima possível, porque é um crime pesado ainda, mas vamos tentar jogar lá pra tomar a mínima. Partiu?”
Isabela (narração): Na hora da sua fala, no Tribunal do Júri, ele é cuidadoso.
Samuel: Se você chorar no dia da audiência, não adianta se arrepender agora. Eu tinha que chorar. Se você falar as coisas com uma certa… Como elas foram, você cai no âmbito da frieza, você se torna um psicopata. Então, nem uma coisa, nem outra. Aí, o Ministério Público se pronunciou e a defesa também. Especularam uma prisão, um tempo de sentença alto, máximo. E a defensoria, defendendo, alegando que poderia fazer por menos e tudo. Então, o júri correu aí por base de duas horas e meia, três horas. Um júri curto, já que o júri geralmente são bem prolongados. E aí eu fui sentenciado a 16 anos de prisão e a sentença foi reduzida pra 14 anos de prisão. Um ano foi retirado porque… Foi subtraído porque eu era menor de 21 anos. Um outro ano foi subtraído porque eu fui réu confesso, em assumir toda a autoria do crime, a história toda. A gente pegou a mínima na sentença. E aí, agora, assim, tá condenado. No final, eu lembro de ter um apertozinho no coração, porque veio a sentença. A marreta bateu. Mas a questão do conforto de ter sido uma pena justa… Justa é meu modo de falar… Se você ouvir a família da vítima, pode não ter sido justo. É… Uma sentença baixa, a gente saiu bem confortável, consolado, bem seguro.
Isabela (narração): Em duas semanas, ele é transferido para o sistema penitenciário, pra SEAP, a Secretaria Estadual de Administração Penitenciária do Estado do RJ. No presídio Evaristo de Moraes, em São Cristóvão, zona norte, ele encontra amigos dos anos anteriores presos.
Samuel: Muitos presos amigos meus já estavam nesse presídio, porque esse é o presídio quase que final, né. Então, tem muitos amigos seus presos ali já. E aí, assim, fui muito bem recebido pelos presos. Eles pegaram minhas roupas, lavaram, me deram comida, cuidaram de mim nesse período que fica em adaptação. E aí, eu comecei a conviver com eles ali na prisão.
Isabela (narração): Agora ele tem um objetivo bem claro, retomar os estudos.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Isabela (narração): Isso não era uma possibilidade na carceragem. Só já no sistema penitenciário existem escolas.
Samuel: Eu queria fazer de tudo pra voltar a estudar, viver minha vida na prisão.
Isabela (narração): Então, ele se matricula na escola pra fazer o último ano do ensino médio.
Samuel: A escola é um outro mundo dentro da prisão. Embora ela funcione com algumas essências prisionais e policialescas, ela tem muito mais pra oferecer de liberdade do que de prisão. É uma outra identidade quando o camarada chega ali, sabe, é uma outra vida, é uma outra realidade. Ali você não é mais o preso, você é o aluno. E aí, assim… A gente tem aula de tudo, todas as disciplinas, português, matemática, história, geografia, física, química. Sendo que em horários muito curtos. E aí, assim… Você tem uma relação de prova, de tudo, trabalho, gincana, vídeo. Na escola, é a oportunidade que você tem acesso a alguns livros e de ter acesso a alguns vídeos, tipo filme. A turma é muito pouco, geralmente no terceiro ano os alunos são oito, nove, dez pessoas. Não mais do que isso.
Isabela (narração): Com o ensino médio concluído, ele não tem dúvidas sobre o próximo passo, a graduação. Ele pretende fazer o Enem e o vestibular da Uerj, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E precisa se preparar.
Samuel: Mas eu tinha um problema. Por eu ter terminado o ensino médio, a escola não permite que você frequente a escola, quando você não é aluno. Eu não poderia mais ir pra escola, não poderia ter acesso aos livros. O que aconteceu, o rapaz que fazia os cadastros dos livros, ele é um presidiário que trabalha como colaborador, trabalha em remissão de pena pra escola. Eu e esse rapaz, a gente tinha uma relação boa. Eu pedia a ele que me emprestasse uns livros assim, ilegalmente. (risos) Mesmo preso a gente comete crime, muito engraçado isso. Ele não podia emprestar, isso… Se você tem um livro e você não é matriculado, você não registrou, você é ladrão, você roubou os livros. Se o guarda pegar, se alguém da escola pegar, vai entender que você roubou os livros.
Isabela (narração): E ele começa a estudar. Driblando todo o barulho, a movimentação e o calor da cela, ele cria uma rotina de estudos.
Samuel: E aí, eu ficava lendo os livros, sabe. Lendo, expansão marítima principalmente. Lendo questão de reforma, estado moderador, questões do Brasil, geopolítica, lia um pouquinho de física e de matemática. Não entendia tanto (riso). Lia essas questões das Ciências da Natureza e Tecnologias, ia lendo interpretação de texto, essas coisas. E ao mesmo tempo, eu lia muito livros, né, paralelos. Romance, Dostoiévski. Lia Kafka, lia esses autores malucos aí.
Isabela (narração): O primeiro exame que ele faz é a primeira fase da Uerj, uma prova objetiva com 60 questões. Ele é aprovado. Comemoração, expectativa entre os amigos, parentes e professores. Mas agora, para a segunda fase, ele precisa do conteúdo programático e de um material específico para a prova do curso que ele almeja, Pedagogia. De novo, ele tem que dar seu jeito.
Samuel: Quem me ajudou na cadeia foi um agente religioso. Mais um crime, né. Mais uma infração cometida.
Isabela (narração): O agente penitenciário consegue o material necessário e coloca num pendrive.
Samuel: Como agente religioso nem sempre passa por visita… Alguns passam… Elas não são regulares. Elas não acontecem como rotina. Você passa pelos aparelhos de tecnologia lá, os scanners, essas coisas. Não tem nada, então, passa. O que aconteceu? Ele colocou o pendrive no bolso. Então, ele arriscou até mesmo a condição dele. E aí, assim… Ele entrou. E conseguiu passar. E aí, ele falou assim, “Olha só, você dá seu jeito agora pra tirar isso aí e me devolve esse pendrive em 3, 2, 1.” Falei, “Tá bom, vou te devolver agora.”
Isabela (narração): Aí, entram em cena mais duas pessoas. Um amigo que é colaborador e tem acesso mais amplo nas áreas da prisão coloca os arquivos no computador da escola. Depois, uma diretora da escola, que aceita imprimir tudo e entregar pra ele.
Samuel: E eu tive acesso às provas antigas e tudo. E comecei a me dedicar mais às provas que estavam ali. E naquilo que o conteúdo programático pedia, então me intensifiquei naquelas coisas. E foi levando isso. Setembro, outubro, novembro.
Isabela (narração): Em novembro, ele realiza a fase final da Uerj e também o Enem. Os presidiários fazem esses exames na própria escola da prisão onde estão. Agora, resta aguardar os resultados.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Isabela (narração): Certo dia, ele é chamado na sala do diretor da prisão.
Samuel: Cheguei lá e ele olha pra mim e fala: “Samuel, sabe porquê eu tô te chamando aqui? Cara, te chamei aqui pra te dar os parabéns.” Aí, até cair a ficha que o diretor está te chamando pra dar os parabéns, não vai. Aí, eu tô querendo, tipo assim: “Parabéns por quê?” pensando comigo. Aí, ele foi e jogou um papel na mesa. Ele estava em pé do outro lado de uma mesa grande e eu o oposto. Aí, ele foi e jogou um papel assim, na mesa pra que eu tivesse acesso. Aí, eu com a mão pra trás, não peguei, claro que eu não vou meter a mão na mesa. Nessa que ele jogou o papel, fiquei olhando e ele falou: “E aí, cara. Vou te dar os parabéns que você foi aprovado na Universidade Federal, olha aí.”
Isabela (narração): Ele estende o braço, pega o papel na mesa e lê. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, Pedagogia, Aprovado. Ele mal está acreditando. Já vai sendo parabenizado por todos.
Samuel: Assim, é muito legal pro preso né, você vê todo mundo que te odeia, te chama de filha da puta, de bandido, de safado, de tudo quanto é nome… E o cara te dá os parabéns e sorri pra você de alguma forma, isso é bom pra caramba.
Isabela (narração): E eles começam a tratar da burocracia. A família é avisada e o acesso pra que a irmã levasse a documentação e tudo mais é facilitado. Até que ele é chamado de novo no gabinete da diretoria. O subdiretor informa que houve uma mudança de data.
Samuel: Aí, ele falou: “Só assina aí essa nova data, por favor.” Eu falei: “Eu posso ler?” e ele falou: “Pode”. Aí, quando eu fui ler, tava “Exame de Qualificação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro”, aí, “aprovado no curso de Pedagogia”… tava o negócio da UERJ lá. Eu falei: “Não, não tem nova data aqui não, olha”, ele falou: “Tem sim”, aí eu falei: “Não, não se trata de uma nova data, isso aqui é uma outra universidade, isso é a UERJ. Pelo que eu tô olhando aqui, eu fui aprovado na UERJ também”. E aí, pronto, entendeu, você é o cara, você é o menino que foi aprovado em duas universidade.
Isabela (narração): A verdade é que a UERJ era o seu sonho. Então, é a UERJ que ele escolhe, abrindo mão da UNIRIO, mas não acaba por aí. Ele está cumprindo pena em regime fechado, então, precisa da autorização judicial pra poder frequentar a universidade.
Samuel: Aí que eu descobri que todo ano estudando no calor, toda dificuldade, toda falta de informação, todos os obstáculos pra prestar o vestibular, a… o próprio exame, o próprio vestibular, não foram suficiente resistência como foi pra você ir pra universidade.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Samuel: E aí, a gente começa uma luta, desde o mês de janeiro, pra conseguir estudar.
Isabela (narração): No setor de defensoria pública da unidade, o Defensor conversa com ele.
Samuel: Ele vem com a notícia: “Olha, Samuel, a gente discutiu o teu caso lá, a gente vai dar entrada no pedido, mas é muito difícil. É o seguinte, você tá preso num crime hediondo, na cidade do Rio de Janeiro e… você tá indo pra uma universidade pública, onde a predominância são de pessoas que odeiam os presos. Então, assim, é mais cômodo pro juiz te manter no regime fechado pra cumprir a justiça, esse lado da justiça, mas a gente vai tentar.”
Isabela (narração): Defensoria Pública, direção da unidade, família, todos reúnem esforços, em 2012, pra ele conseguir a liberação da justiça. Os meses passam, os prazos estão sendo atropelados, e o desânimo aumentando. Só em dezembro sai a autorização. A justiça, porém, ainda tem que fazer uma fiscalização pra garantir que está tudo certo no vínculo do Samuel com a universidade. O problema é que depois de tanto tempo, a matrícula havia sido perdida. Mas… ele tinha prestado de novo o vestibular da UERJ e, de novo, ele passa pro curso de Pedagogia.
Samuel: E aquela aprovação, assim, foi um alívio. Agora eu já podia falar, “Dane-se 2012, eu tô com uma matrícula nova”.
Isabela (narração): No final de fevereiro de 2013, a fiscalização é feita. Tudo ok com a matrícula, parecia favorável.
Samuel: É, o juiz foi e determinou a minha soltura pra… pra as saídas extramuros pra estudar. Seis anos e três dias eu fiquei trancado, trancado, trancado. E aí, é uma nova fase, porque agora eu passo a viver as saídas externas.
Isabela (narração): Ele é transferido pro Instituto Penal Cândido Mendes, no Centro do Rio. Uma unidade pra presos que saem pra algum trabalho externo.
Samuel: A unidade, ela… ela não tem grades. Ela não tem trancas. É um… é tipo um alojamento. A estrutura da unidade é bem melhor, o ar da unidade é outro. Eh, a relação com o servidor lá, com guarda, com o inspetor penitenciário é outra. Lá tem… tem a questão do respeito. Igual uma vez, quando eu cheguei lá de mão pra trás, de cabeça baixa, o guarda já falou, “Solta a mão e levanta a cabeça”. E isso já era libertador, né.
Isabela (narração): Agora, com o regime semiaberto, chega o dia da primeira saída da prisão.
Samuel: No dia em que eu saí, minha irmã tava no portão, meu pai, tava todo mundo. E aí, quando eu abri o portão pra eu sair, eu me deparei já com a minha família me recepcionando. Eh, foi engraçado, minha irmã questiona isso, até, muito tempo, não houve nenhuma reação de emoção, sabe, aquelas… Abrir o portão, cê começa a chorar. “Ah, cê tá solto”. Eu não consegui reagir dessa forma, de maneira nenhuma, assim. Eu fiquei muito… muito preocupado e muito assustado. Primeiro, o barulho, muito carro. Imagina, cê tá seis anos sem ver carros, um monte de carro novo na rua, não sabia que carro era, um monte de carro… Brincava com meu pai: “Pai, que carro é esse?”, e meu pai: “O carro tal”. O carro… E é buzina, aquele trânsito agitado, aqui no centro da cidade, já começavam esses telefonizinhos touch, né, todo mundo olhando no telefone já. Então, tava todo mundo conectado. E as roupas coloridas, né, assim… Todo dia, blusa branca e calça jeans, blusa branca e calça jeans, cê chega na rua e vê as pessoas com outras roupas, cê começa a se assustar, né, eu comecei a me assustar, né. Eu falei: “Gente, como esse povo é bonito, cara! Uma blusa mais linda do que a outra, assim, as estampas, a cor da… da vida”. Eu aderi pra mim o rosa, assim, eu sou apaixonado por blusa rosa. Pra mim, tudo é rosa, rosa, rosa, eles falam… Meu telefone é rosa, tudo é rosa. Porque… eu falei, “Vou, vou usar uma cor bem pesada, porque…”
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Isabela (narração): Ele começa a ir às aulas na UERJ. Como as aulas são de 6 às 10 horas da noite, ele é autorizado a sair às 4 do presídio e deve voltar meia noite. Curiosamente, outro presidiário do mesmo Instituto Penal em que ele tá agora também está na mesma turma que ele na faculdade. Os dois, que se tornam amigos, ficam na dúvida, contam ou não, pros colegas e professores, que estão presos? O Samuel acha que eles não devem se esconder.
Samuel: E aí, houve uma aula, uma aula de libras… aí, negócio de trocar contatos, lá, emails, email da turma, essas coisas toda. Aí, ela, “Quem não tem acesso ao e-mail da turma aqui?”, eu fui e levantei a mão, “Eu.” Aí, ela, “Ah, cê não tem acesso não? Mas aí, a gente conversa pelo Facebook”. Eu falei, “Não, não tenho Facebook”. Aí, ela falou, “Ah, mas tem… existe uns vídeos disponíveis no YouTube”. Eu falei, “Não, não tenho acesso ao YouTube”. E ela super compreensiva, sabe. Aí, ela, “Eu vejo uns DVDs aí e te mando os DVDs”. Eu falei, “Não tenho acesso a DVD”. Aí, ela foi e, “Mas você é da onde?”, eu falei, “Não, professora, eu sou um presidiário, eu não tenho acesso a nenhuma tecnologia. Então, o que eu tenho que fazer, tem que ser no horário de aula, não tenho permissão, na prisão a gente não tem DVD, não tem computador, não tem, não tem nada disso. E eu preciso da sua compreensão.”
Isabela (narração): A professora dá um sorriso amarelo. A turma está agitada e a maioria nem ouve nada. Mas uma garota pelo menos ouve. E, no fim da aula, ela se aproxima.
Samuel: Ela: “Samuel, prazer, meu nome é Taís, ouvi lá a sua dificuldade e, assim, lá pode entrar papel?”, eu falei, “Pode”, ela falou: “Então, o que você precisar, eu imprimo pra você. E… o que você precisar de ajuda, eu tô aqui pra te ajudar, valeu, cara?”.
Isabela (narração): Assim, ele cria uma amizade. Logo depois, observa um menino com a camiseta da mesma igreja com a qual ele se identifica, e aborda o rapaz, pra pedir ajuda também pra acompanhar as aulas. Uma fé em comum e conhecidos em comum, ele é receptivo. É com ajuda desses novos amigos que o Samuel vai se integrando à turma e gradualmente explicando pra todos a sua condição. Às vezes, existe uma curiosidade sobre o que ele fez pra estar preso. E ele conta.
Samuel: Um dia, eu tô num desses grupinhos, na sacada da UERJ, olhando pro presídio, eu tô explicando: “Não, lá é um presídio, eu ficava ali”, assim, a gente tá conversando e chega uma menina, a Laura, fala: “Ah, ali é o presídio?” “É, não sei o que, bababá”. Falo pra ela: “Falando de presídio, por causa de quê?”. Aí, uma… a Taís, solta do jeito que era, livre do jeito que é ainda, a Taís é muito brincalhona, ela falou: “Ah! Tu não sabe? Samuca é preso, pô, Samuel é preso!”. Ela falou: “Samuel é preso?! E… preso por acaso pode tá aqui?”. Aí, a Taís: “Pode, pô, ele tá aqui estudando, pô!”. Aí, ela: “Cê é preso, cê tá preso mesmo?”, eu falei: “Tô preso”. “Ah, se você tá preso, então você tá preso por quê?”, aí eu falei: “Ó, cometi um homicídio”. Aí, ela: “Homicídio?!” A Laura, de branco, ficou transparente, assim. Ela mudou o rosto e começou a ficar assustada e virou as costas e saiu correndo no corredor. E, claro, aquilo ali foi constrangedor pra todo mundo. Eu, particularmente, não fiquei constrangido em nenhum momento, porque tava na hora da gente enfrentar isso. Assim, eu sabia que ia enfrentar isso cedo ou tarde. Você fica surpreendido com a reação, mas você sabe, ó, agora você encara.
Isabela (narração): Essa menina acaba indo pedir desculpas pra ele depois. Eles conversam e… até passam a se dar muito bem. As relações que ele vai estabelecendo ali são, no geral, muito boas. Certa vez, num trabalho sobre pedagogia em diferentes instituições, o grupo dele apresenta um seminário sobre a pedagogia na prisão. A apresentação é feita no auditório, pra alunos de várias turmas.
Samuel: A gente fez uma puta apresentação, assim. A gente fez um trabalho muito, muito maneiro mesmo. E… e foi legal, porque, assim, pronto. Se só minha turma sabia, se só o coleguinha do coleguinha da turma sabia, agora, o andar sabe. Então, assim, geral tá sabendo. A gente se expôs, explicamos tudo. E… foi bom que rendeu dez na média, né, mas… e foi melhor ainda, pela projeção que isso ganhou. E aí, assim, acabou… essa estranheza com a pres… com aluno preso ali, tanto eu quanto o Silvio. As aulas começaram, eu me contagiava. Como eu não trabalhava, então, passava a manhã toda lendo, né. Todos os textos que eram recomendados, que eram das disciplinas, eu lia, fazia observações, já… resenha, pra mim era mole, fazer re… todo mundo reclamava da resenha, apresentava uma resenha superbacana. Só tinha dificuldade pra digitar, então, minhas coisas era sempre manuscrita. E os professores entendiam isso.
Isabela (narração): Concentrado nos estudos, ele vai se projetando como bom aluno. Tira boas notas e participa de pesquisas acadêmicas do Departamento de Extensão. Só que, lá pelo fim do segundo período, algumas preocupações passam a povoar a cabeça dele.
Samuel: A medida que eu fui descobrindo mais esse mundo externo, essa vida aqui fora, saindo desses limites da faculdade e da prisão… eu fui me deparando com, com a questão do curso da pedagogia, assim, uma dificuldade. Era um curso de formação feminina, pra educação infantil na sua maioria, e isso… isso começou a me incomodar, sabe? Eu sabia que… o meu diploma, ainda que fosse de UERJ, tudo, ia ser muito frágil, porque, eu não tinha espaço no mercado. Todas as vagas de bolsa, estágios em escolas, é sempre pra tia, né. É a tia, é a menina. Eh… não tinha tanto espaço pra… pra, assim, pra mim, propriamente dito. Por ser… Não só por ser homem, mas principalmente por ser preso. Na escola, isso pode ser usado contra mim em qualquer momento. Imagina: “Ah, o cara matou uma mulher e agora é professor, agora o cara é coordenador. Eu não quero esse cara tomando conta do meu filho”. Esse, essas falas podem acontecer.
Isabela (narração): Ele conversa com os professores, que concordam que essas preocupações fazem sentido. Então, ele questiona se vale a pena mesmo a formação em pedagogia. Se não seria melhor tentar outro curso.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Isabela (narração): Bem, mais uma vez, ele não deixa de fazer o Enem. E, no início de 2014, é aprovado pra Serviço Social, na UFRJ, a Universidade Federal do Rio. Ele fica muito satisfeito com o quarto lugar que ele conseguiu. Só… que não acha que essa, exatamente, vai ser a solução.
Samuel: Eu falava, “Pô, no ruim, o serviço social, posso tentar. Mas ao mesmo tempo, é um outro espaço ocupado pelo gênero feminino e… eu não tenho muita saída”.
Isabela (narração): Alguns dizem que ele deve tentar direito, mas a ideia também não o anima muito.
Samuel: E foi quando eu comecei a pensar assim, ó, pedagogo na prisão tem um monte, da educação, tem lá, pro sistema prisional, advogado é o que não falta, acho que a gente não tá precisando nem de direito, nem de educação, a gente tá precisando de uma consciência mais política pra essa bagaça aí, pra ver se isso funciona. E isso foi me motivando, sabe. Aí, eu comecei a perceber a importância da gestão pública, assim. E aí, nessa pesquisa de… de ONG, de serviço social, de terceiro setor… eu descobri esse curso da UFRJ, que era Gestão Pública pro Desenvolvimento Econômico Social. Eu me senti amplamente contemplado pelas propostas do curso. Foi então… por aí que eu vou. Vou sim.
Isabela (narração): Pronto, com um novo objetivo em mente, ele se inscreve no Sisu, pro segundo semestre de 2014.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Isabela (narração): E é aprovado mais uma vez. Ele consegue a vaga em Gestão Pública para o Desenvolvimento Social e Econômico na UFRJ. Matrícula, procedimentos jurídicos para a nova autorização e ele dá início às aulas.
Samuel: E eu, de imediato, já começo a me expor. Falo: “Ó”, “Ah, você veio da onde? Eu vim da escola técnica tal, eu sou de Vitória, eu sou de São Paulo, eu sou de Minas. Ah, eu sou do Paraná, o outro, eu sou do Mato Grosso.” E a gente tá tudo conversando e… “Pô, cara, eu venho do contexto prisional, assim, assim, saca”. E, boom!
Isabela (narração): Os alunos do Centro Acadêmico são os primeiros contatos. Eles abraçam Samuel, o apoiam. Até porque ele encontra alguma resistência na turma e principalmente com os professores, no começo. Mas vai conquistando as pessoas. Agora, ele já está mais confiante, de qualquer forma.
Samuel: Eu não me permito mais ser invisível e nem que o meu contexto prisional permaneça invisibilizado, sofrendo o que sofre.
Isabela (narração): Em dezembro de 2015, ele obtém a progressão de regime. Ele vai pro regime aberto, com monitoramento eletrônico, a tornozeleira. Pode dormir e passar fins de semana em casa, em vez do presídio.
Samuel: Esses dias, eu vim de bermuda, com a tornozeleira exposta, não encontrei nenhuma reação, mas, eh, às vezes, eu também dou essa provocada, porque… é interessante, essa… a pessoa com a tornozeleira no pé ainda, ela ainda é um presidiário e tá mais evidente aquilo ali, né.
Isabela (narração): Ele faz questão de promover debates relativos aos presidiários e à criminalidade. É uma causa que ele adotou.
Samuel: Qual é a nossa lógica? O cara, depois do crime, ele tem que ser amarrado num poste e… é surpreendente, cara, depois de um crime… tá num espaço de uma universidade pública. Então, isso é bacana, pra discutir, até porque, pra… renovar, assim, essa conversa, com uma outra expectativa.
Isabela (narração): Dá pra notar que o Samuel tem plena consciência da posição que ele ocupa com a sua história. Da imagem que ele carrega como preso, como universitário e como preso universitário. Que não são todas as atribuições que o definem, claro, mas são algumas. Ele parece se orgulhar das conquistas que ele obteve na vida, apesar dos grandes erros. Ele usa tudo isso pra compartilhar suas visões sobre o que o preocupa, e pra avançar na busca pelo que ele quer. Pra si próprio e pro mundo.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Samuel: Cara, existe um contrato social, existe uma sociedade, existe uma cidadania, existe uma vivência coletiva, existe injustiças, existem desigualdades. A gente precisa se dar conta de todas as coisas pra gente perceber que a gente sai em desvantagem em inúmeras delas. Mas essas desvantagens não nos dão o direito de jogar sujo. Existe o egoísmo ser huma… do ser humano, existe a ganância do ser humano, existe a maldade do ser humano. Nada disso se anula. Existe. Tem pessoas que você vai conceder de tudo, vai continuar cometendo crime. Tem pessoas que você não vai dar nada e não vai estar no crime. Você tem esses extremos aí e não há como se negar. Mas, esses que estão aqui hoje, o que que a gente fez? Quer banir? Quer matar? Não. Então, vamos restaurá-los. Existe uma saída aí que não é a… o banimento do outro, através da execução, mas sim a reinserção do outro, através do… da educação ou de outras possibilidades da arte, do trabalho, do que seja. Mas anular a vida, não anula o problema, né.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Samuel: É… é muito difícil sustentar esse discurso, porque você passa a garantir o direito de alguém que o… dois minutos antes, não respeitou o direito do outro. Mas a gente precisa perceber, enquanto sociedade, o que a gente quer pra gente. Ou a gente se aniquila, à medida que se devora um ao outro, através do justiçamento, ou a gente se restaura.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Isabela (narração): Com uma coleção de aprovações em instituições públicas e com um foco em seguir na vida acadêmica, até concluir um doutorado em ciências políticas, ele centra sua redenção na educação formal, no conhecimento e no debate social. Mas sabe que algumas coisas não se apagam.
Samuel: Eu tenho uma dívida com um monte de gente, não vai… algumas não vão acabar nunca. A minha dívida com a justiça, ela se encerra na última assinatura do livramento condicional, em 2022. Essa dívida tá paga… vai tá paga. Com a minha família eu nunca vou… apagar, vou pagar essa dívida. Primeira, o que eles… o que eu fiz com eles… no caso de… minha irmã, ela passou a ser irmã de um homicida. Meu irmão, passou a ser irmão de um homicida. Meu pai, quase morreu, por ele ter sido um pai de um cara que é homicida. Então, ele se responsabiliza muito, também, por esse meu crime. Eu nunca vou ter como pagar essa dívida com eles. A gente reduz um pouco os juros e as parcelas… e uma pessoa morreu, assim. Eu não vou pagar essa dívida nunca. Nunca. Eu não vou conseguir pagar o que essa família sofreu. Então, assim, as dívidas e… culpa, elas vão se perpetuar. Eu é que não posso fazer dessa dívida um desespero. Eu tenho que assumir, e não é aquele discurso desprendido, “devo, não nego e pago quando puder”. É devo, não tenho condições de pagar e… nesse caso, a gente precisa não só do perdão da dívida, como também entender que é possível viver com devedor. Não tem como, eu tenho dívidas e não vou pagar. Tenho dívidas comigo. Eu sou um devedor, um eterno devedor e… vou pagar com as moedas que eu tenho, mas eu preciso muito da tua compreensão, da compreensão de… de quem eu devo, de entender que essas moedas é tudo o que eu tenho hoje.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan (narração): Isabela Cabral é jornalista, recém-formada pela PUC Rio, onde desenvolveu seu trabalho de conclusão de curso sobre jornalismo e storytelling em podcasts. Interessada por narrativas e produção de conteúdo desde cedo, escreveu alguns blogs e participou de outros podcasts. Cultura, sociedade, ciência e política estão entre seus temas favoritos. Trabalha hoje na comunicação social da ALERJ.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan (narração): No próximo episódio…
Voz 2: Porque o ambiente hospitalar, o que ele traz pro paciente que tá lá dentro, mesmo que ele tenha uma unha encravada, é que é um espaço onde as pessoas morrem, tá ali, próximo da morte. E quando morre alguém, todo mundo fica muito tenso.
Ivan (narração): Aqui, no Projeto Humanos, o que faz um herói.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
Ivan (narração): O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Se você gosta do nosso trabalho e gostaria que ele continuasse, você pode contribuir acessando o site do Anticast, anticast.com.br, e clicando na seção “Seja Patrão!”, ali no topo. Nos vemos na semana que vem.
(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)
FIM
Transcrição por Henrique Pinheiro, Almotolia Quinhentos, Zé Roberto. Edição por Sidney Andrade. Revisão por Diogo Lima.